Pedro Matos trabalha há 13 anos no Programa Mundial Alimentar das Nações Unidas, agência da ONU laureada com o Nobel da Paz em 2020. É um dos portugueses (em 2020 eram 11) na equipa distribuída por 80 países, que diariamente garante a entrega de alimentação básica a perto de 100 milhões de pessoas, a maioria crianças. Tem a base no Sudão, onde aterrou em 2009, mas já foi chamado a várias crises de refugiados e deslocados internos: a fuga dos rohingya para o Bangladesh em 2018, a tragédia humana causada pelo ciclone Idai na Beira em 2019 ou o conflito no Sahel, no Mali. Foi agora designado como um dos coordenadores de emergência do Programa Alimentar Mundial na guerra na Ucrânia. Ao telefone com o i de Budapeste, onde está instalado, explica a intervenção que estão a planear para durar três meses e abranger três milhões de pessoas e fala da preocupação em criar uma resposta sustentada mais do que em construir de raiz um “sistema paralelo”. E da solidariedade internacional ainda muito aquém das necessidades, das “contas” sobre o acolhimento de refugiados que os países podiam fazer de outra maneira e dos receios de que a concentração de donativos para Ucrânia destape, ainda mais, a miséria noutros cantos do planeta.
Que ambiente tem tido à sua volta em Budapeste?
Aqui na Hungria há uma estranha normalidade para um país que já recebeu 280 mil refugiados. Continua a haver imensos turistas, mas nota-se já muito a presença dos refugiados, com muitas matrículas ucranianas e ucranianos nas ruas. Os hotéis estão cheios porque o Governo tem estado a reservá-los para colocar as pessoas. Por exemplo, o hotel onde temos estado a trabalhar tem cerca de 80 famílias em 160 quartos. Os países mais desenvolvidos têm muita capacidade de absorção de refugiados mas dá para imaginar a situação que se vive na Polónia, que já recebeu mais de dois milhões de pessoas. Começa-se a ver edifícios escritórios vazios transformados em alojamento temporário.
Mesmo na Hungria, a informação que tem sido veiculada é que as crianças não estão a ter aulas presenciais para que as escolas possam receber refugiados.
Sim, o Governo ativou o regime covid-19 da tele-escola para poder libertar as escolas.
Trabalha há mais de dez anos no Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas e já esteve em cenários muito diferentes. Alguma vez tinha visto algo desta escala?
Não. Acho que desde a Segunda Guerra Mundial que não há fluxos de refugiados desta dimensão. Estive no Bangladesh com os refugiados rohingya e tivemos um milhão de pessoas [a fugir da Birmânia]. Foi muito mas foi um milhão de pessoas num mês. Aqui tivemos um milhão de pessoas a fugir da Ucrânia em dez dias e dois milhões de pessoas nos segundos dez dias. Ou seja, em 20 dias temos três milhões de refugiados e está a acelerar.
Têm ideia se esse número pode estar subestimado, sabendo-se que a Ucrânia tem 44 milhões de habitantes?
Não creio, os países têm controlado a entrada de pessoas nas suas fronteiras. É preciso ver que por um lado os homens em idade de combate não podem sair, o que retira uma grande proporção de pessoas. E depois há imensas famílias que estão deslocadas dentro da Ucrânia mesmo separadas. Sabemos que há imensos deslocados internos do outro lado da fronteira a ver se a situação piora ao ponto de as crianças e mulheres terem de sair mas que por agora se mantêm com a família. Neste momento temos a estimativa de dois milhões deslocados internos e aí pensamos que de facto os números podem ser superiores porque temos pessoas que se mudaram, que reservaram turismos rurais, quartos em pensões ou que estão a ficar com familiares do lado ocidental do país e que escapam mais a este sistema de controlo.
Tem havido uma solidariedade sem precedentes na resposta aos refugiados, desde logo nos países de fronteira da Ucrânia mas por toda a Europa. Olhando para a escala desta fuga, parece-lhe que existe uma perceção do apoio que será necessário a médio e longo prazo para acolher e integrar estas pessoas?
