Gabriel Mithá Ribeiro: “Quando o branco é carrasco aí está o racismo, mas quando lhe espetam uma faca na barriga a vítima continua com a culpa”

Há problemas raciais por resolver, mas não se chamam racismo, diz o deputado do Chega na primeira parte da entrevista.

Encontrámo-nos à porta da Assembleia da República quando chegou de Leiria, onde vai todas as segundas-feiras debater os problemas da região que o elegeu. A conversa prolongou-se por mais de duas horas e meia e Gabriel Mithá Ribeiro não se recusou a responder a nenhuma pergunta, tendo nalgumas mostrado até divergências com o partido. Polémico, o professor e investigador da Universidade Católica, especializado em estudos africanos – sem antecedentes europeus – chegou a Portugal com 14 anos, fugindo à «ditadura» que se vivia em Moçambique.  Aqui fica a primeira parte da entrevista. A segunda será editada na próxima edição.

Nasceu em Moçambique em 1965. Veio para Portugal com que idade?

Com 14 anos, em 1980.

Estava em Maputo?

Nasci em Lourenço Marques, depois Maputo. Mas a minha mãe é de Tete, do Fíngoè mais concretamente, e o meu pai é da Beira. Eu já nasci em Lourenço Marques, depois Maputo. Normalmente vê-se o império da Europa para África e a história da minha família foi o caminho inverso. A minha mãe nasceu no meio do mato mesmo, a 300 quilómetros de Tete, depois foi viver para Tete, onde conheceu o meu pai, na construção dos caminhos de ferro que ligava a Beira a Tete. Mais tarde eles viveram na Beira, depois em Lourenço Marques e a minha mãe acabou a morrer na Margem Sul, ou seja, passando por Lisboa. Ela fez o caminho inverso, digamos assim, do mato para a metrópole.

Que episódios o marcaram até aos 14 anos? Por ser filho de um branco e de uma africana sentiu na pele esse facto ou não?

Tenho um avô sírio, é a parte mais branca que tenho na ascendência, branca árabe. Mas daqueles cuja tradição era traficar escravos, que até hoje nunca assumiram, e que de vez em quando tinham filhos com negras. Foi o caso da minha avó. Portanto, sou neto da parte paterna de uma negra, genuinamente moçambicana da Beira, com um sírio. Da parte materna sou neto de um indiano de Jamnagar, islâmico, com uma miscigenada de gente do Índico, de ascendência imprecisa e negros. A parte do meu pai acabou por ser católica, porque o árabe fez os filhos e desapareceu e a minha avó tornou-se católica, praticante mesmo. Da parte da minha mãe são islâmicos e nós fomos sempre dizendo na família que somos católicos apostólicos muçulmanos, porque a mãe do meu pai impôs-lhe o batismo à nascença, mas toda a nossa vivência no ambiente familiar durante a infância era islâmica. E um dos episódios que guardo, porque os meus pais fizeram um acordo quase à moda dos romanos quando conheciam outras religiões, ou seja, o meu pai não deixou de ser católico, mas deixou de ser praticante. A minha mãe não deixou de ser islâmica, mas tornou-se numa islâmica suave, de maneira que nunca houve uma pressão religiosa na família e nós de início éramos mais de pendor islâmico, mas à medida que fomos crescendo e eu vim para Portugal tornei-me mais de pendor católico, tenho sempre esta fronteira. Mas a propósito da infância, tenho um irmão gémeo e uma das coisas que o meu pai assumiu quando se casou com a minha mãe é que nunca mais ia comer carne de porco e beber bebidas alcoólicas. Então quando eu e o meu irmão saímos de casa às escondidas dos nossos pais, a nossa grande ansiedade era comer sandes de fiambre e ficávamos com aquele complexo de culpa, não podíamos dizer a ninguém.  Mas as memórias da infância, as minhas não são traumáticas, porque vivi a fase final do tempo colonial, onde na escola já não se levava reguadas. Morava num bairro que tinha famílias sobretudo brancas, mas também tinha uma ou outra negra e mestiça. Nós íamos à escola e as turmas eram esmagadoramente brancas.

O bairro da Liberdade hoje já não tem brancos._Penso que há só um.

Agora já não tem brancos, tem um ou outro. Mas traumas de infância não tenho. Houve uma vez que levámos umas reguadas porque alguém roubou. O que tenho são memórias  fortes do processo de transição para a independência. Tinha nove anos e aquilo teve, de facto, um impacto. Estudei política, meti-me na política, sensibilizei-me para este campo do conhecimento. Foi porque a independência deixou marcas fortíssimas. Nós éramos continuadores da revolução socialista do Samora Machel. Na escola aprendíamos o marxismo leninismo desde pequenos. Depois começou aquela coisa dos alunos mal comportados irem fazer os trabalhos de férias que era, no fundo, campos de reeducação. Aquilo era muito rigoroso.

