Filho de um judeu lituano que chegou ao Brasil em 1926, Marcio Pitliuk foi publicitário durante 25 anos. Quando se encontrava na casa dos 50 teve uma espécie de crise de meia-idade e decidiu participar na Marcha da Vida, um programa educacional que promove anualmente visitas aos lugares do Holocausto. Ficou tão tocado com o que viu e descobriu que vendeu a sua agência de publicidade para se dedicar em exclusivo ao voluntariado e ao estudo do tema.
No momento em que acaba de ser publicado o seu terceiro romance, Pitliuk passou por Portugal para falar sobre o novo livro. O Engenheiro da Morte (ed. Gradiva) conta a história do homem que desenvolve o gás letal usado para exterminar os judeus – o livro muda-lhe o nome de ‘Zyklon-B’ (ciclone) para ‘Taifun’ (tufão). Com a derrocada da Alemanha, Carl Farben foge com a família para o Brasil, onde inicia uma nova vida sob uma nova identidade, como aconteceu com tantos responsáveis nazis durante a ditadura de Getúlio Vargas.
Para maior fidelidade ao tom da conversa e ao modo de falar do entrevistado, respeitámos as especificidades do português do Brasil.
Carl Farben, o protagonista do seu livro, é um engenheiro que desenvolve o gás letal usado nas câmaras de gás dos campos de concentração. Esta personagem inspira-se numa figura real?
Não. Na verdade, quem desenvolveu o Zyklon-B, muito antes da guerra, foi um judeu. Um engenheiro que acabou até sendo morto. O meu primeiro livro sobre o Holocausto, O Homem que Venceu Hitler, é sobre uma polaca cristã que salva um judeu. No segundo, A Alpinista, falo sobre a participação das mulheres alemãs no nazismo. E neste quis contar a história da elite alemã que ajudou o nazismo. Criei o Carl Farben como um engenheiro, como tantos que existiram que ajudaram o nazismo e ajudaram no assassinato dos judeus. Como eu falo no livro, o soldado que organizava a fila era o último elo da corrente. Mas até chegar na fila, tinha toda a sociedade alemã participando disso. Nos meus livros, em geral, eu não falo do judeu, falo do não-judeu que participou disso.
Este método de assassinar pessoas com gás não apareceu espontaneamente. Foi – usando muitas aspas – ‘aperfeiçoado’ ao longo de várias etapas, não é verdade?
Isso. Começou com o gás carbónico. Pegavam motores a diesel, fechavam uma sala e jogavam o gás para o projeto de eutanásia, em que mataram doentes mentais ou crianças com problemas físicos. Para matar os judeus, começaram com o fuzilamento. Só que o fuzilamento não era económico, não era prático e não era eficiente. Dentro da organização alemã, em que tudo tem de ser muito eficiente, descobriram que câmaras de gás poderiam ser mais eficientes e menos cruéis para os carrascos. Porque matar com tiro faz sangue, há gritos… Se trancar 50 pessoas numa sala e matar com gás, é menos sofrimento para o carrasco.
Se bem que julgo que também havia gritos e tumultos nas câmaras de gás.
Com certeza. Mas estavam trancados. Já foi a algum campo de concentração?
Só Auschwitz-Birkenau, há muitos anos.
Estavam numa sala fechada de concreto, com uma porta larga… os gritos são mais abafados.
Mas é interessante que há este paralelismo entre desenvolver um produto para a indústria e desenvolver um método de morte também ele industrial.
Isso é que é o diferencial do Holocausto para qualquer outro tipo de assassinato, seja na Ucrânia hoje, na Sérvia, na Croácia ou na África. O Holocausto foi uma indústria em que cada problema gerou uma resposta. Quando as câmaras de gás começaram a funcionar com muita eficiência, tinham que se livrar dos corpos, dos cadáveres. E aí começaram os fornos crematórios. Uma coisa levava à outra.
Um especialista no Holocausto dizia-me que o método de assassínio com o gás letal funcionava como um comando à distância, para os alemães não sujarem as mãos.
Sim. O soldado organizava a fila. Quando começavam a tirar as roupas para entrar na câmara de gás, porque diziam que eram chuveiros, o soldado já não participava, quem participava eram outros judeus. E para tirar os cadáveres e colocar no forno crematório também eram prisioneiros, os sonderkommando. Os soldados não tinham contacto direto com isso.