Penso que é preciso perceber que os países à volta da Ucrânia são muito diferentes. Se a Polónia ao fim de receber dois milhões de refugiados ainda está a dar conta do recado, a Moldávia ao fim de 100 mil já nos tinha pedido ajuda. O músculo financeiro e a capacidade destes países para absorverem pessoas são muito diferentes, desde logo porque as populações são muito diferentes – a Moldávia tem 2,6 milhões de habitantes e a Polónia quase 40 milhões. Mesmo nós não estávamos cá por isso estamos ainda a fazer todo o reconhecimento e mapeamento. Tínhamos fechado as operações na Ucrânia em 2018 depois de quatro anos de apoio na guerra do Donbass. Agora tivemos de começar de raiz e criar presença nos países à volta para apoiar no acolhimento de refugiados e depois dos deslocados internos e é toda essa planificação que temos estado a fazer. A Hungria por enquanto tem 250 mil refugiados mas será que quando chegarem a 500 mil ou um milhão podem continuar a receber? Ao mesmo tempo estamos a trabalhar para garantir a resposta alimentar dentro da Ucrânia, a mapear as organizações que podem fazer a distribuição de comida e associações húngaras por exemplo que podem trabalhar lá dentro e que já têm experiência.
A ONU estima que haja 12 milhões de ucranianos a precisar de apoio de emergência. São os números mais atuais?
É o número que inclui refugiados e não refugiados e é a dimensão que achamos que pode vir a tomar esta emergência.
E neste momento o apoio que tem sido demonstrado pelos países e doadores é suficiente ?
Não temos donativos suficientes neste momento. A ONU fez um pedido de cerca de 590 milhões de dólares para a assistência alimentar através do Programa Alimentar Mundial de três milhões de refugiados nos próximos quatro meses e ainda só recebemos menos de 100 milhões de dólares, portanto estamos longe de conseguir chegar aos valores que precisamos. Parecem valores elevados mas alimentamos uma pessoa com 16 euros por mês, cerca de meio euro por dia. Estes números enormes são mais sintomáticos da escala do problema do que o dinheiro que é necessário para resolver os problemas de segurança alimentar e fome nestes países.
A Ucrânia é o celeiro da Europa. Ouvi-o já falar do trabalho que estão a tentar fazer para que sejam aproveitados os cereais e escoada a produção nacional. Têm conseguido ou acabam por esbarrar em dificuldades logísticas?
Temos conseguido aos poucos. Temos cerca de 55 mil toneladas de comida em movimento, à volta de 3 mil camiões, e destas 55 mil toneladas cerca de seis toneladas estão a ser movimentadas de dentro da Ucrânia, o que dá cerca de 40 camiões. Não é muito mas é qualquer coisa. Em Kharkiv estamos a conseguir alimentar as padarias com cereais. Numa padaria estamos a abastecer cereais todos os dias para produzirem 15 toneladas de pão e já chegámos a mais de 200 mil pessoas. Muitas das parcerias que estamos a tentar fazer são nesta lógica mais local do que tentarmos fazer coisas de raiz. No oeste da Ucrânia, mais do que dar comida porque há supermercados, estamos a dar vouchers para as pessoas usarem nos supermercados – temos já uma parceria com uma cadeia – e a tentar que existam locais onde podem levantar dinheiro para poderem fazer as suas compras. Enquanto os supermercados estiverem a funcionar preferimos esta a abordagem que permite guardar a comida para o Leste do país, onde todos os sistemas já colapsaram.
Sendo esta a resposta de emergência e tendo em conta que agricultura e sementeiras serão afetadas, estão a preparar-se para dar apoio alimentar na Ucrânia durante quanto tempo?
A nossa resposta de emergência tem a duração de três meses. É uma altura em que temos menos mecanismos de controlo por exemplo para evitar que exista comida desviada porque o mais importante é garantir a resposta humanitária, e é por isso também que tem esta duração. O objetivo depois passa por garantir uma resposta mais sustentada e nesse aspeto a Ucrânia tem mecanismos já instalados, tem uma Segurança Social, tem um rendimento mínimo social, tem sistemas internos e gostávamos que qualquer ajuda que déssemos daí para a frente não fosse um sistema paralelo mas se integrasse dentro das transferências sociais da Ucrânia. Por isso estes três meses em vez de serem usados para criar coisas do zero vão ser muito para articular respostas e trabalhar numa resposta mais organizada, mesmo que depois seja preciso continuar a dar apoio.
Já admitiu o cenário de poder ser necessário criar campos de refugiados para esta guerra. É só um cenário ou já está mesmo a ser planeado?
