Os recados de Marcelo

Costa desenhou  um Governo a pensar na sua saída daqui a dois anos para uma liderança europeia. Marcelo pode deixar avisos ao primeiro-ministro para deixar o passaporte na gaveta.   

O XXIII Governo Constitucional toma posse esta quarta-feira no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, mas augura já uma era pós-Costismo, visto que o novo Executivo de António Costa junta pela primeira vez os quatros nomes que se posicionam no futuro do PS – Pedro Nuno Santos, Mariana Vieira da Silva, Fernando Medina e Ana Catarina Mendes.

A escolha não é inocente e anuncia uma evidente preparação da geração seguinte, já que o líder socialista nunca escondeu que quem quer chegar ao topo tem primeiro de acumular experiência governativa.

“Chegar a primeiro-ministro sem experiência governativa é um enorme risco”, afirmava, em dezembro, o secretário-geral do PS sobre o que se exige ao seu sucessor.

O horizonte político que todos pintam a Costa, e que o próprio nunca desmentiu, inclui voos mais altos. Contudo a maioria absoluta fez com que tivesse de voltar a assentar os pés em solo nacional por mais algum tempo do que equacionaria há uns meses, quando o Governo que estava em funções tinha ainda dois anos pela frente e o seu fim coincidia precisamente com o calendário das instâncias europeias, cujas lideranças, nomeadamente para o Conselho Europeu e Comissão Europeia, vão estar em aberto em 2024.

No rescaldo do congresso socialista, no final de agosto, uns meses antes do chumbo do Orçamento do Estado que precipitou o país para eleições antecipadas, a leitura de Belém era de que o secretário-geral não se recandidataria em 2023. “A minha análise é que [António Costa] não se recandidata”, sinalizou, na altura, o Presidente da República. Os sinais que Marcelo Rebelo de Sousa somava para a sua análise prendiam-se sobretudo com o desgaste pessoal de Costa, que nessa lógica só tenderá a agravar-se, uma vez que daqui a dois anos perfará oito anos no poder.

Certo é que uma possível saída de Costa a meio da legislatura pode desencadear uma nova crise política em 2024, altura em que, apesar de tudo, a máquina socialista já estará bem oleada. Ainda assim, a questão fica no ar: será que o primeiro-ministro vai abdicar de poder ter um papel importante nos destinos da Europa para ficar até ao fim e cumprir a maioria absoluta?

Ao i, o politólogo João Pereira Coutinho diz não querer acreditar que António Costa deixe o país a meio do mandato para seguir qualquer outro cargo que o seduza.

“Seria incompreensível que António Costa, com uma maioria absoluta e com os desafios que o país vai ter nos próximos anos, decidisse a meio do seu mandato aceitar um cargo europeu ou, aliás, qualquer que seja”, considerou. 

Na segunda-feira, Marcelo lembrou que “a crise política vivida inesperadamente”, em outubro do ano passado, que o levou a dissolver o Parlamento e antecipar eleições, “teve uma resposta do povo português” e que “nesse sentido, se virou uma página”. Neste “novo tempo”, sublinhou, ainda que “há desafios” a enfrentar, sobre os quais prometeu falar hoje, na cerimónia de tomada de posse do novo Governo. 

Estabilidade deverá ser a palavra de ordem do Chefe de Estado, o que implica necessariamente não haver crises nem eleições antecipadas, portanto será de indagar se Marcelo reservará uma parte do seu discurso para abordar um possível êxodo de Costa e os passos a adotar nesse cenário.

“Como governar em tempo de vacas magras nunca foi uma vocação de António Costa, talvez não ficasse mal ao Presidente da República relembrar os tempos exigentes que aí vêm, as necessidades de fazer as reformas que o país precisa, e nesse sentido aconselhar o primeiro-ministro para deixar estar o passaporte na gaveta”, reconhece Pereira Coutinho, apesar de antecipar que Marcelo não se vai pronunciar para já sobre convocar novas eleições caso Costa saia.

“Não estou a ver o Presidente da República a levantar esse problema, respondendo mais à especulação mediática do que propriamente a qualquer facto concreto. Agora, que pode relembrar os desafios que se apresentam ao país e que é hora de olhar para eles, não tenho dúvidas que irá fazê-lo e que deve fazê-lo”, conclui.

Em 2004, pela primeira vez na história do país, um primeiro-ministro abandonou o cargo para presidir à Comissão Europeia. A renúncia de Durão Barroso abriu uma crise política que durou até ao final desse ano. A Jorge Sampaio, Presidente da República à época, Barroso lembrou que havia uma maioria estável no Parlamento – uma coligação PSD/CDS – que permitia a formação de um novo Governo. Ignorando os apelos da esquerda para a marcação de eleições antecipadas, Sampaio deu posse a Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro, tendo o seu mandato sido um dos mais curtos de sempre, e determinante para a primeira maioria absoluta do PS.