Como eram esses campos de reeducação?

Historicamente eles estão bem descritos. Aquilo foi uma transição de ditaduras autoritárias para ditaduras de pendor totalitário. E só não foram mais totalitárias por causa da fragilidade do Estado. Então havia aquela coisa, quase à moda da revolução cultural chinesa, que era para limpar as ideias colonialistas. Em pequenas coisas na escola as pessoas podiam ser mandadas para esses campos, por mau comportamento, por críticas ao poder, por aí fora, e havia algum medo disso.

Nesses campos de reeducação o que se fazia concretamente?

Eram campos de reeducação à moda dos gulags, para as pessoas irem trabalhar para aquelas cooperativas agrícolas, por exemplo naquelas zonas mais abandonadas do país para abrir campos agrícolas, mas sem condições nenhumas. Por muito que não fosse aquela coisa à Hitler da ‘solução final’, de extermínio, as pessoas apanhavam todo o tipo de doenças, era por causa dos mosquitos, da água que não tinha condições, da agressão de animais, mordidas de cobra, etc. Esses campos acabaram por marcar a vida daquelas pessoas que viveram o processo de independência quer porque foram lá parar quer porque isso se tornou um fantasma da memória coletiva.

Mas nunca esteve lá.

Nunca estive lá. Os traumas diretos mais próximos foram os da guerra civil, porque o meu pai era pagador dos caminhos de ferro e ia de Lourenço Marques até Chicualacuala. Eram 600 quilómetros e ele ia pagar os ordenados dos trabalhadores dos caminhos de ferro. A partir de 1978, os comboios começaram a ser atacados na altura pela guerrilha de RENAMO, a que se chamava os bandidos armados. O meu pai tem uma imagem, que deixei descrita no romance Estrada de Beirute, onde faço a reconstituição de um dos ataques que ele foi alvo numa tal das viagens. Dispararam no vagão onde ele ia e  mataram algumas pessoas e viu bocados de cérebro e carne, pessoas desventradas à volta dele. A solução para aquela situação era fugir dali. Agora, tinha que se arranjar maneira de vir para Portugal. Ele começou por mandar os filhos e depois vieram eles. E foi mesmo para escapar à violência da guerra civil, porque para já nós morávamos fora da cidade e ali nos arredores começou a haver ataques.  O meu pai fazia estas viagens e conseguia, por exemplo, arranjar sacos de arroz, feijão, no mato, no interior, e trazia para casa. Nós tínhamos aquilo guardado em casa, mas não podíamos dizer a ninguém se não éramos acusados de açambarcadores. Havia alguma tensão lá em casa, porque tínhamos aquela comida escondida e como éramos miúdos éramos avisados pelo meu pai para não dizer nada a ninguém. Toda aquela tensão marca a vida, mas marca de uma maneira que nós aderíamos àquele processo de independência, àquela ideologia marxista leninista. Quando cheguei a Portugal, em 1980, vim muito moçambicano, o que sem papas na língua quer dizer ‘ódio ao português’. Eu senti isso, era aquela necessidade de demarcação do português. Depois, talvez pela minha maneira de ser e de estar e por gostar da escola, à medida que fui falando com os portugueses fui mudando.

Vieram para Portugal, mas foram obrigados a renunciar à nacionalidade portuguesa, porque Samora Machel assim obrigava na altura.

Obrigou em 1975.

Como se lembraram de vir para Portugal e que problemas tiveram, uma vez que eram moçambicanos que tinham renunciado à cidadania portuguesa?

A história do império é muito forte e das mais mal contadas, mas nós viemos para Portugal numa vinda quase natural. Em 1961, acabou o trabalho forçado, as culturas obrigatórias e eram portugueses do Minho a Timor. Uma parte daqueles moçambicanos eram também portugueses. Nós nascemos portugueses, com aquela coisa toda dos valores, Camões, etc. Sou a primeira geração da minha família que tem o português como a língua mãe. Os meus avós não falavam português, os meus pais são bilíngues, o meu pai fala sena e português e a minha mãe falava nhúngue e português. Sou a primeira geração que já nasceu com algum ideal de ser português. O meu pai deu-se muito bem na escola, é filho de uma negra de uma palhota, sem condições nenhumas mas tinha alguma inteligência e casmurrice, era um homem duro de princípios, estudou e foi fazendo a vida. A minha mãe também fez o curso de enfermagem. Eles fizeram a vida deles no tempo colonial, mas sem qualquer ligação à política. Nós nascemos com essa ideia de ser português, quando veio a independência, não foi uma coisa construída. A independência foi uma epifania. Uma revelação que se faz de um momento para o outro. Nós fizemos essa transição, de ser português ou ter algum sentimento do tempo colonial para um tempo muito moçambicano. Quando as coisas começaram a correr mal com a guerra civil, o destino natural daquela geração era Lisboa. Por isso era natural que viéssemos para cá.