Estamos a começar a olhar com muita atenção para isso, não tanto nós no programa alimentar mundial mas na ONU. A Polónia tem dois milhões de pessoas, já não consegue receber mais pessoas em zonas urbanas e está a começar por enviá-las para zonas rurais e a certa altura há um limite para o número de pessoas que é possível acolher em zonas construídas. Não sabemos se o fluxo de refugiados vai parar por aqui nos três milhões ou se vai chegar aos 5 milhões ou 10 milhões e portanto nessa escala não há muito mais soluções que não seja construir abrigos temporários para alojar as pessoas enquanto for preciso. A criação de grandes concentrações de abrigos temporários é sempre uma possibilidade mas vai depender muito da capacidade que os Estados têm para absorver mais pessoas e do fluxo de pessoas.
Mas tinha a expectativa que numa crise destas no coração da Europa pudesse haver alternativas, até como foi possível criar estruturas de alojamento e internamento na pandemia?
A diferença é que na covid-19 estávamos a falar de estadias de dias e os refugiados podem precisar de alojamento durante meses ou anos. Não sabemos quando é que as pessoas que saíram agora do país vão ter condições para voltarem. E há problemas reais de abuso sexual, de conflito, de criminalidade quando temos dezenas ou centenas de pessoas durante muito tempo debaixo do mesmo teto. Ter pessoas num ginásio por exemplo resolve o problema inicial e as pessoas se não estiverem ao frio ficam muito agradecidas, mas se isso se mantém durante meses não é sustentável e os mais vulneráveis – crianças, mulheres e mais velhos – começam a ser vítimas de abusos. E não digo só abusos sexuais, mas financeiramente. Começa a haver roubos. Portanto ter muitas dezenas ou centenas de pessoas debaixo do mesmo teto não é uma solução sustentável a longo prazo.
Num campo de refugiados não há também esses riscos?
Num campo de refugiados temos abrigos temporários mas uma estrutura de cidade. Temos ruas, temos abrigos que permitem às famílias estarem juntas num espaço isolado das outras, podemos criar iluminação pública. Os maiores campos de refugiados em que já trabalhei são cidades.
O que diz é que pode não a ser a pior solução no meio da tragédia humanitária?
Exato. E pode ser também que a Europa perante isto finalmente decida que, em vez de termos campos de refugiados gigantescos no centro da Europa, deixamos de ter a convenção de Dublin que obriga as pessoas a serem alojadas no primeiro país onde chegam e distribuamos estas pessoas por vários países a uma escala muito maior que estamos a fazer. Uma coisa é a Polónia receber 10 milhões de refugiados numa população de 37 milhões. Outra coisa é a União Europeia, com 500 milhões de habitantes, redistribuir 10 milhões de refugiados. E se isso for possível, possivelmente não precisaremos de ter campos de refugiados.
Sem essa redistribuição, poderemos ver o aumento de movimentos de extrema direita e anti-refugiados nesses países mais sobrecarregados?
É verdade mas sabemos que esses movimentos também existem por muito poucos refugiados que um país esteja a receber. Um bom exemplo é Portugal em que tradicionalmente recebemos cerca de 40 refugiados por ano e temos pessoas contra o acolhimento de refugiados.
Já falou do risco de abusos sexuais e tem havido alertas para o tráfico humano. Não sendo a esfera de intervenção do Programa Alimentar, têm relatos desses aí?
Só tenho conhecimento do que vem sendo reportado na comunicação social mas parece plausível na atual situação e é um dos riscos quando temos grandes números de pessoas em movimento perante esta criminalidade organizada.
Temos visto muito voluntarismo na organização de autocarros, voos, pessoas que fazem a viagem até à fronteira para ir buscar outras sem se saber muito bem quem é quem. Parece-lhe o melhor modelo de socorro ?
Pois… Nestes movimentos há formas muito diferentes de fazer as coisas. Há pessoas que arrancam com uma carrinha, apanham pessoas na rua e trazem de volta e é preciso perceber que mesmo que sejam bem intencionadas, é esta a forma de atuar dos traficantes. Dizem que estão a levar as pessoas para um sítio de segurança mas estão a raptá-las. Portanto isto não deve ser feito assim nem deve ser incentivado. E depois há de facto pessoas que têm uma organização por exemplo em Portugal e comunicam uma organização na Polónia, uma igreja local, uma Cáritas, e fazem a ponte já com uma pré-identificação das pessoas, o que já faz mais sentido.
