Vladimir Putin quis humilhar as Nações Unidas, bombardeando Kiev em plena visita do seu secretário-geral, António Guterres, acusou o Presidente Volodymyr Zelensky. A mensagem do Kremlin parecia clara: não há nada que esta instituição, nascida da II Guerra Mundial, prometendo que as gerações futuras não sofreriam com o flagelo da guerra, possa fazer para travar o poderio russo. O sonho de uma ordem mundial regida por consensos e pela lei internacional pode ter sofrido um golpe de morte.
«Imediatamente depois do fim da nossa conversa em Kiev, mísseis russos voaram contra a cidade. Cinco mísseis», frisou o Presidente da Ucrânia, na quinta-feira, perante as câmaras, logo após o seu encontro com Guterres. «Isto diz muito da verdadeira atitude da Rússia quanto às instituições globais. Sobre os esforços da liderança russa para humilhar a ONU e tudo o que a organização representa».
O Kremlin, que já admitiu ter atingido Kiev na quinta-feira, assegurou que usou mísseis de longo alcance e alta precisão, tendo como alvo instalações militares, nomeadamente uma fábrica de mísseis. No entanto, terá dificuldade em explicar como é que entre os mortos estava Vira Hyrych, uma jornalista ucraniana de 55 anos, que trabalhava para a Radio Free Europe, criada pelos EUA nos tempos da Guerra Fria, para transmitir notícias para lá da Cortina de Ferro. O corpo da jornalista foi descoberto na manhã seguinte ao ataque, entre os escombros do seu apartamento, que fora atingido pelos mísseis russos.
«Perdemos uma colega querida, que será lembrada pelo seu profissionalismo e dedicação à nossa missão», anunciou Jamie Fly, presidente da Radio Free Europe. «Estamos chocados e furiosos pela natureza sem sentido da sua morte, em sua casa, num país e numa cidade que ela adorava», continuou. «A sua memória vai inspirar o nosso trabalho na Ucrânia».
ONU está paralisada
Guterres chegou a Kiev entre duras críticas ao seu próprio desempenho durante esta guerra, mas também contra a organização que encabeça. A sua demora em ir ao terreno, ou a escolha do Kremlin como primeiro destino, antes sequer de ir visitar Zelensky, criaram celeuma, bem como a dificuldade da ONU em sequer tomar o papel de mediador, acabando ultrapassada pelo regime turco de Recep Tayyip Erdogan, que recebeu ambas as partes em Istambul.
Contudo, muitos observadores apontam que, mesmo que Guterres tivesse tido outra prestação, as Nações Unidas teriam sempre dificuldade em agir nestas circunstâncias. «É errado pensar que na inação como algo completamente novo», escreveu-se na revista Time. «Na verdade, os momentos excecionais na história da ONU têm sido quando o consenso foi alcançado entre os P5 – os Estados oficialmente reconhecidos como nucleares – de maneira a defender a ordem internacional quando um deles está envolvido».
O problema é estrutural. Algumas vozes no Ocidente ainda se levantaram, a pedir que a ONU mandasse capacetes azuis para a Ucrânia, para proteger o acesso dos civis a ajuda humanitária e tentar manter algum nível de respeito pelos seus direitos básicos. Claro que isso não sucedeu, nem se prevê que tal seja possível. O envio de missões de paz é da responsabilidade do Conselho de Segurança, do qual a Rússia – à semelhança dos EUA, China, Reino Unido e França – é membro permanente, com direito de veto.
«O Conselho de Segurança falhou em fazer o que estava ao seu alcance para prevenir e acabar com esta guerra», admitiu o próprio Guterres, ao lado de Zelensky. «Sei que palavras de solidariedade não são suficientes», reconheceu o secretário-geral, que, passados dois meses do início da invasão, quer focar-se «nas necessidades no terreno e em escalar as operações».
É uma paralisia que ameaça condenar as Nações Unidas, em relação à qual se traçam cada vez mais paralelos com a Liga das Nações, a primeira tentativa de criar uma ordem mundial baseada em regras, antecessora da ONU e dissolvida após ter fracassado na tentativa de impedir a II Guerra Mundial.
A invasão russa da Ucrânia «não é apenas mais uma guerra. Este conflito que a abala o sistema, que quebra o sistema, com enormes consequências», alertou Mark Malloch-Brown, antigo vice-secretário-geral da ONU, presidente Open Society Foundations, citado pela Radio Free Europe. Mesmo a expulsão da Rússia da ONU – que requeria que esta não vetasse a sua expulsão no Conselho de Segurança – poderia não resolver o problema, acrescentou Richard Gowan, do International Crisis Group.
«A maioria dos diplomatas dos EUA e de outros países reconhece que expulsar a Rússia da tenda a longo prazo seria mais destrutivo que positivo», explicou Gowan. «Da mesma forma que quando o Japão, Alemanha e Itália bateram com a porta da Liga das Nações».
O problema é que a decadência da ONU não é de agora. E não espanta a hesitação de tantos países em desenvolvimento em cerrar fileiras contra a Rússia, sobretudo aqueles sofreram com a governação unipolar do mundo por Washington, lamentou Nathan Gardels, diretor da Noema.
«Quando Putin goza com a acusação de que a sua invasão foi ilegal, o seu sorriso trocista é entendido perfeitamente por todos aqueles que se opuseram à invasão americana do Iraque sem aprovação da ONU», escreveu Gardels. «E quanto mais o mundo se torna cínico quanto à possibilidade de estabelecer uma ‘ordem global baseada em regras’, que se a aplicassem da mesma forma tanto às grandes potências como a todas as outras nações, mais caminho se abre a esses poderes para agirem com impunidade».