Vinham com esse sentimento de ódio.

Sim, ódio contra o colonialista, digamos assim, que era semeado claramente na escola. Lembro-me que quando foi a independência, tínhamos livros como Os Lusíadas que eram atirados para o lixo ou queimados com orgulho. Não me recordo de o ter feito, mas isso aconteceu. Havia símbolos de ódio ao português. Era difícil escapar a isso, portanto, quando eu vim, vim com esse ódio. Depois comecei a estudar e facilmente fiz amigos portugueses. Isso vai mudando aos poucos. Mas o meu grupo de amigos durante muito tempo foi de moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, a comunidade do antigo Ultramar. Até muito tarde a expressão ‘vão para a vossa terra’ que não se diz, nós dizíamos muito ‘estão na terra deles’. Havia essa coisa de quando se chateia o homem do autocarro, esse tipo de coisas era muito comum entre nós. Depois fui morar na Margem Sul. Quando íamos jogar futebol fazíamos a equipa dos moçambicanos, isso era identitário. Mas, à medida que fui crescendo, tive a sorte de entrar no curso de História e a minha conversão à identidade portuguesa que mais me marcou foi o livro Identificação de Um País do José Mattoso. Lembro-me de ler o livro por desporto, eram dois volumes. Levei-o para a praia, era aquela leitura quase a sorver e a minha relação com os portugueses mudou. Por razões intelectuais, porque nós crescemos e ganhamos maturidade e porque vamos compondo o fio do tempo. Eu conheci um português do tempo colonial, uma maneira de ser portuguesa do tempo colonial. Nós morávamos num bairro e ao lado havia um casal que era do Porto. Tínhamos boas relações, mas era profundamente diferente porque na nossa casa aqueles mestiços parentes do bairro, entravam, dormiam, comiam, à hora que queriam. Mas quando íamos à casa do português ao lado era diferente. Ele convidava-me para almoçar, pedia aos meus pais, e entrava à hora de almoço, comia e saía. Aquilo entre mestiços e mulatos não era assim. Esta distância do vizinho português, depois da independência, era interpretada como racismo e discriminação. Portanto, conheci este português do Ultramar e quando cheguei a Portugal conheci o português da área metropolitana, de Lisboa e de Setúbal. Depois comecei a namorar com uma portuguesa, que hoje é a minha mulher, e os pais dela são da Guia, entre Leiria e a Figueira da Foz. Desde 1996, comecei a frequentar a Guia e conheci um outro português. Na altura em que fui para lá, aquilo era uma população muito organizada em torno do padre e da igreja. Achei aquilo muito fascinante porque não conhecia este Portugal. O Centro é muito religioso, não é por acaso que Fátima apareceu ali. O Norte era cristão na altura da Reconquista, o Sul islâmico, e aquela foi a zona erma. Quando foi repovoada foi por ordens militares religiosas. E a zona do Centro de Portugal tem uma marca cristã católica muito forte e a família da minha mulher é justamente isso.

Por que isso o fascina?

Porque comecei a conhecer esse português tradicional, do interior, as festas populares, as procissões, as feiras, a integração de quem vinha de fora em torno da igreja. Era um mundo que não conhecia. Uma das coisas curiosas que também me marcou foi o tipo de casas que eles tinham na Guia. Era o mesmo tipo de casas que tinha no bairro da Liberdade, na antiga Lourenço Marques. Comecei a conhecer o Portugal profundo a partir  de 1996. Foi aí que fiz a maior conversão ao catolicismo, o hábito de ir à missa. Fiquei fascinado com a Páscoa, por exemplo, com a forma como a celebravam, com o folar e aquela coisa toda. Comecei a viver isso e, em 1997, fui fazer trabalho de campo em Moçambique, no mato, no interior.

Qual era a sua situação económica em Portugal que lhe permitia ir fazer trabalho de campo em Moçambique?

Essa situação económica veio com o tempo. Quando cheguei a Portugal vivia numa barraca, na maior miséria. Comecei a trabalhar nas obras e a carregar baldes de massa com 15 anos. Concluí o secundário a trabalhar numa fábrica.

Vivia com os seus pais numa barraca onde?

Vivia no vale do Jamor. No célebre vale do Jamor que Cavaco Silva apagou da nossa memória e fez muito bem.

Bairro com muitos timorenses.

