As guerras de que somos vítimas

Precisamos da ajuda dos meios de comunicação para nos recuperarmos do estado de agonia coletiva em que nos encontramos. Descrever a agonia exaustivamente, de todos os ângulos e ao minuto, não contribui para a resolver nem nos alivia a dor. Agrava-a extraordinariamente. Empurra-nos mais um pouco para o fundo.

por Sofia Aureliano

Não há forma de comprar os custos que a guerra na Ucrânia tem para os diretamente envolvidos, sobretudo para os ucranianos cujas vidas foram completamente destruídas e as famílias dilaceradas, com os custos que a guerra tem para quem assiste à distância. É sobejamente distinta a medida das coisas. O que não quer dizer que não possamos ser, também nós, vítimas da mesma guerra. E que seja desadequado ou insensível lembrar isso.

1. E nós? Como estamos?

Todos os dias vemos reportagens in loco sobre os efeitos mais penosos e imediatos. Esses, para o bem ou para o mal, têm eco nas nossas casas e imperam nas nossas conversas do dia-a-dia. É preciso, contudo, também pensar em nós, nas nossas perdas, na nossa incapacidade de planear a curto prazo, na angústia que nos últimos anos desenvolvemos. Primeiro, com a pandemia; agora, com a guerra. Foi-nos roubada a esperança. Está a ser-nos negado o hoje e ameaçam retirar-nos o amanhã. Esta é uma tortura prolongada, que terá consequências sérias a longo prazo.

Importa fazer uma pausa, desligar as televisões, deixar de ouvir os enviados especiais e os relatos trágicos de cenários que só estávamos habituados a ver nas séries e nos filmes, e perguntar: o que é feito de nós? Como é que nós estamos?

Não estamos bem. Não podemos estar. Os nossos problemas não deixam de existir porque há uma guerra, uma preocupação coletiva e um inimigo de todos. Nem os nossos nem os da sociedade. O facto de os ignorarmos não os faz desaparecer. Pelo contrário. Torna-os mais pesados, mais presentes, mais parte de nós. E, por nos sentirmos sozinhos, deixamo-nos mais facilmente arrastar por eles. Para o fundo do poço.

2. O dia-a-dia continua.

Os hospitais não deixaram de estar sob pressão. A mortalidade não desceu. O número de pessoas à espera de consulta e de cirurgia não diminuiu. Faltam médicos. Faltam enfermeiros. A pandemia não acabou. Nem as suas consequências mais nefastas. Os demais doentes continuam doentes. Os milhões de portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza não enriqueceram. As mais de oito mil pessoas sem-abrigo não encontraram teto. Continuam a lutar por cada refeição. Não têm assistência médica nem ajudas do estado. A violência doméstica continua a aumentar. Encapotadamente. Há cada vez mais empresas em risco de insolvência. A exclusão social permanece uma realidade cruel e alimenta o fosso das desigualdades. O aumento do preço dos combustíveis está a ter grande repercussão no poder de compra. Desde há muitos meses. Não é fruto da guerra. A inflação agrava as perspetivas e faz aumentar exponencialmente os preços. A natalidade está cada vez mais comprometida. O sistema de pensões continua em risco. Os salários médios mantêm-se na cauda da Europa. O custo médio de vida é inversamente proporcional em relação aos restantes estados membros. A carga fiscal não desceu. O preço das casas continua a ser impeditivo para qualquer projeto de futuro. A educação continua a evidenciar dificuldades na conciliação entre oferta e procura. Há problemas de qualificação. De colocação. Há falta de computadores. Ainda. Chove dentro das salas de aula. Continua a haver amianto nas escolas. O emprego jovem permanece um desafio. A seca afeta gravemente a atividade agrícola. E a pecuária. A justiça continua lenta e ineficaz. A cultura continua órfã e, em muitas casos, incompreendida. Os números da sinistralidade rodoviária voltaram a subir e equivalem há queda de três aviões, anualmente. Tudo isto é uma realidade. A nossa. E continua a consumir-nos todos os dias. A grande diferença é que deixou de ter valor-notícia.

3. Os media e os seus deveres.

Seria assim tão desapropriado que as agendas mediáticas pudessem refletir, a par das nossas preocupações globais e coletivas, também aquilo que se mantém mais relevante para cada um de nós? Ser o reflexo do que acontece na sociedade? Fará de nós seres empedernidos e insensíveis desejar que a nossa realidade, única e particular, também tenha espaço de antena? Ou seremos menos solidários ou generosos – e, em consequência, seres menos dignos – por achar que os meios de comunicação deveriam honrar o dever maior de nos alimentar a esperança e contribuir para nos manter à tona de água? Que deviam dar eco às boas notícias?

Também este não é um texto positivo. E talvez, neste encalço de ideias, tivesse obrigação de ser. Mas tem o propósito de abanar e, por isso, será mais eficaz o tom agressivo. De ataque. De crítica. De inquietação.

Precisamos da ajuda dos meios de comunicação para nos recuperarmos do estado de agonia coletiva em que nos encontramos. Descrever a agonia exaustivamente, de todos os ângulos e ao minuto, não contribui para a resolver nem nos alivia a dor. Agrava-a extraordinariamente. Empurra-nos mais um pouco para o fundo.

Não precisamos de duas horas de notícias redundantes sobre a tragédia na Ucrânia para compreendermos o flagelo. Não são necessários dezenas de diretos repetidos para dar prova de vida, e de reportagem, em cenário de guerra para termos noção das atrocidades que se cometem atualmente à nossa porta. Nem precisamos de ouvir rotundas análises sobre o que nos poderá acontecer considerando vinte cenários diferentes para ativarmos o nosso espírito solidário.

Precisamos, sim, de proporcionalidade da informação. De pertinência. De relevância. E de saber que o nosso dia-a-dia como portugueses também tem o seu espaço. Não deixámos de existir. Precisamos de recordar as coisas más, que se mantêm. E saber das boas, que nos iluminam o espírito e nos mostram a luz no topo.

Também vivemos uma guerra interior. Cada um de nós, à sua medida. Mas em todas as medidas, com ampla capacidade destrutiva. Para sobreviver, é imperativo que os meios de comunicação sejam nossos aliados neste conflito.