Mas sente que tem faltado sensibilização de quem quer ajudar ou mesmo quando isto é dito é difícil controlar estes movimentos?
Acho que acaba por ser mais sintomático de que devia haver uma resposta de redistribuição de pessoas entre Estados a uma escala maior, em que esse trabalho era feito pelos serviços de estrangeiros e fronteiras e serviços sociais dos diferentes países e não individualmente. É mais sintomático da falta de resposta que os Estados estão a dar.
Faltam meios nos países para garantir essa resposta?
Sei que o SEF está a enviar pessoas, como estão a fazer os diferentes países, e tenho contacto com a embaixada, mas tinha de haver um mecanismo europeu muito mais expedito para relocalizar centenas de milhares de pessoas. A certa altura não há noção da dimensão da resposta mais formal e daquela que é mais voluntarista.
Estamos a pagar o preço da falta de organização e solidariedade na crise de refugiados do Mediterrâneo?
Sim. Nessa altura estava nos rohingya mas a grande discussão cá era se 160 mil refugiados deviam ser redistribuídos da Itália e da Grécia para o resto da Europa. Eram 160 mil refugiados a distribuir por países com 500 milhões de pessoas. E isso era algo que me chocava porque eu estava no Bangladesh a ver chegar 80 mil refugiados por dia. Aquilo que nós estávamos a discutir se era possível relocalizar num ano era o número de pessoas que o Bangladesh estava a receber em dois dias. E o que vimos foi esse apontar de dedo entre os países que recebem e que com razão dizem que precisam de mais solidariedade e os países do centro europeu que defendiam que os refugiados deviam ficar no primeiro local de chegada.
Em Portugal, recebemos tantos refugiados da Ucrânia em três semanas como nos últimos sete anos, cerca de 10 mil. É revelador?
Não tenho essa opinião. Antes da crise de refugiados da Síria e do norte de África e das deslocalizações de Grécia e Itália de facto recebíamos muito poucos refugiados, 40 pessoas por ano, mas Portugal foi dos poucos países europeus que duplicou a sua quota de 4500 para quase 10 mil. Depois ou as pessoas ou não vieram ou vieram e foram para outros países, mas isso parece-me menos importante do que Portugal ter passado a mensagem que é um país aberto para recolher pessoas que estão a fugir. O que temos visto agora é uma continuação dessa atitude. O papel de Portugal é ter as portas abertas a refugiados. Se as pessoas decidem partir para outros países, já é uma opção delas, mas Portugal cumpre a sua obrigação à luz do direito internacional de abrir as portas a quem foge da guerra. E acho que isto não deve ser subestimado, porque muitos países decidiram no passado não o fazer. É um risco político porque joga muito contra todos esses movimentos que dizem “nós primeiro”. Portugal podia ter optado por um caminho mais confortável e seguro e não tomou e isso parece-me de louvar.
Já cá, vê problemas de integração? Não tanto de refugiados, mas com migrantes económicos tem havido denúncias de abuso laboral.
A parte da resposta aos migrantes económicos não tenho acompanhado tanto. Em relação aos refugiados penso que se poderá investir no escalar na resposta. É muito diferente ter um sistema preparado para acolher 40 pessoas por ano ou 11 mil em duas semanas. Todos os países precisam de investir nesta resposta para garantir que as pessoas são integradas e penso que se estará a trabalhar nesta área, mas é um desafio de preparação muito diferente para um país. E o que dou comigo a pensar é que seria ótimo se nós decidíssemos ao contrário. Em vez de dizermos agora podemos acolher 10 mil ou 20 mil, que Portugal dissesse assim: temos 2 mil e tal freguesias, qual é o número de pessoas que gostávamos e podíamos acolher? É uma família por freguesia, dez famílias por freguesia? Dez famílias por freguesia são cerca de 25 mil famílias. Se cada família tiver quatro pessoas, são 100 mil pessoas. Parece muito, mas dez famílias por freguesia não parece. Podíamos pensar desta forma e liderar a Europa sendo solidários em algo que não é muito quando fazemos as contas a quantas pessoas espalhadas pelo país isso representaria. E isso fazia a diferença quando hoje vemos países que recebem 100 mil, um milhão, dois milhões de pessoas e conseguem absorvê-las e países que acolhem pessoas mas a uma escala muito menor.