Exatamente, na altura em que lá vivi também tinha essa marca. Passei por isso tudo, fui sempre trabalhando e estudando. Comecei a fazer trabalho de campo já era professor do ensino secundário. Começamos a carregar baldes de massa, mas vamos fazendo contactos, depois começamos a trabalhar nas fábricas, às tantas já somos ajudantes de eletricista. Quando saí de operário para professor foi já nessa fase. E a minha primeira decepção foi o salário, porque ganhava mais na vida operária do que fui ganhar no início da carreira como professor.

Onde deu aulas a primeira vez?

Foi na Margem Sul, na escola Seixal II, que agora chama-se Alfredo dos Reis Silveira. Depois de fazer a vida como professor, como até gostava de estudar decidi fazer um mestrado. Comecei por fazer um de História Contemporânea, mas como queria estudar Moçambique fui fazer Estudos Africanos no ISCTE. E aí fiz uma reconversão à minha licenciatura original que era em História. Mas quando entrei no ISCTE, havia uma casamento da Sociologia com a Psicologia Social. Acabei a estudar Freud. Portanto, fiz a transição da História para esta área e é aí que começo a fazer trabalho de campo, que é um trabalho que significa deixar as pessoas contarem histórias de vida, tentando encontrar núcleos de conversa por Moçambique para dar sentido ao meu trabalho, sobre os vários aspetos da colonização, a guerra colonial ou luta de libertação, a guerra civil, a independência até praticamente à atualidade. Só nesta altura é que conheci o que era um moçambicano profundo, porque Moçambique tem dez províncias e fiz trabalho de campo em oito, em zonas urbanas, mas sobretudo em zonas rurais.

Qual era a ideia que as pessoas tinham sobre a colonização, a guerra civil e por aí fora?

A colonização é dos aspetos mais maltratados e mais sérios que têm de ser trazidos para o debate político. O que está aqui em causa é o desvio funcional depressivo da memória coletiva, o que é grave. Isto é, nós enquanto indivíduos quando olhamos para o nosso passado só sabemos que somos pessoas se tivermos memória da nossa existência e quando olhamos para o nosso passado, todos nós, ninguém escapa, sabemos que tivemos coisas más que não conseguimos apagar da nossa memória e sabemos que tivemos coisas boas. Mas se quisermos ser indivíduos saudáveis no presente e no futuro, focamo-nos sobretudo naquilo que é positivo, para sermos sujeitos equilibrados. Agora, como não há descontinuidade entre o indivíduo e o coletivo, o ensino da História devia ter esta preocupação porque trata da memória. Isto é, saber que na memória do tempo há coisas negativas, mas também há coisas positivas. As coisas negativas não são para esquecer, mas as positivas não são para apagar. O ensino da História deve ter isto em conta e quando nós, enquanto sujeito coletivo, olhamos para o passado e olhamos para um povo como o português que tem como marca identitária profunda a colonização, que foi meio milénio, é fundamental olhar para esse lado positivo da colonização. Isto tem impacto num falhanço de um país que foi uma potência colonial como Portugal, mas tem um impacto ainda mais grave nos países africanos, no falhanço daquelas sociedades. Os moçambicanos pós-coloniais e de hoje não são moçambicanos se não falarem português, não tiverem a igreja cristã, não tiverem a cultura escrita, não tiverem hábitos de vida trazidos pela colonização.

No 25 de Abril, apenas 2% da população moçambicana falava português. Hoje, penso que será 30%.

Isso é um dado relevante, mas não decisivo, porque há outras formas da colonização passar. Nas memórias de senso comum moçambicano, o tempo colonial foi um tempo de paz como nunca tinha havido. De paz, de construção e de estabilidade. Entrevistei por exemplo as pessoas que participaram no Chibalo, o trabalho forçado no tempo colonial. Temos que fazer um esforço para olhar para a colonização pelo seu lado positivo.

Quando fizemos o SOL em Moçambique, a um dos motoristas, que era o Jaime, perguntei-lhe do que se recordava e ele dizia: ‘Não me recordo de praticamente nada, recordo-me é que a RENAMO matou a minha família no último dia de guerra quando já se sabia que havia paz’. Pareceu-me que as novas gerações se recordam mais da guerra civil do que propriamente o período colonial, até porque não o viveram.

Acho que é o contrário.

Acha?

Acho, até porque sobre o período colonial ficou o lado negativo da colonização ou representações que são passadas de geração em geração da escravatura, do trabalho forçado, do racismo, da opressão. Isso ficou tudo. Mas também ficou o inverso e as pessoas não desligam disto. Eu próprio apanhei alguma surpresa ao andar pelo país todo e encontrar esta expressão: ‘Eles civilizaram-nos’. E as pessoas davam exemplos concretos, como calçar sapatos, ir à escola, a religião, certos hábitos, etc. Estas memórias positivas e negativas estão interligadas.

