Entre os comunistas que encheram o Campo Pequeno para as celebrações do 101º aniversário do PCP, este domingo, a sensação de desconfiança quanto à imprensa era palpável. Num momento em que a posição do partido quanto à invasão russa da Ucrânia – colocando-se contra as “sucessivas decisões e provocações dos EUA, NATO e UE que levaram ao conflito”, lê-se em comunicado, enquanto salientam que o PCP “nada tem a ver com o governo russo e o seu Presidente”, nas palavras de Jerónimo de Sousa – é criticada como nunca, sendo equacionada como pró-Putin, todos sentem que não os escutam, que os seus argumentos são deturpados pela comunicação social.
“Isto vai aparecer em algum lado?”, foi a pergunta que mais se ouviu entre a maré de bandeiras vermelhas, foices e martelos no Campo Pequeno. “Quero ter aqui outro gravador ao lado, para que se saiba o que vocês cortam”, chegou a exigir um comunista ao i, enquanto camaradas remetiam para os comunicados do partido.
O certo é que a posição do PCP, bem representada ou não, pode ter custos políticos sérios, aponta António Costa Pinto, investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS).
“As posições na política internacional do PCP, como a sua dimensão anti-NATO, anti-UE e ‘anti-imperialismo’ americano, conduzem evidentemente a uma perceção por parte da sociedade portuguesa que não é favorável”, considera o investigador.
É que, perante a crescente polarização – que maior polarização há que uma guerra? – e cerrar fileiras entre opinião pública ocidental contra os abusos do Kremlin, “a conjuntura não é uma muito favorável a partidos que, como o PCP, ou mesmo como partidos da esquerda radical, como o BE, têm posições menos claras no que toca à invasão da Ucrânia”, explica. E apesar de não serem previstas eleições para breve, o timming não é o particularmente favorável aos comunistas, que recuperam do descalabro que foi o seu resultado nas legislativas.
A questão é que, se o PCP se afirma contra a invasão, o seu voto contra a condenação desta no Parlamento Europeu, acusando a resolução de ”impor uma visão unilateral e instigar à confrontação, não torna fácil compreender a posição do partido. Que também não achou piada a que, junto com a condenação da Rússia e Bielorrússia, a resolução aprovada em Bruxelas apelasse ao aumento do apoio militar à Ucrânia.
Já o esperado aumento dos gastos militares dos países membros da NATO, numa altura em que muitos europeus estão cada vez mais receosos da Rússia, é uma preocupação dos comunistas, salienta Adelino Soares, um militante sexagenário.
“Vai causar grandes problemas nos orçamentos de Estado, inclusive em Portugal. E que muita população que está solidária com o povo ucraniano, e bem, vai sentir”, aponta Adelino. “Não se trata de apoiar uma guerra entre imperialismos, entre dois países capitalistas que são os EUA e a Rússia”.
Protesto fantasma e desdém por Putin Na imprensa correu muita tinta quanto à eventual manifestação pró-Ucrânia que poderia estragar o 101º aniversário do PCP, mas no Campo Pequeno não se viu nada. Jornalistas palmilharam a praça, à procura de manifestantes, mas não encontraram ninguém, nem sequer uma bandeira da Ucrânia, partilharam vários colegas com o i. Nenhum se deparou com qualquer evento nas redes sociais a mobilizar para um tal protesto e a polícia no local também não sabia de nada.
“Qualquer manifestação contra o partido comunista neste comício virá, no fundamental, da direita radical ou de pequenos grupos”, considerara Costa Pinto, umas horas antes. “Até porque o PCP não declarou posições de apoio a Putin”, continuou. “Aliás, seria irónico, porque a ditadura de Putin hoje situa-se mais à direita do espetro político”.
De facto, se há coisa que irrita os militantes do PCP é ouvir comentadores, ou até colegas, amigos e familiares, a chamarem comunista a Putin, falando deste como saudoso da URSS.
“Como é que os comunistas podiam ser a favor de um regime que derrubou a União Soviética?”, questiona João Pereira, um jovem militante de Lisboa, com um certo desprezo no voz. “Agora fico irritado, mas no início ficava chocado”. Já Pedro Coelho, que veio de propósito do Porto para o comício, num dos muitos autocarros que encheram a avenida de Berna, desde a Praça de Espanha até ao Campo Pequeno, lembra o discurso de Putin que antecedeu à invasão, descrevendo a independência da Ucrânia como artificial, mero resultado do erro de Lenin ao oferecer-lhe autonomia como república soviética.
“Como é que pode ser acusado de ser comunista se está a criticar uma das pessoas que começou tudo?”, remata Coelho. E Adelino Soares não resiste a deixar uma farpa contra o “aproveitamento” da imprensa. “Esta semana saiu uma capa do i que associava a figura do Putin e a bandeira comunista”, exemplifica. “Induz as pessoas ao erro”.
Mártires Para Elisabete Pinheiro, que veio do Porto com Pedro Coelho, faz todo o sentido a oposição do seu partido ao envio de armamento para os ucranianos. Apesar da situação de total desespero de quem tenta defender o seu país perante uma invasão russa. “É complicado quando o povo está a ser armado e não há interesse em apostar nas negociações, ou um intermediário que os faça ceder mutuamente”, lamenta a comunista. Repetindo o mote: “A opinião do PCP é pela paz, contra a guerra”.
“Estão a transformar aquela população em mártires”, dispara o camarada de Elisabete. “Estar a armar uma população que não está preparada para combater contra um exército profissional, só vai correr mal para os civis”, continua. “Há muita mentalidade de Guerra Fria, e vontade de manipular opinião para que se vendam armas e se façam muitos negócios. E aquele povo está a ser espezinhado”.