Kiev virou uma fortaleza à espera do invasor, Mariupol um cemitério. Metade da população da capital conseguiu escapar, sobretudo mulheres, crianças ou idosos, anunciaram as autoridades ucranianas, e quem ficou prepara-se para resistir. Seja pegando em espingardas e cocktails molotov, montando fortificações, armadilhas contra tanques e barricadas nas ruas, ou cavando trincheiras nas florestas dos arredores. Já em Mariupol, no sul, mais de 1200 corpos foram recolhidos nos escombros, entre os pesados bombardeamentos a que esta cidade portuária tem sido sujeita, denunciaram as autoridades locais, que deram por si obrigadas a enterrar dezenas de concidadãos não-identificados em valas comuns.
Nesta cidade no sul da Ucrânia, cercada pelos russos, centenas de milhares de pessoas estão sem comida, água, eletricidade ou cuidados médicos, denunciou o Comité Internacional da Cruz Vermelha, esta quinta-feira. O cenário é de horror.
“As pessoas começaram a atacar-se umas às outras por comida. Pessoas começaram a arruinar o carro de alguém para tirar para fora a gasolina, relatou o responsável pela Cruz Vermelha em Mariupol, Sasha Volkov, ao Guardian. Pelo meio, os bombardeamentos não param, e as bombas russas até atingiram um hospital pediátrico, esta quarta-feira, surgindo um crescente coro de condenações.
“Não compreendemos como é que no mundo moderno é possível bombardear um hospital pediátrico”, lamentou o vice-presidente da Câmara de Mariupol, Serhiy Orlov, à BBC, relatando que pelo menos 17 pessoas foram feridas no ataque ao hospital pediátrico de Mariupol, incluindo crianças, mulheres, médicos, tendo três outras morrido, uma delas uma menina.
Já a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para um padrão de ataques a instalações médicas pelas forças russas. Que estão cada vez mais frustradas pela surpreendente resistência ucraniana, recorrendo a bombardeamentos cada vez mais pesados e indiscriminados para subjugar as forças entrincheiradas nas cidades do leste.
“Mesmo em tempos de conflito, temos de proteger a santidade e segurança dos cuidados de saúde, um direito humano fundamental”, apontou a OMS, à CNN. A organização “condena fortemente estes ataques. Ataques contra cuidados de saúde violam a lei internacional”.
Quanto às autoridades russas, nem sequer negaram ter atacado o hospital pediátrico de Mariupol – na imprensa russa, multiplicam-se alegações que seriam as forças ucranianas, às ordens do seu Governo de “neonazis” e “viciados em droga”, nas palavras de Putin, que estariam as destruir as suas próprias cidades, como propaganda anti-russa – e justificaram que não haveria quaisquer mulheres e crianças a serem lá tratadas. Em vez disso, combatentes do batalhão Azov – uma milícia nacionalista ucraniana, de inspiração neonazi, que de facto tem o seu foco em Mariupol – estariam abrigados no hospital, acusou Sergei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros russos.
Dado que é Lavrov que está a cargo da parte russa das negociações na Turquia, iniciadas na quarta-feira, o fosso entre a perspetiva dos dois lados parece cada vez mais profundo. Não é de estranhar que não tenham conseguido chegar a um cessar-fogo.
Como tal, a capital ucraniana está na expectativa de um assalto russo a qualquer momento, com as forças russas a moverem-se no seu flanco, combatendo no oeste do rio Dniepre.
“Kiev foi transformada numa fortaleza. Cada casa, cada edifício, cada posto de controlo foi fortificado”, assegurou o presidente da Câmara, Vitali Klitschko, um antigo boxer e campeão de pesos-pesados, falando perante na televisão ucraniana, esta quinta-feira, citado pela France Press.
“Pouco menos de dois milhões de pessoas fugiram”, relatou Klitschko, abrindo caminho à guerra total em defesa da capital, diminuindo o receio de apanhar não-combatentes pelo meio.