É por isso e ao insistir em dizer Lourenço Marques em vez de Maputo que o acusam de ser um racista aliado de Salazar?

Isso são palermices. Tenho um livro em que o título é O Colonialismo Nunca Existiu. Dizem logo ‘ele é anti-colonial’. Não tenho um único livro que ponha em causa a justiça e a dignidade das independências. Nem sequer encontrei um moçambicano que faça isto. Estes debates têm que subir de nível de discussão. Sobre esta questão da colonização, os europeus, portugueses por exemplo, foram colonizados pelos romanos e pelos muçulmanos. Mas quando tratamos desse processo de colonização, primeiro não chamamos colonialismo, chamamos colonização. Segundo, olhamos para esse processo para ir à procura daquilo que foi positivo para a identidade portuguesa posterior. Isto é o contrário do desvio funcional depressivo da memória. É isto que se tem de fazer. Quando o português passa de colonizado a colonizador e quanto mais avançamos no tempo, abandonamos o termo colonização e adotamos o termo colonialismo. Isso é transformar o processo histórico que mais contribuiu para a melhoria e progresso dos povos numa espécie de crime contra a humanidade. Quando o branco é colonizado é colonização e foi uma coisa boa. Quando o branco é colonizador é colonialismo e foi uma coisa má. Se queremos usar conceitos analíticos, esses conceitos têm que ter validade permanente no tempo e no espaço. Ou tudo isto é colonialismo, ou seja, os romanos e os árabes foram uns grandessíssimos colonialistas, ou tudo isto é colonização. Às vezes peço aos alunos para fazerem uma tabela de dupla entrada, isto é, de um lado os contributos dos romanos para a transformação civilizacional dos portugueses. Eles põem lá cultura escrita, o Estado fundado na lei, a mudança de hábitos de vida, etc. E do outro lado da tabela o contributo dos portugueses para a transformação civilizacional dos africanos, eles põem exatamente a mesma coisa.  A maior revolução de sempre em África foi a introdução da cultura escrita. E por acaso só se fez no século XX, mas se só se fez no século XX é porque ninguém o fez antes. A introdução do deus único foi também uma revolução ao nível do pensamento. Ou seja, eles põem a mesma coisa que os romanos e árabes deixaram em Portugal e que os portugueses deixaram em África. Depois eu pergunto: porque é que aqui chamam colonização e olham para as coisas boas e porque é que aqui  chamam colonialismo e olham para as coisas más? Há aqui uma manipulação anti-ocidental que no discurso da rua até admito, mas não admito no discurso académico. Ou temos conceitos analíticos, ou não temos.

Mas Moçambique tem 58 etnias.

Sim, dez províncias que têm características muito diferentes.

São povos completamente diferentes.

Tem uma percentagem muçulmana no norte, uma forte presença animista, aqueles cultos mágico-religiosos ancestrais, muitos deles transformados em religiões sincréticas que introduziram o cristianismo, e depois tem a tradição cristã propriamente dita. Não sei qual é a percentagem, mas deve ser ela por ela entre estas três variantes. Mas são povos que apesar de tudo conseguiram ter um chapéu de aba larga que foi introduzido pela colonização.

Começa a dar aulas em 1991. Como foi esse processo? Por exemplo, como foi aceite numa sala de aulas?

Não tive problemas nenhuns. Apesar de ter consciência que ganhava menos, gostava do que fazia.

Vamos passar ao jogo de Mithá Ribeiro responde a Mithá Ribeiro. Disse: ‘Passou-se do modelo autoritário da ditadura para uma ditadura da democracia que impôs o modelo participativo. Quem hoje defender o modelo autoritário parece que está a cometer um pecado capital’. Acha que isto é mesmo assim?

