Mithá Ribeiro: “Joacine foi ultra empolada, eu sou ultra silenciado”

O estratega do Chega, responsável pelo Gabinete de Estudos, explica as famosas nove página do programa eleitoral do partido e questiona como é que um partido acusado de ser racista tem um vice-presidente negro.

por Vítor Rainho e Joana Mourão Carvalho

Na primeira parte da entrevista publicada na semana passada, o vice-presidente do Chega falou longamente sobre as questões raciais versus racismo e colonização versus colonialismo. Professor e investigador da Universidade Católica, Mithá Ribeiro tornou-se relativamente conhecido quando foi convidado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos para escrever um livro e participar num debate sobre educação. Era também convidado de outras universidades, mas diz que desde que se filiou no Chega os convites praticamente desapareceram. A última pergunta da primeira parte da entrevista versava sobre a diferença entre racismo e questão racial e Mithá Ribeiro defendeu que há «problemas raciais por resolver, mas não se chamam racismo. O próprio homem branco mostrou arrependimento e complexo de culpa sobre o racismo».

Mas isso é uma generalização.

Os problemas raciais que existem hoje já não dependem do esforço do homem branco. O homem branco já abriu as instituições, já fez a parte que lhe compete.

Quer dizer que agora cabe às minorias assumirem e seguirem o seu papel?

A autorresponsabilidade é um valor universal, das minorias e das maiorias. É colocar exatamente ao mesmo nível maioria e minoria. É tão errada a discriminação negativa, como é errada a discriminação positiva. O fenómeno racial é histórico, não compreendemos o dito racismo sem um contexto histórico. Quando fazemos a história, não podemos escolher os fenómenos que nos agradam e apagar os que nos desagradam. Há violência branca e está presente no debate racial, mas onde está a violência negra nesse debate? Em 1974, uma esmagadora maioria negra expulsou 500 mil colonos, na maior parte brancos, nascidos e criados em África. Os movimentos de independência foram anti portugueses e anti branco. Houve pessoas queimadas vivas na zona onde eu morava. Houve mulheres e crianças violadas. Foi claramente uma violência negra contra uma minoria branca e com traços de tentação genocida. Mas, hoje, quando pega num manual escolar para discutir a questão racial o que tem lá é uma meia verdade. A meia verdade é pior que a mentira porque é mais difícil de desfazer. Estes episódios violentos estão guardados debaixo do tapete. Têm que ser trazidos para cima da mesa e não podemos discutir o racismo sem discutir isto. Quem pratica a violência, se depois quer ser um sujeito moral, tem que ter remorsos, arrependimento e culpa. O homem branco teve isso. Viu alguma vez nas sociedades africanas algum remorso, algum arrependimento? A população branca que nasceu e viveu em Moçambique foi expropriada. Houve o 24/20.

O 24/20 é as pessoas terem 24 horas para levarem 20 quilos na bagagem para saírem imediatamente do país. Em Moçambique continua a haver.

Sim, ainda há.

Sendo negro, como é que os outros negros recebem estas coisas que acabou de dizer?

Negros, brancos, azuis ou amarelos, há os mais inteligentes e os menos inteligentes. Nenhuma identidade é homogénea. Mas um homem branco de esquerda só quer ver um lado da identidade negra. Eu não falo sozinho, tenho uma família e amigos que percebem o que estou a dizer.

Acha que o seu líder quando estipula que os ciganos são todos iguais não está a ser contraditório com o que acaba de dizer?

Não. O meu líder tem que ser o mais defendido naquilo que faz em questões ciganas.

A 10 de julho de 2019, escreveu ‘por que razão é que quando se discute racismo são sempre quase todos brancos? O que hoje se passa é de tal modo grosseiro que equivale a questionar o filho de pais de pertenças raciais distintas. És do clube racial da tua mãe ou do clube do teu papá? Afinal, tu és branco como o teu pai ou preto como a tua mãe?’. Escreveu também ‘O ISCTE havia de ter vergonha nesta matéria. Uma universidade carregada de brancos especializados em África, a minha área de especialização, e que fez de mim um proscrito intelectual, felizmente o preço da minha liberdade. E vejam-se as barbaridades que se dizem sobre África. As quotas não são para os pretos e ciganos, são para fabricar esquerdistas’.

É isso mesmo. Sublinho tudo.

Foi corrido do ISCTE por causa das posições que tomou?