Na Primeira Guerra Mundial também foi utilizado gás mostarda, até há um romance sobre isso, Os Thibault, de Roger Martin du Gard [vencedor do prémio Nobel da literatura em 1937]. O uso de gás em 14-18 pode ser visto quase como um ensaio?
Não pode comparar. Eles jogavam nas trincheiras gás cloro e gás mostarda. O gás mostarda não matava tão facilmente. O cloro intoxicava, mas não foi um preparo para isso. Nem sabiam que ia existir. Quando Hitler chega ao poder, ele dizia que queria eliminar os judeus mas não existia o plano do assassinato. O plano do assassinato começa em 41, quando invadem o Leste europeu. Eles queriam livrar-se dos judeus, mas não era concreto que iam matar todos.
Podiam persegui-los, obrigá-los a fugir…
Sim, trancavam no gueto, matavam de fome, escravizavam. Mas o processo de assassinato em massa surge só no final de 41.
É aí que entra o palacete de Wannsee? O que se passou lá no dia 20 de fevereiro de 1942?
É nesse palacete de um bairro de Berlim que quinze autoridades alemãs, civis – tinha ministros, juízes, advogados – e militares, traçam em dois dias o processo de eliminação total. Aí sim, eles falam: ‘Vamos matar todos os judeus. Não vamos mais expulsar, vamos matar’. Todos os documentos foram queimados, sobrou só um, não se sabe se de propósito ou não. Não fala em assassinato, falam em ‘solução final do problema judaico’, a tradução em português seria essa. Nunca escreveram nem falaram sobre o assassinato em massa dos judeus. Criaram um jeito de falar de outra forma e ali foi decidido isso. Como eu conto no livro, o Zyklon-B foi testado em 600 prisioneiros de guerra russos. Esse teste existiu mesmo. Quando chegaram em Wannsee, já sabiam que tinham um gás eficiente para matar os judeus. Wannsee é um marco para o Holocausto.
Disse que estavam lá juízes. Um dos aspetos perturbadores é que os nazis tentavam dar uma cobertura de legalidade aos seus crimes.
Existia isso. As leis de pureza da raça, por exemplo, que começaram a cercear os direitos civis dos judeus na Alemanha, a impedi-los de serem médicos, juízes, engenheiros, advogados, dentistas. Essas proibições eram leis feitas por juízes em tribunal. Não é o Hitler que decreta. O historiador Raul Hilberg, que tem dois livros sobre isso, cada um de 900 páginas [A Destruição dos Judeus Europeus], conta que teve um advogado judeu que entrou na justiça com um processo contra essa lei, dizendo ‘eu sou alemão, o meu pai é alemão, estudei na Universidade de Berlim, tenho o direito de ser advogado’. Durante três ou quatro meses discutiram isso em tribunais até chegarem à conclusão de que ele não tinha direito. Não foi um ato ditatorial, foi uma lei sujeita a discussão.
Também falou do papel das elites, dos industriais, dos financeiros. O que aconteceu resultou do desprezo dos alemães por essas raças que consideravam inferiores, mas também da ganância e do desejo do lucro.
Sim. É uma somatória. O antissemitismo que existia na Alemanha…
E na Rússia, na Polónia…
Em todo o lugar. Na França, na Holanda… como teve a Inquisição em Portugal e na Espanha. O antissemitismo sempre existiu. O que os nazistas fizeram foi transformar isso em algo favorável ao regime. Eles se aproveitaram disso para unir o povo alemão numa causa comum. Todo o ditador precisa de criar um inimigo externo, não é? Fidel Castro dizia que a culpa do fracasso era dos americanos. A Coreia do Norte diz que a culpa é do Sul. Os palestinos dizem que é de Israel. A culpa nunca é da incompetência, é sempre do outro. Então os judeus serviram como esse bode expiatório, e para a sociedade alemã eliminar os judeus foi bom. Como eu conto no final do livro, 25% dos advogados de Berlim eram judeus. Na Alemanha a média era 15% mas em Berlim era 25%. Quando existe uma lei que proíbe os advogados judeus de trabalhar, o mercado para os não judeus aumenta. A mesma coisa com os professores ou os médicos.
Cria mais oportunidades.
Os judeus na Alemanha eram 0,8% da população, não eram nem 1%. Mas ocupavam posições de destaque. Proibir que eles exercessem certas profissões era bom para os outros. O mesmo com o campo de concentração: precisa de arame farpado, precisa de instalações elétricas, precisa de engenheiros e arquitetos para construir. Quem ia construir isso? As empresas alemãs, os engenheiros alemães. Era um bom negócio.