Sim, mas isso tem duas explicações, uma para a sala de aula, outra num sentido mais geral. Para separar as coisas, vamos primeiro à ditadura. Assumo que nós hoje no ano da graça de 2022 vivemos numa ditadura, que designo tecnicamente por ditadura mental de esquerda. Em todas as sociedades há instituições que regulam o pensamento social, o modo como as pessoas comuns pensam. Até ao século XIX era claramente a Igreja, que praticamente decidia o que era legítimo. Na transição para o século XX surgiu o professor, isto é, o padre foi substituído pelo professor e a igreja pela escola. À medida que se caminhou no século XX para chegarmos a agora, a pirâmide foi ficando muito clara e o controlo do pensamento social pelo ensino passou a ser feito pelas universidades. Isto cá no topo da pirâmide. Na base é a massificação da escolarização, quer dizer que a escola faz a cabeça das pessoas. Isto é uma instituição. A outra que ganhou um grande avanço, a partir da II Guerra Mundial, foi a comunicação social. Hoje ninguém escapa à comunicação social. Ou seja, o ensino e a comunicação social fazem a cabeça das pessoas, regulam o pensamento. Para vivermos numa democracia, estas instituições que regulam o pensamento social têm de ser politicamente neutras e as pessoas têm de ter essa perceção. Isto num mundo ideal. Como não vivemos num mundo de santos, vivemos num mundo de gente concreta, se não podem ser politicamente neutras pelo menos que sejam politicamente plurais. No ensino e na comunicação social há claramente tendências de direita e de esquerda. Mas o que temos na prática é um único campo político que é a esquerda a tomar conta destas instituições. Se as instituições que regulam o pensamento social estão tomadas por um único campo político isto tem um nome muito claro que se chama ditadura mental de esquerda. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, havia um regime repressivo chamado absolutismo. As pessoas só tomaram consciência da dimensão repressiva do absolutismo quando ele acabou. Depois voltou a acontecer o mesmo com as ditaduras autoritárias e totalitárias do século XX. Muitas vezes as pessoas comuns só tomam consciência do regime repressivo que as domina quando ele acaba. Se se fizessem estudos nos anos 60 ou início dos 70 com os portugueses sobre o regime do Estado Novo, a resposta seria substancialmente distinta das respostas que seriam dadas a partir de 74. E diria o mesmo no caso das independências moçambicanas e isso para mim foi muito óbvio no trabalho de campo. Muitos dos moçambicanos só tiveram consciência que eram colonizados no momento de transição para a independência. Mesmo em Tete onde houve guerra, as pessoas diziam-me que até 74 a guerra era um zunzum, nem sabiam que guerra era aquela. Só em 74 é que perceberam que era a luta de libertação nacional e o que ela significava. Estes processos de transição as pessoas só tomam consciência quando acabam. Fazendo a ponte para o século XXI, tenho a certeza que vivemos numa ditadura mental de esquerda. É provável que as pessoas só percebam isso no momento em que se tomar consciência ou talvez quando ela acabar. Não sei se em 2050 ou em 2100, ou por aí fora. Mas tenho a clara certeza de como se produz o pensamento social, quais são as instituições que o regulam e que essas instituições estão claramente tomadas por um campo político.

Em relação à autoridade, um dos ataques mais frequentes que lhe fazem, é por ter assumido que ‘se um aluno desobedecer à minha ordem estou preparado para atuar, não dou aulas sem estar bem preparado, faço jogging. Tive um aluno que ficava à porta da sala a gozar, um dia agarrei-o com toda a força e rebentei-lhe a camisa e só não lhe bati’.

O episódio foi este: eu dava aulas numa escola na Margem Sul e de vez quando um aluno vinha e batia à porta e agitava a turma toda e depois era difícil começar a aula. Ele não era meu aluno, ele entrava e saía. Até que um dia ele entrou e por acaso eu estava ao pé da porta. Assim que ele entrou agarrei-lhe na camisa e rebentei-lhe a camisa. Ele saiu disparado e nunca mais perturbou a aula. Foi esse o episódio. Agora, esse episódio tem muito a ver com o falhanço grave do sistema de ensino. Eu trouxe isto em força aqui para o Chega. O que estamos a defender é que uma coisa é a sociedade, outra são as instituições. A sociedade é um espaço aberto, onde tudo pode ser negociado, livre, discutido, não há hierarquias, mas na instituição é o contrário, é um espaço fechado para ser gerido pelos agentes de dentro. Um sistema social equilibrado é aquele que sabe equilibrar a abertura da sociedade com o fechamento da instituição. No Chega nunca vamos recusar a democracia, o que nós estamos a dizer não é que a democracia falhou. O que nós estamos a viver é um falhanço grave de uma série de instituições. Família, escola, justiça, por aí fora. E porque é que estas instituições falharam? Falharam porque há valores como a autoridade, a hierarquia e a ordem que foram abandonados. Quando estes valores da sociedade absorvem as instituições, que é aquilo que temos hoje, nós temos uma democracia com tendências totalitárias. Quando os valores das instituições, que são estes da autoridade, hierarquia e ordem, invadem o espaço da sociedade, nós temos uma ditadura como a do Estado Novo. Equilibrar isto quer dizer que precisamos desesperadamente desses valores para contrabalançar a sociedade e a instituição.

Defende ou não castigos físicos na escola?