Não é ser corrido, é ser corrido da forma mais subtil que é a mais insidiosa, que é não ser convidado para nada. Eu estava no centro de Estudos Africanos, que é para estudar África, e era o mais escurinho que lá andava. Nasci e vivi como moçambicano e sempre me assumi como moçambicano até hoje aqui no Parlamento. 

Nasceu português. 

Formalmente, no contexto do período colonial, éramos portugueses. Mas portugueses com uma identidade africana. Nunca abandonei a identidade moçambicana. Mas imagine estar no centro de Estudos Africanos onde é o mais escurinho, nasceu e viveu África, e quem lhe explica África são quase sempre portugueses brancos nascidos em Portugal. Isto é qualquer coisa de esquisito. Quando chega a hora de convites, não conta para nada porque não é de esquerda. As universidades estão numa crise profunda e têm um bloqueio sério em termos epistemológicos. O nosso deputado Pacheco de Amorim numa entrevista à Rádio Observador, em que lhe perguntaram o que era ser português, disse que era ser branco e tal. Esvaziaram a ideia racial de ser português. Ao ouvir aquilo em casa disse: ‘Isto é fantástico. Parece que o Diogo Pacheco de Amorim é o branco que está no estúdio a ser entrevistado por negros’. Mas aquilo era só uma conversa entre brancos. Faz-me confusão como é que numa conversa entre brancos se acusam mutuamente de serem brancos. Mas eles não olharam para a cor de pele deles? Quem ouvir aquilo parece que são três negros a entrevistar um branco. Se trouxessem mil africanos negros e perguntassem quem é que estão a ver eles diziam brancos e se lhes perguntassem como é o português eles respondiam ‘é branco e cristão’. Vivemos num tempo em que este tipo de conversas demonstra a neurose em que estamos. 

A tal ditadura mental de esquerda de que falava.

Exato. Como é que o homem branco tem estes complexos? Se eu trouxesse africanos para aquele estúdio eles olhavam para aquela gente e diziam: ‘Está aqui uma conversa de loucos’. São brancos a acusarem-se mutuamente de serem brancos. Um dos aspetos que temos na questão racial é que discutimos demais o acessório e não discutimos o essencial. 

Percebe-se também que a comunicação social é para si um dos grandes ‘cancros’ desta sociedade. ‘Chegando-se ao século XXI, a moral social está de novo em rutura. O que temos hoje é um clero jornalístico que se arrasta penosamente em vícios vergonhosos equiparáveis ao do clero romano antes da decisão imposta por Martinho Lutero’. Sobre a comunicação social, porque são os maus da fita? Nós somos o ‘novo agente parasitário’?

Tenho pena de vocês por vos chamar parasitas, mas é a minha obrigação. Primeiro vamos ao pressuposto moral disto. Seja jornalista, seja comunista, seja o que for, quando criticamos alguém temos de ter em atenção que a identidade das pessoas tem várias dimensões. Nunca vai ver da minha parte um ataque a uma pessoa enquanto pessoa. O comunismo é a ideologia mais hedionda que alguma vez existiu na história, mas não vou atacar o Jerónimo de Sousa. Tenho um grande respeito pelo jornalismo enquanto instituição, mas não fujamos com o rabo à seringa. O jornalismo está numa crise existencial profunda. Os jornalistas têm todo o direito de bater nos políticos e criticar. Agora, chegou a vez de levarem algum retorno, pelo menos da minha parte. 

Isso é uma coisa saudável. 

Aí está, mas os políticos não têm esse hábito.

Mas isso é um problema dos políticos, não é dos jornalistas.

A questão é mais funda do que isto e tem que ver com a própria democracia e sua sobrevivência. Se hoje temos democracia é porque no século XVIII alguém se lembrou de inventar uma coisa chamada Contrato Social, que é feito entre quem governa e quem é governado. Queremos regressar a esta ideia original de Contrato Social. A partir de II Guerra Mundial surgiu uma instituição que se revelou parasitária que é a comunicação social. O que temos hoje são governos que governam não para melhorar a vida das pessoas, mas para agradar à comunicação social. O que temos hoje são populações que quando querem saber como é o seu governo têm que o fazer pelo filtro da comunicação social, que é tudo menos imparcial. 

E o que propõe para acabar com isso?

