Um ex-vice-ministro de Vladimir Putin foi apanhado nas malhas da Operação Monte Branco, a investigação que desmantelou duas redes suíças que mantinham o maior esquema financeiro de fraude fiscal e branqueamento de capitais que operou em Portugal.
Trata-se de Andrey Dementyev, vice-ministro russo da Indústria e Energia entre 2004 e 2012, na dependência direta de Viktor Khristenko, que chegou a ser o número dois de Putin no Governo, e com quem sempre manteve relações privilegiadas.
Andrey Dementyev – que foi também sócio de uma poderosa farmacêutica russa que hoje está envolvida no fabrico da vacina russa SptuniK 5 – chegou a Portugal para investir em 2009, ainda os vistos gold não eram uma passadeira vermelha para interesses obscuros.
A saída do Kremlin levá-lo-ia a altos voos. Na sua mira estava o negócio imobiliário, tendo batido à porta do magnata Markos Leivikov, um conterrâneo, nascido como ele em Chelyabinsk, nos Urais do Sul, sendo que ambos têm um amigo comum: o poderoso Khristenko, que continuava então no poder.
Amigo do russo é sogro de Marco Galinha
Até há pouco tempo, Markos Leivikov era um ilustre desconhecido da opinião pública portuguesa. O seu nome saltou para a ribalta pela mão da deputada do BE Mariana Mortágua, na polémica travada com o dono da Global Media (grupo DN/JN/TSF), Marco Galinha, que é casado com uma filha daquele empresário russo.
A história de Markos Leivikov em Portugal começou em 2005. Tinha então como morada uma soberba mansão situada entre Cascais e o Guincho (que já chegou a estar à venda por 30 milhões de euros), mas sempre levou uma vida discreta.
Em 2009, com duas empresas ligadas ao ramo imobiliário – a Flupart e a Propriurb –, Leivikov e o seu amigo Andrey Dementyev, vice-ministro de Putin, avançaram para a aquisição e remodelação de duas mansões do século XIX na zona de Cascais e transformam-nas em hotéis de requinte com vista privilegiada para o oceano Atlântico: os conhecidos Hotel Farol e o Hotel Senhora da Guia Cascais Boutique.
Em 2012, porém, os dois sócios desentenderam-se. E foi na divisão de bens que se seguiu que despertaram a atenção da Justiça. Para fugirem ao fisco, os dois russos utilizavam os serviços da hoje bem conhecida rede suíça Monte Branco – que era liderada por uma empresa gestora de fortunas sediada em Genebra, montada por portugueses e suíços, entre os quais Álvaro Sobrinho, Hélder Bataglia e Ana Bruno. Em Lisboa, em plena Baixa pombalina, a rede tinha instalada uma peça fundamental: o intermediário Francisco Canas, mais conhecido por ‘Medalhas’ (por ser proprietário de uma loja que vendia medalhas e moedas), a quem centenas de clientes entregavam e levantavam malas de dinheiro vivo.
Mas o homem, que se calcula que com este esquema, em 10 anos, amontoou 15 milhões de euros, tinha alma de contabilista e anotava minuciosamente em longas listas os nomes de todos os clientes ou dos seus intermediários. Foi assim que os sócios russos caíram nas malhas da Justiça.
Nas deslocações à loja de ‘Medalhas’, a dar a cara por Markos Leivikov e Andrey Dementyev, apresentava-se uma figura com pergaminhos à altura da situação: Poiares Serra, um burlão repetente e que atualmente se encontra a cumprir pena de prisão por ter falsificado documentação de uma sociedade que teve à venda terrenos no Estoril (que o tornavam ‘legítimo’ proprietário dos mesmos, tendo com isso enganado cidadãos angolanos interessados no negócio…).
Em meses, Poiares Serra transportou quase dois milhões de euros que chegavam a ‘Medalhas’ de duas offshores dos sócios russos no Chipre, poiso dos ‘cabedais’ de muitos oligarcas russos.