Isso foi uma aldrabice pegada. Foi o Bernardo Ferrão naquele programa o Polígrafo que veio dizer que eu defendo castigos corporais. Isso é uma mentira grosseira. Se há coisa que eu percebi, até porque estudei esse fenómeno em Moçambique, é fácil promover linchamentos quando a comunicação social se comporta dessa maneira. Se eu precisasse agora de dar aulas no ensino secundário com esse tipo de trabalhos jornalísticos a minha vida complicava-se. É uma grave irresponsabilidade pegar em meia dúzia de ideias e concluir isso. Para concluir que alguém defende castigos corporais eu tenho que fazer uma investigação a sério. Estou a fazer uma acusação pública. Quando entrei no Chega perdi algum espaço na comunicação social. Sou vice-presidente do partido desde 2020 e todos sabem que o que mais se faz desde essa altura é acusar o Chega de racismo. Mas o Chega tem um vice-presidente desde 2020 que é negro. Esse presidente fez uma formação específica na área do pensamento social. Tenho uma pós-graduação doutoral sobre relações raciais ou racismo. Não estou a tirar conclusões caídas do céu. Nunca fui chamado para nenhum debate.

Nunca bateu em nenhum aluno?

Não, nunca bati em nenhum aluno, isso claramente não. Mas já mais que uma vez forcei-os a sair da sala de aula. Temos que ser muito sérios neste tipo de debates. Nós vivemos numa escola falhada. Nas escolas onde dei aulas, praticamente todos os anos junto da direção da escola eu reunia os piores e os mais difíceis alunos, fazia uma turma de currículo alternativo, em que eu era diretor de turma e dirigia aqueles alunos. O objetivo é salvar alunos, porque muitos deles são pobres e não têm outra alternativa. Mas não sou romântico, temos que distinguir claramente aquilo que é uma decisão moral do que é uma convenção. Entregam-nos 15 alunos para sermos professores deles e tínhamos este dilema. Ou queremos salvar todos e não salvamos ninguém, nem a nós mesmos, ou para salvarmos a maioria temos que sacrificar dois ou três, porque são aqueles que impedem todos os outros de trabalhar. Foi sempre isso que fiz. Tive sempre turmas maioritariamente negras, tive alunos ciganos. Estou a falar de alunos que insultam e incitam à violência na escola, com facas.  Vivi neste ambiente e sei o que é preciso fazer para mudar isto. Dão-nos 17 alunos para a mão e o dilema é este. Vou salvar destes 17, talvez 15. Fiz sempre isso e consegui. Aqueles dois ou três que não se corrigem vou pô-los daqui para fora. E punha, mas salvava os outros 15. Isto é uma decisão moral que temos de tomar na nossa profissão, na nossa vida. Fui pobre, eu sei o que o ensino vale. Vivi numa barraca e tive de estudar no tempo em que, felizmente, não havia esta conversa do Bloco de Esquerda sobre as vítimas. O Estado português, às pessoas que estiveram nas minhas condições, sempre deu possibilidades de estudar e trabalhar como Moçambique não dava. Eu vivendo numa barraca sempre assumi a responsabilidade de ter que estudar e sei que resolvi os problemas por mim mesmo e ninguém me tratou como coitado. Na minha decisão moral nunca hesitei em pegar neste tipo de alunos e levá-los até ao fim. Fui um dos professores cuspidos na sala de aula e nunca me queixei disso. Raramente faço participações disciplinares. O Estado português em termos de autoridade institucional desceu ao nível do zero. Eu dizia aos alunos: ‘Tomo conta de vocês primeiro porque sou homem, segundo porque sou negro’. Numa turma maioritariamente negra vejo o que as professoras brancas sofrem. Qualquer reparo que façam a um aluno é logo racismo e isso comigo não pegava. Eu alegava essa cor de pele, a mim eles não me acusavam de racismo. E, portanto, conseguia pô-los na ordem, trabalhar com eles, ir a visitas de estudo, e tudo mais. Mas isso é uma decisão moral com a qual nos temos de confrontar hoje. Outra coisa é uma convenção. Que eu saiba Max Weber definiu o Estado como aquele que tem o poder coercivo legítimo. Se estou numa sala de aula, a autoridade sou eu. Se eu for chamar a diretora da escola ou uma funcionária para resolver um problema de indisciplina na sala de aula, nunca mais tenho autoridade sobre os alunos. Não tendo autoridade sobre os alunos, vou perder aqueles 15 ou 17 e eu mesmo vou entrar em estados de depressão e outras coisas.

Mas os outros que defendem o contrário dizem que não pode ficar ninguém para trás.

Isso é um debate político e ninguém é dono dele. Porque aqueles que não querem deixar os outros para trás, acabam por deixar todos para trás, porque depois ninguém pega neste tipo de alunos. São decisões difíceis e estamos aqui a ser um pouco levianos na forma como gerimos o sistema de ensino.