O que proponho é justamente criticar e trazer estes problemas para cima da mesa. Não sejamos ingénuos, a comunicação social hoje é poderosíssima e muitos políticos estão dependentes dela. Até nos processos eleitorais. Felizmente, em Portugal surgiu um partido chamado Chega que provavelmente é o primeiro partido político da história da democracia portuguesa que se vai afirmando com algum peso sem a neutralidade da comunicação social. Foi contra a comunicação social. A solução radical de Martinho Lutero foi esta: havia Deus e os fiéis e a Igreja Católica de Roma tornou-se parasita nesta relação. Portanto, ele defendeu uma relação direta entre Deus e os fiéis. Introduziu uma das maiores revoluções morais da época que passou por entregar a consciência do destino ao próprio indivíduo. 

Propõe basicamente que os jornalistas sejam afastados.

Não, proponho que cada um tenha o seu papel. Quando Martinho Lutero fez a sua crítica não acabou com a Igreja Católica. Ele obrigou a Igreja a reformar-se a ela mesma. 

Que reformas propõe então para o jornalismo? 

As reformas no jornalismo, os jornalistas que as descubram. 

Pensei que ia propor algum centro de reeducação.

Essa é a interpretação fácil, isso é uma fuga à sua responsabilidade no problema do jornalismo que sabe que existe. A solução é a crítica pura e dura ao mau trabalho do jornalismo. O jornalismo é absolutamente decisivo para o pensamento social.

Não é assim tão decisivo se, tal como disse, o Chega contra o pensamento existente na comunicação social conseguiu eleger 12 deputados. 

Conseguiu, mas não simplifique. O que estou a dizer é que o jornalismo é absolutamente decisivo para o tipo de sociedade que queremos e as sociedades são bem sucedidas ou mal sucedidas em função da forma como as pessoas pensam. Max Weber explicava isto como um mestre. Ele dizia: ‘Quanto mais julgamos, menos compreendemos. Quanto mais compreendemos, menos julgamos’. As sociedades inteligentes são aquelas que compreendem. As sociedades inquisitórias, ditatoriais ou falhadas são aquelas que tudo julgam. Temos um jornalismo que julga mais do que aquilo que compreende. Um bom exemplo é aquele programa do Miguel Pinheiro do Observador, O Bom o Mau e o Vilão. Aquilo é um exemplo claro de alguém que está a produzir uma sociedade falhada, que julga e que não compreende. O jornalista tem o dever de uma coisa a que se chama responsabilidade social. E o dever de debater aquilo que no seu campo de trabalho corre mal. Quando o Chega aparece, não se consegue definir rapidamente, está em construção, porque está a agregar pessoas diferentes. Num país onde 40% das pessoas não vota, é porque são excluídas, reprimidas, abandonadas, esquecidas e silenciadas. É preciso dar resposta a essas pessoas. O Chega estava a autodefinir-se, à procura de um caminho, mas na comunicação social não via ninguém a perguntar o que era o Chega ou a tentar compreender o que era. O que apareceu sistematicamente foi ‘como travar o Chega’, ‘o cordão sanitário ao Chega’, etc. Quem faz isso sem conhecer o objeto está a julgar aquilo que não conhece e não compreende. Quem faz isso são as sociedades inquisitoriais. Quem empurrou a sociedade portuguesa para esta relação inquisitorial e ditatorial foi a comunicação social. Não quis compreender o objeto que está diante dos olhos, quis antes julgar. Querem travar uma coisa que não conhecem? Querem travar uma coisa que os próprios não sabem sequer autodefinir?

O Chega apresentou a prisão perpétua, a castração química que não era voluntária da primeira vez que André Ventura levantou a questão, e ainda a questão dos ciganos. Não terá sido por causa dos valores que estavam aqui em causa que muitos jornalistas, bem ou mal, disseram que era preciso parar o Chega? Não é disparatado dizer que o Chega é um partido em construção onde tem desde evangelistas a trogloditas próximos de Mário Machado e por aí fora.

Há trogloditas no PS, no PSD, então no Bloco… Mas relativamente à castração química, à prisão perpétua, ou à questão dos ciganos, há aqui alguma coisa que seja desumana? A comunicação social criou muito aquilo a que se chama pânico moral. Chamar sistematicamente a atenção para crimes. Isto é tornar as sociedades hipersensíveis a todo o tipo de crimes. Andam há décadas a empolar isto. Mas a comunicação social fez outra coisa que foi desvalorizar a censura social, a penalização, o castigo. Elevaram o crime, mas depois dizem ‘coitadinho, é pobre e pertence a uma minoria’. Isto é um ciclo histórico paranoico. 