Tem havido no meio desta fuga a ideia de que problemas de falta de mão-de-obra por exemplo cá podem ter aqui uma oportunidade. Como é que olha para esta expectativa?
Há duas componentes: um migrante económico e um refugiado são pessoas diferentes. Portugal tem a obrigação à luz do direito internacional de receber refugiados, no caso de migrantes económicos pode definir se o número de pessoas é compatível com as ofertas de trabalho que há. Agora idealmente, mesmo os refugiados, não devem ficar dependentes dos serviços sociais do Estado durante muito tempo e deviam ser encaminhados para o mercado de trabalho o mais rapidamente possível. E esse trabalho de mapear as competências que as pessoas têm com a oferta de trabalho disponível é um dos aspetos a focar para haver soluções sustentáveis. Mas são duas questões diferentes: os fluxos de migrantes económicos são ajustados à oferta mas os refugiados temos a obrigação dos receber.
E é possível traçar um perfil das pessoas que estão a fugir da Ucrânia?
Antes de saírem não e isso seria altamente perigoso, porque aí um país poderia dizer por exemplo que só aceita refugiados altamente qualificados. Mas depois de chegarem penso que essa identificação pode ser feita.
Ao mesmo tempo que se vive esta tragédia humanitária houve nos últimos dias o alerta da ONU para a catástrofe no Iémen, onde se estima que haja 19 milhões de pessoas a passar fome, além de muitas outras crises. Como gerem todas estas urgências e até que ponto é que a concentração de esforços na Ucrânia, como já se viu na resposta à covid-19, pode deixar outros problemas ainda mais destapados?
É um problema de facto. Os media vão muito atrás daquilo que é a crise mais recente. Eu trabalho no Sudão. Trouxeram-me agora para a crise na Ucrânia e houve uma distribuição do staff do Programa Alimentar Mundial, mas trabalho há dez anos no Darfur. E a primeira reação que as pessoas têm é: “O Darfur? Mas isso ainda bomba?”. Ou seja, lá porque saíram do radar dos media, essas crises não desaparecem. A guerra no Darfur foi em 2004 e continua a haver dois milhões de deslocados internos a precisar de ajuda alimentar.
Quase tantos como os que contabilizam na Ucrânia.
Sim. Portanto o Darfur não desapareceu, o Congo não desapareceu, a guerra no norte da Etiópia não desapareceu, o Iémen também não nem a Síria ou o Afeganistão ou as pessoas que estão a fugir do norte de Moçambique. Nenhuma destas crises desapareceu só porque temos uma mais recente e mais premente e é de facto um problema para nós manter a chama viva.
O próprio programa alimentar teve de deslocar pessoal. Isso afeta a resposta nos outros países?
Tentamos distribuir o mal pelas aldeias. Estamos em 80 países. No Sudão temos 1300 pessoas no staff e viemos três ou quatro. Cada país contribuiu com pouca gente para virmos 70 pessoas para aqui. Os fundos são a questão mais premente.
Nesse sentido, esta crise pode levar a um agravamento das outras?
Pode se os doadores não interpretarem a guerra da Ucrânia como um custo adicional e redistribuírem apenas os fundos que já tinham planeado para apoiar a resposta de emergência em 2022.
E isso está acontecer?
Ainda não notámos mas os doadores também ainda não fizeram as suas contas. E é uma questão que se coloca a todos os países, também a Portugal, que não tem de doar tanto como os Estados Unidos mas pode doar tanto como a Irlanda ou como o Luxemburgo, que doam muitos milhões para o Programa Alimentar Mundial. Os países têm todos a obrigação de aumentar a sua contribuição quando há uma crise, se não de facto estamos a destapar de um lado para tapar do outro.
Há quatro meses o Programa Alimentar Mundial e a ONU estavam no meio de uma polémica com o milionário Elon Musk sobre quanto custaria acabar com a fome no mundo. O que ficou desse episódio?
