Ainda somos os mesmos

Parece que já não pertence a este mundo. Tanques a invadir cidades? Pessoas a morrer por pátrias? Um país a invadir outro? Fronteiras redesenhadas? Não é suposto ser deste século. Mas é. É e põe em causa a narrativa filosófica predominante no Ocidente: a guerra na Ucrânia é uma cavalgada da Modernidade adentro da Pós-Modernidade.

E de repente há outra vez tanques. E de repente há outra vez um doido com vontades hediondas. E de repente há um país invadido e mães a despedirem-se de filhos. E de repente há cães, prédios e fotografias tipo passe que ficam para trás. Vidas tipo passe que ficam para trás. Histórias que não dão para resgatar porque o prédio levou com bombas. E de repente há bombas. E de repente há mortos: soldados e civis. E de repente há guerra na Europa. E de repente a humanidade dá de caras consigo: e repara que ainda é a mesma do tempo dos seus pais.

«Minha dor é perceber/ Que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos / E vivemos como os nossos pais», cantava Elis Regina.

Quem diria: guerra, senhor. O «cheiro a carne assada humana» de volta à Europa. Putin decidiu demonstrar aos filósofos ocidentais que afinal a história não chegou ao fim. Cá estávamos: nos nossos sofás, confortáveis com os doces do capitalismo; depressivos com a falta de espírito da pós-modernidade; distraídos com corpos sexys no Instagram.

E de repente, puff: guerra na Europa.

Parece que já não pertence a este mundo. Tanques a invadir cidades? Pessoas a morrer por pátrias? Um país a invadir outro? Fronteiras redesenhadas? Não é suposto ser deste século. Mas é. É e põe em causa a narrativa filosófica predominante no Ocidente: a guerra na Ucrânia é uma cavalgada da Modernidade adentro da Pós-Modernidade.

Que «já não havia pátria», aprendemos. Que «já não é preciso exércitos», ouvimos. Que o «demoliberalismo venceu», lemos. Que a «Teoria Realista está ultrapassada», ponderamos. Que a «Europa está espiritualmente à deriva, emaranhada num ennui patológico», refletimos. Mas, afinal, tudo isso se esfarelou. Tudo se esfarelou porque o Homem decidiu cumprir-se, indo assim ao encontro da sua natureza: má, voraz, animal.

A Rússia levou a Modernidade a rebentar com o portão da Pós-Modernidade porque provou, mais uma vez, que o Homem não consegue fugir de si: quer território, poder, recursos. Os meus amigos progressistas perdoar-me-ão, mas o Homem anseia mais por território, poder e recursos do que por perceber a angústia de ser  transexual. O Homem anseia mais por território, poder e recursos do que por aprender sobre microrracismo. O Homem anseia mais por território, poder e recursos do que por entender o machismo estrutural. O Homem continua mais animal do que homem. A Humanidade é mais clássica do que pós-moderna. O Homem está mais próximo de si na brutalidade do que num poço de almofadas arco-íris.

E isso é mau.

Porque um poço de almofadas arco-íris é melhor do que um poço de brutalidade. Mas o Homem continua a pertencer mais ao segundo do que ao primeiro. E assim se manterá: por mais que se dome e sofistique, jamais o Homem romperá escancaradamente com a sua natureza.

Na escola aprendíamos História. E havia os totós como eu que fantasiavam com a origem das fronteiras, que se desconsolavam por já não se ‘fazer história’, que olhavam para soldados e tanques como coisas do passado. A guerra à porta de casa era coisa de livros.

Só que não.

Ucrânia, 2022. Os soldados saíram dos livros de História e marcham pelas suas pátrias. Os tanques ganharam animação e conquistam territórios. Os antigos desenhos das fronteiras tremem como varas verdes. A história, afinal, ainda se faz. A Europa continua o que era. A guerra não é démodé. Ainda se morre por países. Ainda se morre por fronteiras. Os tanques ainda mexem. As mães ainda sofrem. As armas dos videojogos passaram a reais. Porque essa vida ainda existe: ainda há sangue, dor, morte, mau cheiro e caos. Ainda há guerra. Por mais voltas que dêmos, por mais que vaticinemos a morte do Homem clássico, por mais que pintemos o céu com as cores do arco-íris, afinal «ainda somos os mesmos, e vivemos como os nossos pais».