Sabe que está a fazer uma leitura enviesada. Portugal é um dos países mais seguro da Europa. 

Sim, mas a segurança não é eterna e muda. Quando fazemos isto criamos aquilo a que se chama um circuito moral. Só com uma solução é que isto se resolve culturalmente, que é aumentar as penas. Ainda que os crimes não tenham subido de gravidade objetivamente, a sensibilidade social mudou. Estamos a falar de fenómenos de psicologia coletiva. Quando o Chega defende estas medidas está de certa forma a equilibrar o pensamento social.

O país tem problemas gravíssimos de crescimento económico e as preocupações do Chega é a prisão perpétua, a castração química e os ciganos. 

Não, a preocupação é como se regula uma sociedade. O princípio de tudo é o equilíbrio mental e moral das sociedades.

Não sai de casa tranquilo?

Olhe que não, na Margem Sul não. Vivi na Margem Sul e a partir dos anos 90, a zona onde morava começou a ter assaltos. A insegurança nos bairros pobres cresceu, eu conheço isso.

Acha que é prisão perpétua que trava esses crimes?

Não é a prisão perpétua. É o símbolo da penalização. Nós queremos falar para as pessoas, para o senso comum. O agravamento das penalizações são medidas para ter impacto social.

O chamado populismo então.

Posso explicar porque é que essa expressão é profundamente errada. Falamos em moral, as pessoas falam em moralismo, falamos em popular, levamos com o populismo, falamos em autoridade, vem o autoritarismo, falamos em colonial e é colonialismo. Os -ismos são fórmulas que não explicam nada e julgam tudo. 

E em relação aos ciganos?

Não vale a pena enganarmo-nos. Há um problema social com a comunidade cigana. Essa é uma questão sensível, porque está agregada a uma potencial violência ainda que ela nunca se manifeste. Experimente ser professor numa escola que tem alunos ciganos. Até pode repreender o aluno que não respeita ninguém, até o pai dele pode não fazer nada, mas a sua tendência é não repreende-lo, porque no dia seguinte tem o pai dele à espera à porta da escola para lhe bater. Portanto, há um problema identitário sério com a comunidade cigana. 

Mas que estudo é que vocês têm?

Nem é preciso estudo, é só usar a sensibilidade humana nesta questão. Os grupos que são criticados e aceitam a crítica são os que mais progridem, porque corrigem internamente atitudes, comportamentos e práticas. Aceitar a crítica social é o caminho para a prosperidade. Esse é o grande trunfo do homem branco. Os grupos que não são criticados por vontade própria ou por imposição alheia tendem a falhar mais sistematicamente. O primeiro passo para a liberdade do indivíduo é a crítica virada para dentro. O homem branco passa o tempo todo a criticar a outra metade e progride assim. Há uma crítica social interna muito forte. E além disso, o homem branco incentiva outras pertenças raciais a criticarem-no. 

Mas o homem branco pode dar-se ao luxo de ser criticado por pertencer a uma maioria, não?

Não, no contexto mundial, os brancos hoje são uma minoria. É só contar a evolução demográfica. Aqui o problema é o homem branco de esquerda que vicia este jogo. Se o branco critica o negro como critica o outro branco, é acusado de racismo. E depois não há incentivo nenhum a que as minorias se critiquem a elas mesmas. O negro criticar o negro, o cigano criticar o cigano, o islâmico criticar o islâmico, é absolutamente desincentivado. Quem tem legitimidade para nos criticar é quem pertence à nossa identidade, mas se não há crítica interna dentro desses grupos, então eles tendem a falhar socialmente. Se um negro como eu é admitido num país branco, é acolhido e reconhece a dignidade, a história e o valor da identidade, na qualidade de negro tenho o direito de elogiar-vos enquanto brancos. Mas se o fizer cai mal. Porque é que um branco pode elogiar um negro, mas porque é que cai mal o contrário, ainda que o branco dê tudo a esse negro? 

Mamadou Ba penso que lhe chamou suíno.

Sim, embora isso seja crítica interna saudável. Mamadou Ba fala mal de mim e eu dele. Não lhe respondi, porque há um nível que não merece resposta. 

Não merece resposta?

Ele diz coisas tão idiotas e tão indignas que uma pessoa às vezes pensa que é melhor não argumentar com uma pessoa que não compreende o básico. Só sabe insultar. Mas voltando à questão não há incentivo à crítica interna no seio das minorias. A minoria não pode elogiar o homem branco, ou digamos assim a maioria. Isto é de uma injustiça tremenda. 