Por que optou por abordar este tema sob a forma de romance? É importante para si contar uma história?
Por duas razões. Primeiro, eu não sou professor, não sou historiador. Fui durante 25 anos publicitário, não tenho formação académica para escrever um livro histórico. Mas, por ser publicitário, sei fazer comunicação. Para comunicar com a grande massa, com o povo, um romance é mais fácil de ler do que um livro de história, porque as pessoas se envolvem com a narrativa, com as personagens. Fica mais fácil a leitura e eu não corro o risco de falar alguma coisa errada e ser criticado por isso.
E há interesse do público brasileiro por estes temas?
O Holocausto é o tema que gerou mais livros e filmes em todo o mundo. Mais do que o faroeste, mais do que a máfia. É tão interessante e envolvente…
E inesgotável.
Tem violência, de que o povo gosta, tem drama, e é verdadeiro. Os filmes baseados no Holocausto já ganharam 23 óscares. Eu falo sempre para a editora, tanto no Brasil como aqui, ‘coloque a suástica na capa’. Você vai a uma livraria, vê uma suástica na capa, vai lá para ver o livro. É uma marca muito forte.
Hitler já tinha percebido isso. E você como publicitário…
Também percebi [risos]. Você está na livraria, vê a suástica. ‘O que é esse livro?’. Vai até lá. É um tema que interessa às pessoas, todo o mundo quer ler, e ao mesmo tempo pouca gente conhece direito. As pessoas no Brasil não têm ideia do que foi o Holocausto. Acham que os judeus morreram na rua, não sabem que foi uma coisa organizada. Já dei mais de 200 palestras, em universidades por exemplo, eles ficam surpresos quando conto a organização que teve por trás.
Acaba de ser publicado em Portugal Por Dentro do Terceiro Reich, o livro de memórias de Albert Speer, o arquiteto favorito de Hitler e ministro do armamento. Speer sempre foi visto um pouco como o ‘bom nazi’, o ‘nazi decente’, que se arrependeu e que tendemos a desculpabilizar. Curiosamente, no seu livro ele aparece como alguém tão responsável como os outros pelos crimes cometidos.
Fiz um filme onde levei um sobrevivente a todos os lugares onde ele passou a II Guerra Mundial. E ele foi escravo em Mauthausen. Quando lá estivemos, vi uma foto de Speer visitando Mauthausen. Ele sabia exatamente o que estava a acontecer, usou mão-de-obra escrava à vontade. Depois todos são arrependidos. Acho que se Hitler tivesse sobrevivido também ia dizer: ‘Estou muito arrependido’. Mas nenhum deles se arrependeu de verdade. Fizeram isso porque eram antissemitas e porque se estavam beneficiando da morte dos judeus. Todo o mundo que se aproxima do poder fica maravilhado, deslumbrado, e acha que vai ter grandes benefícios com isso. Speer estava maravilhado com Hitler, como todos os alemães estavam.
Hipnotizados, quase.
Estavam matando judeus, e daí? Não estavam matando alemães, eram untermenschen. Não queriam matar holandeses, não queriam matar noruegueses, mas judeus, russos ou polacos, qual era o problema? Isso do arrependimento é mentira de todos eles. No meu livro anterior, A Alpinista, eu falo disso. Depois da guerra, as mulheres todas diziam que não sabiam o que o marido fazia. Como é que você não sabe o que o seu marido faz? O casaco de peles que usava não sabia de quem era, a joia, não sabia de quem era. Caiu do céu. É para isso que eu trabalho, para desmistificar essas mentiras.
A história do seu livro a certa altura passa da Alemanha para o Brasil. Há muitos casos de pessoas com responsabilidades no regime nazi que fugiram para o Brasil?
Sim, muitos nazistas fugiram para a América do Sul.
Há o caso do Mengele [o ‘médico da morte’, que usava os presos como cobaias em experiências arrepiantes] ou do próprio Eichmann [um dos ‘cérebros’ do Holocausto].
