Em julho de 1973, quando Marcello Caetano se preparava para partir para Londres em viagem oficial, surge na imprensa londrina uma grave acusação: as tropas portuguesas tinham cometido atos de barbárie em Wiriyamu, um conjunto de aldeias indígenas no Norte de Moçambique.
A acusação fora feita por padres espanhóis, de Burgos, a um sacerdote inglês. O massacre teria sido perpetrado em fins de 72.
O comando-geral de Moçambique nega a acusação e Marcello, na viagem ao Reino Unido, diz tratar-se de propaganda antiportuguesa. Mas quando chega a Lisboa ordena um rigoroso inquérito aos acontecimentos. E semanas mais tarde, no Palácio de Queluz (para onde habitualmente mudava a Presidência do Conselho nos meses de Verão), será confrontado com fotografias trazidas a Lisboa pelo africanista Jorge Jardim, que não deixam lugar a dúvidas.
Chocado, o chefe do Governo demite o comandante em chefe da província, Kaúlza de Arriaga, e o comandante militar da região. E a seguir assumirá em nome do Estado português a responsabilidade pelo sucedido.
A tropa jamais lhe perdoará. Entendia que, tendo de optar entre os seus generais e os ‘inimigos de Portugal’, Marcello Caetano não deveria ter tomado as dores destes.
Cinquenta anos depois deste acontecimento, as tropas russas executam um terrível massacre na localidade de Bucha, no Norte da Ucrânia. As imagens também não deixam lugar a dúvidas: a destruição é medonha, há corpos espalhados pelas ruas, alguns com os pés atados e balas no crânio, sugerindo execuções a frio, há valas comuns.
Mas Vladimir Putin e toda a sua entourage repudiam de imediato a autoria da chacina, que dizem tratar-se de «uma encenação». Ao contrário de Marcello Caetano, que depois de ver as imagens se mostrou chocado e tomou medidas, o Kremlin acusou a Ucrânia, como se tivesse absoluta certeza do que se passou.
Mas como podia tê-la? Como podia ter a certeza de que os soldados russos não tinham praticado aquela barbárie – que não é, aliás, caso virgem? Recorde-se, para não irmos mais longe, o que aconteceu na Chechénia.
Até pode ser que Putin ainda não saiba o que verdadeiramente se passou e os generais russos lhe tenham escondido a verdade. É possível e até provável.
Mas, nessas circunstâncias, como podia ter negado tão rapidamente a autoria daquele horror, remetendo as imagens para uma encenação ucraniana?
A explicação é muito simples: Putin não tem o menor interesse em saber o que se passou. Não quer saber quem matou, quem devastou. A sua reação foi estritamente ‘política’. Putin está apenas interessado em defender o bom nome da Rússia e o seu próprio, remetendo para a Ucrânia – e para o Ocidente – uma ‘campanha de mentiras’. O que de facto aconteceu não lhe importa rigorosamente nada.
De resto, a História não permite que existam muitas dúvidas sobre o que ocorreu em Bucha: em todas as guerras, desde a Antiguidade, a devastação e as atrocidades foram sempre cometidas pelo invasor e não pelo invadido. Não há notícia ao longo da História de um país que se tenha destruído a si próprio, que tenha morto os seus naturais, para montar uma encenação destinada a culpar o país invasor.
Mesmo que não existissem outros elementos de prova do envolvimento do Exército russo naquele massacre, as ‘explicações’ do Kremlin seriam inverosímeis. Aliás, como todas as que tem dado para justificar as atrocidades praticadas nesta guerra.
Atacaram um hospital? É porque nele se abrigavam tropas ucranianas.
Destruíram uma escola? É porque servia de armazém de munições.
Bombardearam um edifício de habituação? É porque nele se escondiam atiradores furtivos.
As tropas russas matam gente a esmo, devastam tudo, espalham o terror, violam mulheres, executam ucranianos a sangue-frio – mas a culpa é sempre dos… ucranianos.
Para além desta guerra ser revoltante, o cinismo de Putin e da sua corte (incluindo Medvedev, que Putin expulsou do poder mas cobardemente o defende, talvez com medo de ser marginalizado), é repulsivo.
E isto ainda torna mais estranhas as posições do Partido Comunista Português e daqueles que, nesta guerra, acreditam na palavra dos russos.
O mesmo partido que, em 1973, condenou asperamente Marcello Caetano pelo que sucedeu em Wiriyamu, mostra hoje uma triste complacência perante os massacres de Putin na Ucrânia.
A mesma força política que não hesitou em culpar um primeiro-ministro que teve a hombridade de assumir o massacre em Moçambique, contra a vontade dos seus generais, hoje remete-se ao silêncio perante a hipocrisia de um Presidente que não tem pejo em atirar para cima de outros a responsabilidade pelos atos de barbárie na Ucrânia.
As diferenças estão bem à vista.