Acha que o que André Ventura fez no Parlamento foi justo? Há dois fuzileiros que estão detidos por estarem entre os supostos agressores do polícia que morreu. Há um cigano cá fora. Mas Ventura só se referiu em relação ao cigano e não se refere aos fuzileiros. O cigano é que é o mau?

Primeiro, o presidente da Assembleia da República nunca o devia ter mandado calar, aquilo é mesmo uma ditadura mental de esquerda. Foi um abuso. A democracia não é dele e aquilo que ele fez é absolutamente inqualificável. O André Ventura referia-se ao contexto social geral problemático da pertença cigana, que não há em relação aos fuzileiros. Nenhum de nós aqui defende a violência gratuita da polícia. Mas toda a gente sabe que o Chega tem esta visão sobre os ciganos enquanto uma pertença minoritária problemática. O nosso presidente da AR, tal como o anterior, tem estes tiques de achar que impõe o tipo de discurso que se vai ter em democracia. Vivemos num mundo quase insano, estamos ao nível da loucura. Galileu, que era um homem inteligente, quando olhou para os planetas propôs o heliocentrismo e entre outras coisas propôs que o Sol era maior que a Terra. Para um sistema ser funcional é o menor que anda à volta do maior, se não o sistema implode, seja ele qual for. É assim. A maioria determina que os mais pequenos andem à volta. De repente, chegados ao século XXI, temos uma esquerda que veio descobrir a pólvora e quer voltar à Idade Média ao dizer que é a maioria que tem que andar à volta da minoria. Há uma pressão para a integração, mas quando se sobrevaloriza estas minorias no campo político cria-se um problema de implosão do sistema social. 

É por isso que o Chega não é tão recetivo em relação à integração de refugiados sírios, que por acaso até é um caso que lhe toca.

Sim, porque a emigração tem que ser regulada. A identidade europeia tem que ser respeitada. Para se acolherem bem os imigrantes, tem de haver alguns cuidados. Não é possível absorver tudo o que é diferente.

Quando veio para Portugal, se o Chega mandasse provavelmente não o deixavam morar cá.

Está a colocar um se, mas a grande integração feita das minorias também foi feita no tempo colonial, durante a governação de Salazar e Marcello Caetano. E funcionou, não enquanto havia a discriminação negativa. Se o Bloco de Esquerda estivesse no poder na altura em que eu vim para Portugal aos 14 anos, se calhar eu hoje era um drogado.

Porquê?

Exatamente porque teria sido tratado como uma vítima, coisa que ninguém na altura, felizmente, ninguém se lembrou de fazer. A realidade não se pensa em ses.

Acha que quem é tratado como vítima torna-se drogado?

Não, estou a seguir a lógica do seu raciocínio, que é gerar uma interpretação. Estamos a navegar na mesma onda do absurdo. Mas há outro aspeto. A relação entre identidades é uma coisa que tem de ser muito bem pensada. Para mim, o inconsciente coletivo é uma evidência. Um povo que é povo não nasce hoje. Ser português é um percurso histórico. Portanto, há um inconsciente coletivo que faz uma identidade. Eu, por exemplo, não tenho ascendentes europeus portugueses. Um processo de integração tem que ser ponderado e muito bem pensado. A minha integração em Portugal e daquela geração que nasceu no tempo colonial tem alguma diferença porque nós já tínhamos um contacto com a maneira de ser e de estar portuguesa. 

É vice-presidente do Chega e coordenador-geral do Gabinete de Estudos do partido. Em que consiste este gabinete? 