Eichmann foi preso em Buenos Aires. O Mengele morreu afogado numa praia no Brasil, pode ter tido um enfarte. Morou na Argentina, no Paraguai e no Brasil. O Klaus Barbie, o carrasco de Lyon, que matou centenas de crianças na França, morou na Bolívia. Muitos fugiram para a América Latina, principalmente para a Argentina e o Paraguai, que tinham ditaduras de direita – Perón na Argentina, Stroessner no Paraguai. Chegaram com muito dinheiro, deram para o Perón e para o Stroessner, e ficaram. No Brasil tinha um governo fascista, do Getúlio Vargas, que proibia a entrada de judeus mas fechava os olhos para esses nazistas, e depois teve um regime militar que também facilitou a vida deles. E muitas indústrias alemãs estavam no Brasil – Volkswagen, camiões Mercedes, o grupo IG Farben, de que faziam parte empresas como a Bayer, a Hoechst e a BASF, tinha uma filial no Brasil, e esses nazistas foram trabalhar lá. Teve um comandante de Treblinka, um campo de extermínio na Polónia onde foram assassinados 850 mil judeus em dez meses – desciam do trem e matavam, e não era por Zyklon-B, lá era por gás carbónico, 850 mil em dez meses, uma quantidade brutal –, que era o Franz Paul Stangl. Foi preso na Volkswagen com o nome verdadeiro. É impossível que a Volkswagen não soubesse disso. Não tem como dizer ‘eu não sabia’, eram todos alemães na diretoria da Volkswagen. E foi feita uma operação especial porque sabiam que a Volkswagen e o governo militar iam impedir a prisão dele.
Uma operação especial da Mossad?
Não, o Stangl não foi o Mossad, foi a comunidade judaica que ajudou. O Mossad foi o Eichmann e foi um piloto letão, o Herberts Cukurs, um herói de guerra que foi descoberto no sul da cidade de São Paulo. Ele tinha um hidroavião, fazia passeios panorâmicos numa represa, e o Mossad descobriu ele. Um agente do Mossad, que também falava alemão bem, ficou um ano amigo dele, convenceu ele a ir a Montevideo, para comprar lá mais um aviãozinho, e lá o Mossad matou ele.
Como era o Brasil do pós-guerra, em que havia essa comunidade alemã?
O Brasil recebeu imigrantes alemães desde 1870. Mas eram alemães pobres, que foram para o Sul do Brasil, que era mais frio, trabalhar com agricultura. E mantiveram as tradições. Nos anos de 1945-50, quando esses nazistas começam a ir para o Brasil, encontram nessas comunidades um ambiente propício para se esconder. Todo o mundo falava alemão, desde 1870, 1900, 1920 que estavam chegando alemães, gente da Europa toda ia para o Brasil.
Dava para se misturarem, para passarem despercebidos.
Isso facilitou a presença deles. No Paraguai também tinha muitas comunidades alemãs, então esses nazistas encontraram um ambiente protegido.
E mantinham os hábitos?
Mantinham os hábitos, falavam a língua, cantavam música alemã. Tinha um bairro no Sul de São Paulo com uma comunidade alemã muito grande também. Mas hoje não existe nenhum problema. Isso é uma coisa bem interessante. Na Europa, se o grego mora há três ou quatro gerações na Alemanha, ele é grego. Se um russo vier para Portugal, depois de três, quatro gerações, ele continua sendo russo, certo? No Brasil, o imigrante chega e já é brasileiro. Pode ser japonês, espanhol, italiano, alemão. A sociedade brasileira não tem isso. Eu sou filho de um lituano. Mas meu pai era considerado brasileiro e eu sou brasileiro. Ninguém jamais vai dizer que eu sou lituano. Jamais. Você saiu do navio, desce no país, pisou no Brasil, é brasileiro. Pode ser preto, branco, japonês, amarelo.
Como é que o seu pai foi parar ao Brasil?
O meu pai nasceu em 1913 na Lituânia. Além de a Lituânia passar por dificuldades na década de 1920, toda aquela região do Leste europeu – Lituânia, Ucrânia, Polónia, Rússia – era muito ruim para os judeus. Muitos pogroms, muitos ataques. Existiu um grande filantropo e muito rico franco-alemão, o Baron Hirsch, que perdeu o único filho, e então ele e a mulher decidiram usar toda a sua fortuna para tirar os judeus dessa região da Europa e levá-los para a América do Sul. Comprou muitas terras na Argentina, muitas terras no Sul do Brasil, e pagava tudo, pagava a passagem no navio para essas famílias, e quando eles chegavam ganhavam um pedaço de terra, uma carroça, dois cavalos, uma casinha para reconstruir a vida. O meu pai veio com essa imigração. Chegou no Brasil em 1926, com os pais e cinco irmãos. Muitos foram para a Argentina e para o Brasil graças ao barão Hirsch, uns 10 mil, 15 mil, talvez.
O Marcio sente-se ainda um pouco lituano?