Aparentemente o Elon Musk deu 6 mil milhões de dólares mas não a nós, o que ainda assim nos deixa muito contentes. A mensagem do nosso diretor na altura foi que por causa das vendas online e consequências da covid-19 os bilionários tornaram-se ainda mais ricos. No caso do Elon Musk, a polémica foi que nós precisávamos de 6 mil milhões de dólares no ano passado para suprir necessidades de alimentação urgentes – não acabar com a fome, mas garantir que todas as pessoas tinham o mínimo para comer – e nesse mês o Elon Musk tinha ganho 9 mil milhões a mais. E a mensagem foi que os ganhos adicionais de um só bilionário eram suficientes para suprir as necessidades de alimentação das pessoas todas no mundo que não tinham a comer. Portanto ainda bem que pegou nisso e que tivemos a oportunidade de nos explicar.
Mas não houve donativo à ONU?
A nós não, mas aparentemente ele doou os 6 mil milhões de dólares a organizações humanitárias e por isso ainda bem.
Era altura de voltarem a fazer?
Era.
Passando três semanas do início desta guerra, que momentos têm sido mais marcantes para si?
Não entrei na Ucrânia ainda, estamos aqui ao lado. A escala deste conflito é impressionante. Fiz a resposta ao Idai em Moçambique e apesar da tragédia ser muito grande é um desastre natural e não há ninguém a quem culpar. Há as alterações climáticas, mas não há um culpado imediato e portanto há um sentimento de que estamos todos a puxar para o mesmo lado. Nas guerras não, são todas evitáveis. E há uma sensação um bocado de revolta porque isto tudo era completamente desnecessário. Sentimos que andamos atrás da geopolítica de alguns a apanhar o que resta e a tapar o que podemos e que não conseguimos fazer as coisas o suficiente rápido e à velocidade que seria preciso. Mas este período é preciso e a certa altura as coisas vão ao sítio, mas a esta altura há um bocado um sentimento de impotência por não conseguirmos fazer o suficiente por toda a gente.
Falando com alguns voluntários portugueses que têm falado com quem foge da Ucrânia, partilhavam a certa altura uma maior identificação por ver pessoas “como nós”. Tendo vivido em realidades tão distintas, como olha para esta reação?
Acho que essa identificação com as pessoas que são como nós é algo natural que temos de combater em nós próprios. A ideia de que quando uma pessoa que não é parecida connosco morre nos diz menos do que se for parecida connosco se calhar é uma evolução biológica natural que era muito útil quando éramos caçadores recoletores e vivíamos em comunidades pequenas – e as pessoas diferentes eram ameaças –, mas na nossa vida atual não só não é útil como é uma atitude claramente racista. Temos de ter um bocado a introspeção de perceber que o nosso cérebro faz isto, tal como o sexismo se calhar tinha vantagens num passado remoto, e combater este efeito. E com isso percebermos que não é mais inaceitável ter uma tragédia a acontecer na Europa do que no Médio Oriente porque as pessoas parecem diferentes ou são culturalmente diferentes. Essa maior empatia com pessoas parecidas connosco pode ser algo com que nascemos ou somos educados, mas que temos de combater todos os dias e tento fazer isso.
Estes anos no Sudão têm sido uma escola?
Vivo em África há 13 anos e reconheço que antes desta vida também tinha os meus preconceitos e que tem sido um processo de aprendizagem. Lembro-me por exemplo da minha surpresa quando encontrei empresas de desenvolvimento de software espetaculares no Quénia. Eu não esperar isso era um problema meu, não era um problema do Quénia. Estava na minha cabeça. Diz mais o quão pouco eu sei da capacidade de países como este para produzir coisas a nível mundial do que desses países em si. E quando pensamos assim, percebemos que temos de ir à procura e tentar conhecer mais os outros. E a mesma coisa com as tragédias que acontecem nos vários países. Uma vez chegados ao Darfur ou ao norte de Moçambique ou à Etiópia e quando estamos num campo de refugiados a ver as pessoas a chegar a um centro de distribuição de comida e elas nos contam as histórias, não são muito diferentes entre Sarajevo, o Tigré ou a Ucrânia. São sempre as mesmas. Histórias de pessoas que tiveram de fugir à frente das bombas, pegando nos seus bebés, que perderam parte da família pelo caminho e chegaram aqui com a roupa que têm no corpo. Estas histórias são iguais em todo o lado.
Na hora de ajudar, o apelo é para se lembrar esses conflitos todos?
Sim e acho que este é um processo importante dentro da nossa cabeça para nos tornarmos pessoas melhores. Pensar eu não sou racista, não sou sexista e ver que às vezes temos pensamentos que acabam por ir até contra a impressão que temos de nós próprios.