A inflação é «temporária». A opinião é do governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, na apresentação do mais recente boletim económico. A verdade é que um pouco por todo o mundo – e Portugal não é exceção, a inflação tem atingido máximos históricos.
Poderá então ser apenas temporária? Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa, começa por explicar ao Nascer do SOL que em Portugal, a inflação «tem sido impulsionada sobretudo pelo aumento dos preços da energia, desde os combustíveis fósseis à eletricidade, e menos intensamente pela subida dos preços dos cereais, nomeadamente depois da invasão da Ucrânia pela Rússia».
Para o economista, a subida dos preços da energia e dos alimentos «estimula uma dinâmica inflacionista temporária, com as empresas com poder de fixação de preços a repercutirem a alta dos custos dos seus inputs nos seus clientes e no consumidor final». E acrescenta que a subida dos custos energéticos é inflacionista. Explicações dadas, Paulo Rosa defende ser «coerente falar-se em inflação ‘temporária’, enquanto a subida dos preços da energia o for também» mas «uma inversão da subida dos preços da energia criará também um processo deflacionista e, consequente, abrandamento da inflação».
Por outras palavras, o economista do Banco Carregosa diz que a inflação em Portugal «é um fenómeno exógeno, é do lado da oferta. Não existe verdadeiramente uma inflação do lado da procura motivada por um robusto consumidor». E, no seu entender, não existe também uma espiral de subida de salários inflação. «É difícil esse fenómeno existir, no longo prazo, numa economia com capacidade instalada suficiente para colmatar a procura, como é o caso das economias avançadas».
Mas deixa o alerta de que se os preços da energia continuarem em alta e a impulsionar a inflação até ao final do ano, «é exequível uma reposição do poder de compra dos portugueses através de aumentos salariais alinhados com os níveis da inflação homóloga anual».
Por seu turno, Ricardo Evangelista, diretor executivo da ActivTrades Europe S.A, defende que a narrativa de inflação temporária costuma ser utilizada com frequência por responsáveis dentro do espaço Europeu como justificação para a manutenção das atuais baixas taxas de juro. «É verdade que a subida dos preços na zona euro tem em larga medida sido determinada por fatores externos, como os problemas na cadeia logística global no pós-pandemia e o aumento do custo das matérias primas, especialmente as energéticas, nos mercados globais», explica ao nosso jornal, acrescentando que «a ideia é de que uma inevitável normalização dos mercados globais irá significativamente reduzir as pressões inflacionárias na Europa».
Mas questiona-se: «A chave aqui é a definição de ‘temporário’; estamos a falar de meses, anos? O atual cenário, exacerbado pela guerra na Ucrânia, não tem fim à vista, e por isso será um pouco perigoso continuar a olhar para a inflação como um problema que acabará por se auto-resolver. Uma postura mais restritiva, com subida das taxas de juro e redução, ou até fim do programa de compra de ativos, por parte do BCE poderá ser necessária para evitar a perda de controlo e uma espiral inflacionária que teria consequências muito negativas», adianta.
Já Nuno Mello, analista da XTB, começa por dar números. Em abril, a taxa de inflação homóloga em Portugal terá disparado para 7,2%, segundo a estimativa rápida do Instituto Nacional de Estatística (INE), o que compara com os 5,3% registados em março, o valor mais elevado desde março de 1993. «A inflação subjacente, que exclui os produtos alimentares não transformados e energéticos, também subiu 5%, o registo mais elevado desde setembro de 1995», diz, acrescentando que «as previsões das várias instituições, como o BCE e o FMI, apontam para que a inflação permaneça elevada nos próximos meses, devido ao aumento dos preços da energia e à situação da guerra na Ucrânia que traz sempre mais pressões inflacionistas».
E não tem dúvidas que a primeira consequência da inflação elevada será «a queda dos indicadores de confiança dos consumidores, desde já em níveis muito baixos». Mas há outro fator a ter em conta que é «a quebra nas compras dos consumidores, como as vendas a retalho, automóveis, casas, etc.».