Não tenho nada. Sou brasileiro, fui uma única vez à Lituânia, em 2019, porque queria ter cidadania lituana para ter o passaporte europeu, só por isso. Nunca pensei na Lituânia. Fui para lá, não consegui achar nenhum documento do meu pai, tinha sido tudo queimado, tudo destruído, então não consegui a cidadania. Mas há uma coisa muito interessante. Meu pai saiu da Lituânia com 13 anos, e não falava lituano, só falava iídiche. Os judeus viviam tão isolados, que nem falavam a língua do país. Viviam só entre eles, estavam lá há 600 anos e eram judeus, não eram considerados lituanos. Incrível.
A sua origem não tem nada que ver com o seu interesse por estes temas?
Não. Meu pai veio antes da guerra, minha mãe nasceu no Brasil, os pais da minha mãe vieram da Bessarábia, que hoje é Moldávia, o próximo país que o Putin vai destruir… Não, não tenho nada com o Holocausto.
Então como começou a interessar-se?
Existe um evento mundial chamado Marcha da Vida que leva todos os anos milhares de pessoas para conhecerem os campos na Polônia: Auschwitz, Birkenau, Treblinka. Você vai na Polônia para conhecer os campos. Eu estava um dia almoçando com o presidente da Disney no Brasil, que estava com uma crise dos 50 anos, e ele falou: ‘Vou fazer o caminho de Santiago’. Eu também estava na crise dos 50 anos e disse: ‘Eu também vou. Mas o que tenho a ver com o caminho de Santiago, ficar vendo igreja, rezando?’ ?’ [risos] Aí falei: ‘Vou fazer a Marcha da Vida’, que eu sabia que existia mas nunca quis ir. E pensei documentar a Marcha da Vida, fazer uma longa-metragem e um livro de fotos. E descobri que ninguém, nem americanos nem ingleses, tinham documentado isso profissionalmente. Eu não sou religioso. Mas quando terminei o livro queria um rabino para escrever o prefácio. Ele falou que no judaísmo não existem coincidências. Se eu fiz a 20.ª marcha, 60 anos de Israel, se nunca ninguém tinha feito isso e eu fiz, não era coincidência. Era porque tinha de fazer. Isso fez eu começar a ver as coisas de maneira diferente. Me interessou muito o Holocausto e vendi a minha agência de propaganda para me dedicar a isso. É um trabalho voluntário para divulgar o Holocausto. Porque no Brasil não se falava muito. Tinha livros, mas não estava na mídia. E eu coloquei isso na mídia, coloquei nos canais de televisão, coloquei no rádio, comecei a levar sobreviventes para darem palestras em universidades, em livrarias – porque o Brasil tem muitos sobreviventes do Holocausto .
Havendo esses sobreviventes, como se explica que não se falasse no assunto?
O Brasil deve ter recebido entre mil e dois mil sobreviventes. Hoje ainda estão vivos uns 200, eu conheço bastantes deles. Um facto muito interessante é que eles só começaram a falar para os netos.
Para os filhos não?
A grande maioria não contava aos filhos porque achavam que iam passar uma carga muito pesada e não queriam que o filho sentisse que o pai sofreu tanto. Esconderam isso. Os filhos às vezes perguntavam e eles não contavam. Quando surgiram os netos, começaram a contar para os netos, tanto que muitos até começaram a trazer os netos à Europa para mostrar onde viveram, por onde passaram. Então pulou uma geração. Como eu comecei agora, na idade dos netos deles, consegui fazer eles falarem.
Deve haver histórias impressionantes, não?
Fiz um filme onde peço para eles contarem os piores e os melhores momentos durante o Holocausto. Alguns estiveram em Auschwitz, outros estiveram em guetos. Tem inclusive o único judeu nascido no Brasil que esteve em Auschwitz. Morreu há duas semanas. Os pais eram húngaros, foram trabalhar para o Brasil e ele nasceu no Brasil. Aí, a empresa do pai transferiu ele para a Índia, e foram para a Índia. Depois a família decidiu: ‘Vamos ficar um pouco na Hungria de volta’. Foram para a Hungria, a guerra começou. O pai fugiu, a mãe morreu e ele virou escravo em Auschwitz. É muito azar!
Disse que não é religioso. O_que descobriu sobre o Holocausto não mudou a sua maneira de ver as coisas?
Sou sionista, sou judeu, conheço a cultura, a história, mas eu não entro na sinagoga para rezar. Ainda para mais o judeu tem de rezar em hebraico. E eu não falo hebraico. [risos] Não, isso não mudou. Continuo não sendo religioso.