OMS em Portugal. “É muito difícil prever” quantos anos a população levará a adaptar-se ao coronavírus

Gerald Rockenschaub, diretor regional de emergências da OMS Europa, esteve em Lisboa para o pontapé de saída de exercícios de preparação para emergências de saúde. Portugal é o primeiro país europeu a submeter-se ao mecanismo Universal Health and Preparedness Review.

Em entrevista exclusiva ao i, o responsável da Organização Mundial de Saúde diz que é cedo para considerar que a covid-19 é passado.

Já saímos da fase aguda da pandemia na Europa em que passamos a poder falar de uma doença endémica?
Tivemos uma reunião do Comité de Emergência da OMS no dia 30 de abril, que aconselha o diretor-geral da OMS, e a conclusão foi de que a covid-19 continua a ser uma emergência de saúde pública internacional. Na Europa vemos tendências de estabilização ou descida de casos mas ainda é demasiado cedo para dizer que isto é passado. Não sabemos o que vai acontecer e este vírus já nos surpreendeu várias vezes. Nesse sentido, o que temos feito é apelar aos países que se mantenham vigilantes, que mantenham uma capacidade elevada quer de testagem quer de sequenciação do vírus para que possamos detetar novas variantes, e, ao mesmo tempo, mantenham o impulso de vacinação. É o mais eficaz para proteger sobretudo os mais vulneráveis. Neste contexto europeu precisamos mesmo de focar-nos nos mais vulneráveis, nos mais velhos, até porque sabemos que a imunidade conferida pelas vacinas diminuiu com o tempo.

O vírus continua com transmissão elevada. Os idosos, que fizeram a terceira dose no fim do ano passado, poderão estar agora mais vulneráveis do que no início do ano?
Exatamente. E por isso ainda temos alguns fatores de incerteza.

Estavam à espera de tantas infeções na primavera depois do pico de casos do início do ano?
A contagiosidade da variante Omicron surpreendeu-nos de facto mas a boa notícia foi que a vacinação funcionou naquilo que se pretendia, que era proteger das pessoas de doença grave e hospitalização. Portanto podemos dizer que a vacinação se tem revelado eficaz. Não sabemos ainda qual será o padrão de transmissão. Dependerá de muitos fatores, dos níveis de imunidade, de novas variantes.

Quantos anos estimam que possa durar esta adaptação da população ao vírus?
É muito difícil de prever. Acho que estamos na trajetória certa para a pandemia se tornar uma epidemia mas temos sempre de nos lembrar que mesmo quando uma doença é epidémica e sazonal isso não é necessariamente uma boa notícia, porque vemos que a gripe sazonal tem um elevado impacto mesmo com a vacinação, causando um elevado número de mortes.

Temos anos bons e anos maus.
Sim e o vírus da gripe também continua a mudar.

As máscaras foram levantadas em Portugal há uma semana, à semelhança do que tem acontecido noutros países e os testes deixaram agora de ser gratuitos nas farmácias. Em abril morreram cinco vezes mais pessoas com covid-19 em Portugal do que no ano passado, a maioria muito idosas. Ao relaxar as medidas, estamos a abandonar os mais velhos?
Pelo contrário, e daí a mensagem de que é preciso continuar a proteger os mais vulneráveis. A covid-19 pode não ser uma grande tragédia para os mais novos que são completamente saudáveis mas é uma tragédia para as pessoas mais velhas que têm sistemas imunitários comprometidos, que têm comorbilidades e para quem uma infeção pode ser fatal.

Vê essa preocupação a manter-se?
Claro que temos a fadiga pandémica, as pessoas estão saturadas de restrições, encerramentos, confinamentos. Isso é perfeitamente compreensível. E por isso penso que temos de ter uma abordagem bastante pragmática, andando para a frente mas mantendo cuidado com os mais vulneráveis, mantendo níveis de alerta elevados nos sistemas de saúde e também investindo em investigação e em recursos humanos. Em muitos países vemos que os sistemas de saúde estão sobrecarregados, com falta de profissionais, em particular de enfermeiros, que muitas vezes não são bem pagos e estão sujeitos a muito stresse profissional.

Os próximos anos serão especialmente desafiantes também por isso?
Penso que o lado bom é que se vê uma mudança na arena política no sentido em que os governos têm vindo a reconhecer cada vez mais que a saúde é uma prioridade. Agora precisamos de usar este momentum para conseguir mais recursos para a saúde e construir as capacidades que estavam em falta à medida que fomos enfrentando a pandemia.