Fui convidado para entrar no Chega pelo Diogo Pacheco de Amorim, no verão de 2020. O Chega tinha-se afirmado como um partido de discurso, das redes sociais, mas era preciso ter um Chega que tivesse uma componente mais intelectual, mais de arrumação de ideias, mais de escrita programática. Para responder a isso criámos o gabinete de estudos, para criar um Chega equilibrado. O partido estava a nascer e era preciso arrumar a identidade do partido. Depois até podemos falar do programa [eleitoral] com nove páginas, que eu sublinho desde já que foram nove porque não consegui que fossem sete. Então o Gabinete de Estudos organizou-se por áreas que no fundo correspondem mais ou menos às áreas das comissões parlamentares. Atraímos intelectuais para essas áreas e uma boa parte deles não quer dar o nome porque havia compromissos nas universidade e nas carreiras profissionais, onde o nome do Chega queimava. Tentamos arranjar um coordenador para cada uma dessas áreas. Uma parte do trabalho era arrumar ideias, depois era fazer conferências junto da militância, para discutirmos o que é ser do Chega e arrumarmos ideologicamente o partido. Vivemos numa sociedade que era uma autêntica panela de pressão, ou de repressão. Essa panela foi aberta pelo Chega. Quando a tampa é aberta solta-se tudo. Depois é preciso disciplinar as coisas e orientar. O Gabinete de Estudos serve para isso e para produzir pensamento para cada uma das áreas. É preciso andar pelo país a fazer almoços e jantares para conversar com os militantes sobre a identidade do Chega. Como o partido cresceu, a ideia agora é tentar que cada distrital tenha também um gabinete de estudos. 

Acredita que nessas distritais há crânios capazes disso?

Em algumas há. 

Tem havido várias saídas do Chega, militantes, vereadores,…

Sim, saem uns entram outros. O partido renova-se. Tivemos, por exemplo, uma academia política organizada pelo líder da distrital do Porto, o Rui Afonso, em que deram aulas sobre pensamento político, sobre economia, com pessoas que fossem dar essa formação. Estamos a tentar tornar o Chega num partido de discussão de pensamento e abrir o partido à sociedade civil para atrair pessoas para a área do debate ideológico. Isso é um dos propósitos do Gabinete de Estudos. O trabalho de fundo foi a reorganização do programa político do Chega, que deu no tal programa das nove páginas. Foi um trabalho notável. Se os programas políticos dos últimos 40 anos tivessem sido bem sucedidos, Portugal seria um dos países mais prósperos do mundo. Há um falhanço claro na ideia de programa político. Nós estamos a tentar inovar a esse nível, só que o nosso trabalho de inovação depois cai na caricatura das nove páginas. Decidimos que íamos ter um programa político e um programa eleitoral. O programa político ia dizer quem nós somos, era identitário para ser estável no tempo. O programa eleitoral era conjuntural e ia dizer o que vamos fazer. Mas está no preambulo do programa eleitoral que este não pode ser lido nem desligado do programa político, logo não tem apenas nove páginas.

Quantas páginas tem o programa político?

Não sei de cor, mas tem 90 artigos. 

Então, mas foi dedicado mais trabalho à identidade do partido do que às propostas?

Não. O programa político está dividido, tem matriz moral do partido, depois a matriz cívica e a seguir a matriz política. Deixamos a economia para o último ponto, não é que ele não seja importante, mas a direita tornou-se numa espécie de contabilista do regime, só virada para a economia e deixando as coisas como o ensino para a esquerda. Nós invertemos isso. O tal programa das nove páginas, por exemplo, na área do ensino se clicarem em cima vão ter a um documento completo dedicado só ao ensino. Ou seja, não são nove páginas.

O líder do partido não explicou isso.

Estávamos a preparar um documento para cada uma das áreas que tivesse a lógica bem digerida, para tudo isto ser congruente. Mas tivemos que parar tudo porque era preciso um programa eleitoral. Isto atrapalhou o trabalho do Gabinete de Estudos, que já tinha poucos recursos. Então pedi a várias pessoas que me mandassem textos destas áreas para eu fazer o programa. Uns mandaram coisas enormes outros não.

Então vinham coisas avulsas e isso é que era o vosso programa?

Não, depois eu decidi que os pontos de cada uma das áreas só ia ter 200 a 300 palavras. Mas tínhamos que ter o documento completo, só que muitos dos documentos que me enviaram não chegaram a ser discutidos a nível interno porque só tencionávamos ter o programa completo e consolidado no verão deste ano. Não tivemos tempo para um debate interno destes textos. Portanto acabei por só retirar aquilo que eu achava que era o essencial. Com o tempo vamos renovar o nosso programa eleitoral. Mas também criámos nove paginas para que qualquer português, com qualquer educação, possa perceber o programa do Chega, porque diz o essencial. 

Tendo isso assim tão incipiente como vão discutir os temas na AR?

Não é incipiente. Há uma estrutura ideológica do partido.

Sim, mas vão criticar sem apontar soluções?

Não, de maneira nenhuma. É falso dizer que o Chega não tem ideias, se não se conhecer o trabalho que estamos a fazer.

Então se não é conhecido, assim é difícil. 

