Hoje percebe-se como foi possível acreditar em Estaline e Hitler

Se, com tanta informação, ainda há quem acredite na narrativa de Putin, compreende-se muito bem que tenha havido tanta gente a negar os crimes de Estaline e de Hitler, os gulags, os campos de extermínio.

Como já contei nesta coluna, o meu pai foi membro destacado do setor intelectual do PCP. E, sendo-o, foi certamente estalinista. Mas já não o conheci assim. No tempo em que começámos a ter conversas políticas, ele era já era muito crítico do estalinismo. Sofria com os horrores daquela época, com o massacre dos mencheviques, com os gulags, com as deportações para a Sibéria. E o sofrimento era ainda maior por ter acreditado que tudo isso era mentiras, propaganda antissoviética.

A propósito, contava a seguinte história: 

No princípio dos anos 50, houve uma suposta conspiração de enfermeiras contra Estaline. Muitas foram presas e condenadas. Nessa época, em conversa com um seu correligionário, este comentou em tom crítico: «Então, Saraiva… As enfermeiras, hem?!». Entretanto, Estaline morreu, veio Krustschev, as enfermeiras foram reabilitadas, e o mesmo correligionário, cruzando-se com o meu pai, repetiu-lhe a frase dita tempos antes: «Então, Saraiva… As enfermeiras, hem?!». Só que o ‘hem’ que da primeira vez pretendia criticar as enfermeiras, apontá-las como umas patifórias que tinham atentado contra o grande camarada Estaline, agora era usado em sentido exatamente contrário: visava apresentá-las como símbolos dos embustes do estalinismo. 

Esta história, para o meu pai, era o retrato perfeito da falta de espírito crítico dos militantes comunistas, enfeudados à ‘verdade’ oficial. Repetiam como papagaios o que o comité central dizia, mesmo que o discurso fosse mudando e o que era verdade ontem fosse mentira amanhã. Acreditavam sempre. 

Este é o problema de todas as ideologias. Como a ideologia, por definição, está certa, tudo o que a contradiga está errado. E sendo o partido o zelador da ideologia, pôr em causa o que o partido diz é pôr em causa a verdade. Se os factos contrariarem o que o comité central afirma, os factos estão errados. Ou mal contados. 

Por isso, as pessoas não acreditavam nos milhões de mortos provocados por Estaline; tudo não passava de mentiras para desacreditar o comunismo. 

O mesmo aconteceu no fim da 2ª Guerra Mundial, quando muitos alemães negavam a existência de campos de concentração e de câmaras de gás. Eram falsidades postas a circular pelos inimigos da Alemanha.

Até há pouco, quando víamos imagens ou líamos testemunhos desses tempos, quando ouvíamos pessoas a jurar a pés juntos que não havia gulags, que não havia execuções em massa na Sibéria, que não havia campos de concentração nazis, que não havia câmaras de gás e valas para onde os corpos eram atirados aos montes, que tudo isso eram invenções, parecia-nos impossível. Como podia haver quem não acreditasse no que já era evidente? 

Ora, a guerra da Ucrânia teve para já a ‘virtude’ de nos mostrar como foi isso possível. Num tempo em que os meios de comunicação são infinitamente mais rápidos e mais eficazes do que há setenta ou oitenta anos, quando é muito mais fácil saber o que se passa, quando há imagens em direto nos ecrãs de TV, quando há imagens de satélite, quando há telemóveis com câmaras de filmar, quando há internet, mesmo assim ainda há gente a negar a realidade.

Ainda há quem garanta que a Rússia não invadiu a Ucrânia, que as imagens das cidades arrasadas não são verdadeiras, que as notícias dos massacres são falsas, que é tudo fabricado, que são encenações, propaganda do Ocidente para prejudicar a Rússia.

Em Bucha foi descoberto um massacre depois de as tropas russas saírem? Tratou-se de cadáveres postos ali para culpabilizar os russos. O navio-almirante da frota do Mar Negro foi ao fundo? Tratou-se de uma explosão a bordo e não de um ataque ucraniano. 

Se, com tanta informação, ainda há quem acredite nesta narrativa, compreende-se muito bem que tenha havido tanta gente a negar os crimes de Estaline e de Hitler.

A questão é que, hoje como ontem, muitos só acreditam naquilo que confirma as suas crenças, que vai ao encontro da ideologia que professam. O que a põe em causa é rejeitado ou explicado de modo a não a contradizer. 

Esta guerra veio dividir a opinião pública em dois grupos, de dimensão diferente: de um lado as pessoas que veem a realidade tal qual transparece das imagens diariamente divulgadas, de outro lado os que, empanturrados de ideologia, preferem ignorar os factos ou explicá-los de forma arrevesada. 

Estão neste grupo os militantes comunistas, os que por diversas razões odeiam os EUA, os que defendem o autoritarismo e desprezam a democracia, os que admiram as soluções autocráticas como as que vigoram na Rússia ou na China.
Estão no seu pleníssimo direito, como tenho repetidamente dito.

Mas apetece-me fazer-lhes uma pergunta: se tivessem de fugir para os Estados Unidos ou para a Rússia, para onde fugiriam? Se tivessem de fugir para um país do Ocidente (EUA, Alemanha, França, Suécia) ou para um país do lado de lá da nova cortina de ferro (Rússia ou China), para onde fugiriam? 

Os ucranianos já deram a resposta: fugiram maciçamente para o lado de cá.

Talvez isto ajude algumas pessoas a pensar.