A saúde pública era considerada um parente pobre, com uma ínfima percentagem dos orçamentos dedicada à prevenção. Quando fala de se aproveitar é por ter a ideia de que se não se investir agora dificilmente isso se fará? 
Exato. O problema é que a saúde era vista como um custo e não como um investimento para proteger as sociedades ou pré-requisito para a prosperidade económica.

A postura da OMS nestes exercícios de preparação para emergências é mais diplomática ou o que está mal vai ser apontado?
Não se trata de sermos nós a apontar os desafios. Os colegas portugueses têm formação e treino suficiente, têm as capacidades necessárias para identificar os seus próprios desafios. [A nossa intervenção] é mais no sentido de defender que ao nível político devem ser tiradas as conclusões e lições devidas, que isso deve ser feito agora e que precisamos de priorizar. Acho que é muito mais um trabalho de se definir prioridades para avançar. Sei que o vosso Parlamento está agora a negociar um novo orçamento e é importante ter as prioridades da saúde refletidas nesse processo. 

Qual foi para si a principal lição da covid-19?
Pensávamos que as emergências de saúde eram um pouco um problema dos países com menos recursos. A covid-19 mostrou-nos que podem ser também um enorme desafio em países com recursos substanciais. E acho que se viu isso na necessidade de envolver todos os ministérios e de este não ser um problema apenas do Ministério da Saúde. É preciso envolver as comunidades, as diferentes instituições e os diferentes ministérios. A nível global penso que o mais marcante foi ver a falta de solidariedade em alguns países, que se preocuparam mais em garantir as suas necessidades nacionais em vez de pensar numa distribuição equitativa por exemplo das vacinas.
Uma técnica do ECDC disse-me uma vez que um dos receios que tinha era a complacência em relação ao vírus.

Sentiu-o?
Acho que o sentimos em diferentes níveis. 

Parece haver um aumento dos movimentos anti-vacinação. Está preocupado com o regresso de surtos de sarampo à Europa?
Já está a voltar. Tivemos uma infodemia em cima da pandemia, infelizmente com muita informação incorreta a circular nas redes sociais. Falava com o vosso secretário de Estado da Saúde e dizíamos que é um pouco como no futebol em Portugal, em que há 10 milhões de treinadores de bancada e ninguém sabe mesmo o que precisa de ser feito. Muitas vezes os próprios especialistas debatem-se com dúvidas porque a ciência é um processo contínuo. É natural que vejamos mais casos de sarampo porque os programas de imunização foram afetados em muitos países e por isso está na altura de pôr todos esses programas de saúde em dia.

As máscaras vão voltar a ser recomendadas no próximo inverno?
Depende muito da situação que se vier a observar. Penso que o uso de máscara é uma intervenção que não requer muitas restrições a nível individual. Se virmos um aumento de casos, teríamos de repensar as intervenções a recomendar e o uso de máscara é certamente uma medida que mostrou ser eficaz em determinados ambientes e que não limita muito a liberdade dos indivíduos.

O confinamento foi a medida mais marcante da pandemia, decidida inicialmente num momento de desconhecimento de uma nova doença. Dois anos depois, que avaliação fazem na OMS? Os confinamentos são eficazes?
Diria que os confinamentos são eficazes mas não são úteis. Temos de ser mais mais inteligentes e encontrar soluções melhores.

Para evitar novos confinamentos mesmo numa nova pandemia?
Sim, quer dizer, as consequências económicas são tão maciças que penso que não podemos voltar a suportar grandes confinamentos. Vemos impactos na saúde mental, vemos consequências para outras doenças e vemos obviamente implicações na vida das pessoas.

Teremos populações mais doentes depois da pandemia?
Estamos a avaliar a mortalidade adicional na pandemia e há evidentemente algumas questões não relacionadas apenas com a covid-19 mas adiamento de tratamentos oncológicos, de tratamento de doenças crónicas.

Disse que os novos casos de hepatite em crianças são um tema urgente para a OMS. Uma das explicações tem sido as crianças estarem mais frágeis depois de dois anos de maior isolamento. Podemos ver a emergência de mais síndromes?
É uma das hipóteses ainda em estudo. Neste momento ainda é um pouco especulativa.