No final de março havia um milhão e 235 mil portugueses sem médico de família, mais de 890 mil na região de Lisboa e Vale do Tejo. Os números foram publicados no Portal da Transparência do Ministério da Saúde esta semana e mostram um agravamento da falta de cobertura de médico de família, atingindo agora o valor mais elevado desde 2014, segundo os dados públicos disponíveis, que o i analisou. Depois de legislatura e meia em que o Governo socialista traçou como meta atribuir família médico a todos os portugueses, desígnio que já vinha do Executivo anterior, o mês mais perto do objetivo foi setembro de 2019, quando chegou a haver só 641 mil utentes sem médico. Desde então são já quase o dobro, num recuo de quase oito anos em menos de três. Com base na informação pública, só no final de 2014 se encontra um maior universo de utentes sem médico. Eram então 1,4 milhões, depois de terem chegado a ser mais de 1,8 milhões em 2011.
A trajetória não surpreende os médicos ouvidos pelo i, que alertam que a situação pode agravar-se este ano e pedem medidas urgentes, considerando que o novo objetivo do Governo de garantir que 80% dos portugueses estão abrangidos por Unidades de Saúde Familiar não resolve o problema – pode até agravá-lo. E apontam baterias aos próximos meses: em abril/maio é esperada a abertura do primeiro concurso do ano para a colocação de recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar no SNS, depois do no último concurso 30% das vagas terem ficado desertas. “Se não for feito nada de diferente, não se podem esperar resultados diferentes”, alerta ao i Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, considerando insustentável que não se tente parar esta trajetória perante as desigualdades que representa.
“Para estas pessoas é mais difícil todo o acesso ao SNS e a cuidados de saúde. É mais difícil terem as suas doenças crónicas vigiadas, é mais difícil terem a sua situação resolvida quando têm uma doença aguda como uma gripe ou uma gastroenterite, é mais difícil serem referenciadas para uma consulta hospitalar”, elenca Nuno Jacinto, chamando a atenção que este ano a previsão é de cerca de mil médicos possam reformar-se, atingindo-se um pico de aposentações, mas até 2024 poderão sair para a reforma 1700 médicos de família, o que pode tornar-se uma “catástrofe”, diz.
A esta a altura a associação estima que faltem cerca de 850 médicos de família. Por ano formam-se cerca de 500, mas só 350 têm ficado e ao fim de alguns anos outros acabam por sair, alerta Jacinto. “Mesmo que saiam só metade dos médicos que atingem a idade para se reformar sem penalizações, não vamos conseguir compensar estas saídas sem aqueles que se formam ficarem no SNS”, diz o médico.
Défice ainda é maior, avisa SIM Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, avisa que a falta de médicos de família ainda é maior, estimando que haja cerca de 300 mil utentes sem médico devido a baixas por doença e licenças de maternidade. “Na prática, temos mais de 1,5 milhões de pessoas sem médico além dos médicos que continuam mobilizados em centros de vacinação e áreas de doentes respiratórios”, diz, acusando o Governo de inação.
“Mais uma vez se verifica que quando se tenta resolver o problema com propaganda, e todos estamos lembrados dos milhares de médicos contratados pelo Governo, a realidade é sempre mais forte. Temos agora mais 400 médicos acabar a especialidade e dois sei que irão para a Irlanda”, continua o dirigente do SIM: “Perante isto, está-se a olhar para o Titanic. Como são as pessoas mais desfavorecidas as mais afetadas e essas não chegam aos decisores políticos, é um não problema. A situação é calamitosa e nos hospitais para lá caminha”.
Roque da Cunha adianta que, após vários pedidos nos últimos anos, os sindicatos receberam uma convocação para reunir pela primeira vez com a ministra da Saúde Marta Temido e esperam avanços. “Não havendo revisão das grelhas salariais, a transição das Unidades de Saúde Familiar de A para B, vai ser uma catástrofe e depois não se podem queixar de haver falsas idas às urgências. Uma pessoa que não tem o seu problema resolvido, onde é que vai?”, questiona, defendendo que a solução passa por um “contrato para a legislatura” e não por recorrer a médicos reformados ou às Misericórdias, “que não garantem sequer médicos nos lares”.
Também Jacinto defende que a única solução será garantir que os novos médicos ficam no SNS. E se o pico de aposentações era previsível, diz que a forma como os médicos de família foram “maltratados” durante a pandemia levou mais velhos a querer sair e mais novos a não querer ficar: “Nunca tivemos uma taxa de retenção tão baixa, não é coincidência”, diz.
Quanto à meta das USF, Jacinto avisa que não resolverá o problema, porque para serem constituídas têm de ter profissionais. “Se saírem dos centros de saúde para ir para USF, vamos destapar de um lado para tapar do outro”. Do lado do Governo, uma das questões pendentes é a regulamentação da dedicação plena, com objetivos e aumento salarial. “A exclusividade ou o nome que vier a ter, isolada, não resolve tudo. Se um médico for para uma unidade que devia ter quatro médicos e tem dois, que tem falta de meios técnicos, que não tem acessos, que não funciona, não fica lá muito tempo”, alerta o médico.