Buscas aos empresários russos
Buscas efetuadas pela Inspeção Tributária e PSP no último mês às residências, hotéis e empresas de Markos Leivikov e Andrey Dementyev levaram à constituição de arguido do primeiro, que se encontra em permanência no país. Já o ex-sócio, com vários negócios na Rússia – onde faz parte do conselho de administração da multinacional Solleres PJSC (fábrica de veículos de passageiros e comerciais) e da ANPO Uralvagonzavod (empresa que produz uma ampla gama de produtos civis e militares, incluindo tanques de guerra) –, por enquanto não foi constituído arguido, por se encontrar ausente do país.
A ‘fava’ sobrou para a mulher de Dementyev, Margarita Kislitskyna, que gere o Hotel Senhora da Guia Cascais Boutique e que, tal como o marido, é uma exímia jogadora de golfe.
A troca de acusações com Mortágua
Como se referiu, Leivikov acabou por ser trazido para a ribalta por Mariana Mortágua, que acusou o presidente da Global Media, Marco Galinha, de ser sócio do sogro em empresas. A deputada bloquista – que tinha uma coluna de opinião no JN, a que entretanto o jornal pôs fim – acusou Leivikov de ser um produto de Putin «e de ter enriquecido com empresas industriais e de energia na Rússia que entretanto foi desfazendo para construir um império offshore».
Assim, segundo a deputada, os obscuros capitais de oligarcas russos, que estão debaixo de fogo após a invasão da Ucrânia, estariam a correr livremente em Portugal, incluindo num importante grupo de comunicação social. Marco Galinha negou e Leivikov também.
A resposta de Marco Galinha, que subiu na vida com o controlo de máquinas Vending, não tardou: não só afirmou que não tem o sogro como sócio no universo dos media que controla (o que o Nascer do SOL comprovou pela documentação das empresas) como a processou. Markos Leivikov também veio afirmar: «Não sou e nunca fui identificado pelas listas oficiais como ‘oligarca russo’. Não sou, como se afirma, um produto do governo de Putin. A minha atividade empresarial tem mais de 35 anos e nunca teve qualquer envolvimento político. Sou sócio de empresas portuguesas, onde investi há mais de 15 anos, criando emprego».
Monte Branco na reta final
Neste momento, a investigação Monte Branco, que se iniciou em 2011, caminha para o fim. Nos últimos meses fez mais de duas dezenas de arguidos. A investigação – conduzida pela histórica dupla Rosário Teixeira, procurador-geral adjunto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), e Paulo Silva, coordenador na Inspeção Tributária de Braga – deu origem a vários processos que foram ganhando prioridade. Foi o caso de Duarte Lima, que acabou condenado a seis anos de cadeia por burla qualificada e branqueamento de capitais no caso Homeland/BPN, relacionado com a aquisição de terrenos no concelho de Oeiras para a construção do Instituto Português de Oncologia com um empréstimo do BPN que também foi apanhado no sofisticado esquema.
Tratava-se de um engenhoso sistema de fraude fiscal e branqueamento de capitais utilizado por estas redes a operar da Suíça que passava pela utilização do BPN Instituição Financeira internacional (IFI), com sede em Cabo Verde, que durante o reinado de Oliveira Costa já servia para os clientes do banco nacional colocarem o dinheiro beneficiando de um ‘favorecimento’ fiscal, que se manteve após a nacionalização do banco e mesmo com a sua aquisição pelo BIC, tendo o BPN IFI ficado fora da operação, passando a ser administrado por empresas do Estado.
O dinheiro saía da Suíça rumo ao país africano e depois era transferido para contas de ‘Medalhas’ no BCP ou no BIC, onde ele se deslocava semanalmente para levantar tranches avultadas. O dinheiro ficava guardado nos cofres do banco até ‘Medalhas’ ser contactado pelos elementos da rede que se deslocavam ao país de 15 em 15 dias para reunirem o dinheiro e fazerem a entrega aos clientes.
Foi assim também que foram descobertas transferências de dinheiro de Rosalina Ribeiro para o seu advogado Duarte Lima, que a justiça brasileira acusa de ser o responsável pela sua morte, apontando essas transferências como móbil do crime.
Outro dos achados do Monte Branco prende-se com movimentos financeiros de Armando Vara e de José Pinto de Sousa, primo de José Sócrates, que ajudou a equipa a estabelecer relações que deram origem à Operação Marquês. Também os problemas de Ricardo Salgado com a Justiça começaram na Operação Monte Branco, fazendo parte da longa lista de arguidos.