É um pouco difícil entende-lo, porque diz que não há racismo mas depois diz ‘se uma pessoa é negra e de esquerda é tratada pelo menos com alguma dignidade, se uma pessoa é negra e politicamente neutra tende a ser apagada das instituições, se uma pessoa é negra e é de direita é tratada como se tratam os pretos’. Há quem diga que isto foi das coisas mais racistas que foram ditas na Assembleia da República.

Quando dei a conferência de imprensa aqui a propósito de me terem rejeitado na vice-presidência, não usei em circunstância alguma a expressão de que fui vítima de racismo.

Disse ‘questão racial’.

Exatamente. Questão racial. Mas toda aquela conversa tinha como objetivo demonstrar a hipocrisia da esquerda do Parlamento, ela mesma que se diz antirracista, integradora das minorias, defensora das quotas e ela mesma que sabe que resolver estes problemas raciais todos passa por símbolos de promoção social. Essa esquerda que faz isso, quando pela primeira vez é confrontada com a possibilidade de ter um vice-presidente da Assembleia da República negro e assumidamente africano, recusa. Aquilo que eu estava a demonstrar era a hipocrisia deste Parlamento. Não me queixei de racismo, estou a falar de uma questão racial.

Mas para um leigo qual é a diferença entre racismo e questão racial?

No século XIX houve a transição da escravatura para o racismo. O objeto de discriminação era o mesmo, era o negro. Mas o contexto era profundamente diferente. Escravatura é uma coisa, racismo é outra. Os contextos são muito diferentes e, apesar de serem duas coisas más, há uma evolução muito positiva de uma para a outra. Na transição do século XX para o século XXI, vivemos um fenómeno semelhante. O racismo é um fenómeno especificamente do século XX, mas o contexto do século XXI é profundamente diferente. Racismo, por muitas voltas que possamos dar, quer dizer sempre ‘o branco é o carrasco, o negro é vítima’ e no século XX era mesmo assim. No século XXI, ao querermos usar esta palavra estamos a entrar no mundo da alienação. Porque no século XXI, o branco é carrasco, mas também é vítima. Quando o branco é carrasco aí está o racismo, mas quando lhe espetam uma faca na barriga a vítima ainda continua com a culpa. O racismo é a relação entre uma maioria e uma minoria. Seja a maioria branca e a minoria negra, seja maioria negra e uma minoria branca. É só contar o número de assassinatos de brancos na África do Sul pós-apartheid. Quando deslocamos um fenómeno que é específico de um tempo histórico, do século XX para o século XXI, essa palavra tem uma definição muito clara e estamos a produzir aquilo a que se chama um fenómeno de alienação mental. Isto quer dizer desinserir o sujeito do seu meio envolvente, ou seja, eu desloco o fenómeno no tempo, no espaço e desinsiro o sujeito do seu meio envolvente presente. Isto é uma forma de produzir um louco e é o que estamos a fazer com a palavra racismo. Imaginem uma bola de cristal suspensa num conjunto de pilares, essa bola de cristal é o racismo. Quais são os pilares, ou o contexto histórico digamos assim, do racismo? Um deles era o nazismo que acabou em 1945. Outro era a discriminação racial formal nos Estados Unidos, sobre a qual se fez uma transição nos anos 50 a 60. Outro era a colonização europeia, acabou nos anos 70. Outro era a guerra fria, acabou em 1991. Outro era o apartheid na África do Sul, que acabou em 1994. E o apartheid foi chocante, não porque era regra na época, mas porque era justamente a exceção gritante num mundo que se vinha a transformar desde 1945. Se os pilares em que a bola de cristal chamada racismo se apoia desmoronaram, a bola caiu e estilhaçou. O que sobrou para o século XXI são os cacos. Se chamamos bola de cristal aos cacos então estamos loucos. O que temos no século XXI são relações raciais com múltiplas derivações, não é racismo de século XX. As nossas relações raciais não se apagaram. Daí que eu diga que hoje, no século XXI, temos relações raciais, abertas em múltiplos sentidos, mas não temos racismo. O racismo acabou no século XX. Este debate eu devia tê-lo tido nos meios académicos, mas os meios académicos fogem disto como o diabo das cruzes. Não podemos chamar a um fenómeno aquilo que ele não é. Hoje há negros altamente ricos, há continentes inteiros dominados por negros, há liberdades equiparadas em tudo com as do homem branco. Sim, há problemas raciais por resolver, mas não se chamam racismo. Chamam-se relações raciais. O próprio homem branco mostrou arrependimento, remorso e complexo de culpa sobre o racismo.