Não é conhecido porque a comunicação social não quer conhecer o Chega, apenas quer julgar. Creio que esta é apenas a segunda vez que estou a explicar isto à comunicação social e ando aqui desde 2020. Em relação ao Chega há uma espécie de diálogo de surdos sobre o trabalho que estamos a fazer. Claro que é um trabalho difícil e exigente, mas que ninguém me diga que é legítimo um partido ir a eleições com um programa político com 600 páginas ou mais. Se eu faço um programa com 600 páginas eu tenho que o entregar dois ou três anos antes para dar tempo às pessoas lerem e perceberem o que ali está. Estamos a fazer política não estamos a falar para especialistas. Por isso é que assumimos que somos um partido popular. 

Voltando um bocadinho atrás. Foi militante do PSD durante 15 anos. Como se desfiliou e juntou ao Chega? Deixou de se rever no PSD?

Sim, sim. Enquanto fui militante do PSD, tentei introduzir várias vezes discussões sólidas sobre estas questões raciais, identitárias, e do ensino. E nunca tive eco. Às vezes julgava que me iam convidar para discutir, no tempo da Manuela Ferreira Leite, mas dali nunca saiu nada. Em 2003, publiquei um livro chamado A Pedagogia da Avestruz, sobre o ensino. E já aí dizia que o maior problema do ensino é a indisciplina. O PSD nunca me deu atenção, aquilo era um diálogo de surdos. O PSD na altura estava naquela indecisão de ser de esquerda ou de direita e eu fui arrumando ideias. Publiquei um livro chamado Um Século de Escombros, com os valores morais da direita. E uma coisa que dizia era que não podia ficar em termos morais em cima do muro. Ou se é de direita ou se é de esquerda. O PSD não resolveu isto. Entretanto apareceu o André Ventura e pareceu-me claramente que era a pessoa que ia para o campo político que era o mais correto. Comecei a escrever artigos de opinião que eram muito próximos da orientação política do Chega. Depois recebi o convite do Diogo Pacheco de Amorim e de início comecei como independente e não como militante do Chega, mas acabei a filiar-me. Este é um projeto sólido se formos capazes de arrumar ideias e de responder àquilo que a sociedade exige.

Não acha que o Chega é um partido de um homem só?

Não, claramente não. Espero que isso transpareça agora com o grupo de deputados. 

Os outros deputados também vão intervir?

Se não me calarem a boca eu vou falar. 

Muitos membros do partido têm sido suspensos por terem opiniões divergentes.

Todos os partidos têm esse tipo de problemas. 

Mas no Chega tem sido recorrente, todos os meses são suspensos vários militantes.

Não tem a ver com a natureza ideológica do partido, tem a ver com a natureza sociológica do partido. O Chega nasceu nas redes sociais e aí as pessoas facilmente são agressivas. Não têm contenção porque não estão cara a cara. O Chega acaba por estar muito exposto a ofensas e insultos.

Entre militantes.

Sim, entre militantes. É preciso travar isso. Esse tipo de animosidade pessoal não tem vantagens. Há uma reação disciplinar, mas acredito que é uma fase que vai passar. 

Com a entrada de Cristina Rodrigues, também houve muitos militantes que se desfiliaram. 

Fiz campanha por Leiria e recebi muitos telefonemas e notas a perguntar por isso. A mim não me fez muita confusão a contratação da Cristina Rodrigues. Ela vai colaborar na área jurídica, na área técnica. Uma coisa é ser deputada ou ter qualquer cargo com influência política no partido. Nem sequer é isso que está em causa. É um trabalho técnico. Agora há aí uma questão sensível, que é a da tauromaquia e da identidade de género. Mas é a própria militância que relaciona a parte técnica com a parte política. Eu tive que me explicar em Leiria, porque não sou aficionado da tauromaquia, mas sou a favor da tauromaquia. E depois de andar em Leiria a defender isto, aparecer uma assessora com o perfil de Cristina Rodrigues foi complicado. 

E as questões de género também o questionaram sobre isso?

Não, a mim foi mais pela tourada. 

Cristina Rodrigues é uma pessoa que marca presença em marchas LGBT.

Eu sei disso tudo, é o oposto do que é a orientação do Chega.

Qual é a vossa posição nessa questão? São contra os homossexuais?

Não, não. Esse é um dos temas que raramente discutimos aqui no Chega. Há uma aceitação tácita de todo o tipo de opções. Portanto, não foi discutida, a não ser no nosso programa quando discutimos a questão da família. Aí definimos uma família natural constituída por uma mulher e por um homem. Nesse sentido, defendemos a família, mas não somos contra outro tipo de opções.