‘Refletir nas decisões de consumo’
Na apresentação, Centeno deixou ainda claro que «temos de a refletir nas nossas decisões de consumo e produção se quisermos ser consequentes com os objetivos que traçamos». Questionado sobre o que o governador do BdP quererá dizer com isto, Paulo Rosa defende que «talvez queira passar a mensagem de alguma parcimónia com o objetivo dos consumidores evitarem os bens supérfluos e se focarem mais nos bens essenciais, caso contrário a atual diminuição do rendimento real poderá criar problemas antes da chegada do final do mês».
Já Nuno Mello diz que com este aumento da inflação será normal que os consumidores se questionem sobre se devem retrair-se no consumo devido à fatura energética mais elevada ou se continuarão a gastar com a poupança. «A resposta não é trivial mas o que é certo é que a taxa de poupança das famílias da zona euro recuou para 13,3% do rendimento disponível, o valor mais baixo desde o final de 2019, depois das famílias terem intensificado a sua taxa de poupança durante a pandemia. Isto poderá significar que as famílias terão mesmo que ‘apertar o cinto’ e restringirem o consumo aos bens essenciais», considera.
E a subida dos salários?
Outro assunto tocado por Mário Centeno são os salários e diz que é «importante ter cautela» na subida. Porquê? «É sempre importante que uma hipotética inflação ‘temporária’ não seja alimentada por uma espiral de aumento de salários e subida da inflação», defende Paulo Rosa.
Já o diretor executivo da ActivTrades diz que «uma vez que parte do princípio de que a inflação é temporária, subidas de salários tornariam o problema mais permanente, porque aí a inflação já não seria apenas um fenómeno dependente de fatores externos, mas passaria a ter causas internas; neste caso os salários mais altos fariam subir os custos de produção e estimulariam o consumo, exacerbando as pressões inflacionárias».
Por seu turno, o analista da XTB diz que os salários atualmente estão a ser negociados com base em exigências salariais mais elevadas. «Mas penso que, nesta situação, Mário Centeno se refere à cautela que será necessária no que toca ao aumento do salário mínimo nacional, pois implica custos acrescidos para as empresas. Talvez o elemento mais interessante sejam os preços dos serviços, onde a componente salarial é a maior».
2021 recuperou. Continuamos?
Os dados do BdP mostram que a economia portuguesa cresceu 4,9%, em 2021. A dívida pública e o défice orçamental diminuíram, o emprego recuperou e o desemprego mostrou melhores valores que 2019. Com a inflação e a guerra, 2022 poderá ter dados igualmente positivos? Para Paulo Rosa não há dúvidas que «se a inflação continuar a subir e a guerra a escalar, um cenário de estagflação (estagnação económica, ou mesmo recessão, associada a elevada inflação) estará cada vez mais em cima da mesa».
Para Ricardo Evangelista, é claro que a guerra e a inflação terão consequências no crescimento português, lembrando que a economia portuguesa foi uma das mais afetadas pela pandemia em 2020 devido à dependência do turismo. «E, por conseguinte também foi das que mais beneficiou com o regresso de uma certa normalidade já durante o ano passado e no primeiro trimestre de 2022. Agora que começamos a virar a esquina, deixando para trás a pandemia, será mais complicado manter os níveis de crescimento dentro de um contexto que mais uma vez se mostra complicado com a perspetiva de recessão global», alerta.
Também Nuno Mello fala na possibilidade de estagflação. «Além disso, os principais bancos centrais de todo o mundo já iniciaram a subida das taxas de juro, numa tentativa de controlar a inflação», lembra, acrescentando que a subida das taxas de juro «irá prejudicar as famílias endividadas e sobretudo as empresas mais endividadas, criando uma espiral recessiva».
A tudo isto, acresce «os riscos geopolíticos e a incerteza da guerra na Ucrânia e de uma possível invasão de Taiwan por parte da China. O reaparecimento dos casos de covid-19 na China, que levou ao lockdown de cidades inteiras, veio também abalar novamente as cadeias de abastecimento que ainda tentavam recuperar dos bloqueios impostos em todo o mundo pela pandemia», diz.