Por exemplo, a questão das barrigas de aluguer para casais homossexuais que queiram ter filhos?

Nós distanciamo-nos desse tipo de opções, porque temos uma matriz judaico-cristã.

Um dia que isso venha a ser discutido na Assembleia da República, qual vai ser o posicionamento do Chega?

Não me quero comprometer agora, porque temos um partido pró-vida, temos sensibilidades diferentes e há uma discussão interna que temos de fazer sobre isso.

Imaginemos que amanhã um deputado do Chega apresentava-lhe o seu namorado, o que é que o Mithá Ribeiro dizia?

Para mim não há problema nenhum. Aliás, tenho a certeza que nem para o André Ventura. Pelos outros deputados já não ponho as mãos no fogo. Não acho que a questão da homossexualidade ou da identidade de género seja sequer colocada. A única questão que se pode colocar é quando falamos sobre a família. Ficou claro que defendemos o sentido tradicional de família, com a característica da reprodução da espécie e da preservação do património. 

Com esta questão da vice-presidência da Assembleia da República, tendo sido o segundo nome a ser proposto pelo Chega, não acha que foi instrumentalizado pelo partido? Até pela sua reação depois de ser rejeitado.

Não. Fui eu que pedi ao André Ventura para fazer aquela intervenção. 

Quem propôs o seu nome para a vice-presidência?

Eu sugeri essa possibilidade e depois o André Ventura decidiu. Não sei se outras pessoas sugeriram o meu nome. Mas pareceu-me que era preciso introduzir aqui esta questão racial. 

Então foi um dos nomes propostos propositadamente para introduzir essa questão?

Sim, claro. Até para evidenciar com toda a clareza a hipocrisia de grande parte deste Parlamento ou da esquerda na questão racial. 

Mas acha que foi rejeitado por ser negro ou por ser do Chega?

Não, o que eu estou a dizer é que ao passar a bola para o outro lado, que defende estas causas, quando é confrontado na hora da verdade com um modelo de negro que não encaixa naquele padrão faz isto. Esta questão racial foi introduzida porque quando for oportuno eu vou discutir aqui no Parlamento com toda a frontalidade e com todos os detalhes. É um ponto de partida para introduzirmos a questão racial. A principal ideia era confrontar a esquerda com as suas próprias escolhas. Esta questão é um acerto de contas que vou fazer com a esquerda e com o Parlamento, porque sou vice-presidente negro de um partido que está no centro do debate racial, sou especializado nesta área e nunca fui convidado para um debate. Tenho a plena consciência que fui apagado, tinha mais convites da comunicação social antes de ser do Chega. É uma instrumentalização negativa de um negro desalinhado. Num mundo normal, não tinha necessidade de dizer que era negro. Comparo a reação com o aparecimento da Joacine, ultra-empolada pela comunicação social, e como eu apareci ultra-silenciado na comunicação social.

Porque defende uma vice-presidência de um negro?

Não defendia a vice-presidência se os outros não tivessem o discurso racial que têm. Os outros defendem quotas, mas não podem defender quotas só para o negro que é de esquerda. Então que ponham isso na lei.

Mas não defende quotas.

Não.

Era cronista do Observador. Deixou de o ser porquê?

Não deixei de ser. Escrevo ocasionalmente. Mas quando me tornei militante do Chega os meus textos deixaram de ser publicados. 

E o que alegaram? 

Não alegaram nada.

Mas tinha periodicidade?

Não, mandava quando me apetecia escrever. Acontecer isto é complicado para mim. E a questão da vice-presidência é um ponto de partida para eu por os pontos nos is sobre a questão racial. Depois de eu sentir isto nos meios académicos, senti isto na comunicação social e de repente isto é traduzido em votos no Parlamento. Esta não é uma questão de detalhe. É a forma como se instrumentaliza a questão racial a pretexto de se estar a combater o racismo, que tal como eu expliquei, para mim não existe. A vice-presidência num Parlamento é um lugar simbólico. Se alguém quer um lugar simbólico para promover alguém pertencente a uma minoria, então não o desperdiça. 

Nunca foi importunado em nenhum comício do Chega?

Muito pelo contrário. Não entrei no Chega de paraquedas. Fui a encontros, conferências e nunca dei conta de qualquer tipo de discriminação.