O Banco Alimentar Contra a Fome está a lançar, este fim de semana, mais uma campanha de recolha de bens alimentares para reforçar a reserva dos mesmos. Quais são as suas expectativas?
Já me têm até perguntado se não tenho receio de que haja menos donativos, uma vez que os preços estão mais elevados. Aquilo que digo é que a minha maior preocupação é o impacto que este acréscimo de preços tem nas famílias de mais baixos rendimentos, pois já têm os orçamentos muito esticados e, dificilmente, conseguem acomodar uma subida nas matérias-primas e na energia, como aquela que se verifica agora.
Tiveram bastante sucesso nas últimas campanhas.
Esta é a 62.ª campanha e já há 31 anos que estamos a propor aos portugueses que partilhem, com quem tem mais necessidades, aquilo que compram para as suas casas. Esta é a mensagem: damos aquilo que comemos a famílias que não têm as mesmas possibilidades económicas. O segredo é que cada pessoa não dá muito: temos é muitas pessoas a doar. E, mesmo que os preços aumentem, e aumentam como constatamos – aumentando muito em produtos como o óleo ou os enlatados –, aquilo que propomos às pessoas é que continuem a doar mesmo que não consigam dar tanto. Não temos receio de que haja um decréscimo substancial das doações. Temos muitos voluntários que não vão poder participar por estarem em confinamento: ainda esta semana, tivemos vários chefes de equipa que estavam muito entusiasmados por saberem que iam voltar ao terreno e, infelizmente, tiveram de ficar confinados. O número de voluntários que pode estar impedido de participar, devido à pandemia, é uma preocupação.
Quantos estão nessa situação?
Não consigo dizer porque, todos os dias, surgem casos. Mesmo hoje de manhã, um senhor que vinha para o bengaleiro das mochilas telefonou a dizer que testou positivo. Portanto, até à hora marcada, nunca sabemos e isso deixa-nos sobressaltados: temos muitas equipas, a expectativa é que tenhamos 40 mil voluntários em todo o país. Cada equipa tem voluntários e é dirigida por um chefe. Não podem falhar porque contamos com eles para convidarem os portugueses: há uma desmultiplicação desta angariação.
Há mais de 8 mil pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal. Mais exatamente 8 209. Este número foi revelado, no final do mês de setembro, pelo portal da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), que tem dados atualizados de 275 concelhos até ao dia 31 de dezembro de 2020.
O Banco Alimentar é um local privilegiado para este conhecimento: estamos no terreno, muito perto das instituições e das pessoas há 31 anos e, portanto, já assistimos a sucessivas crises e ondas de aumento da pobreza. Em Portugal, em rigor, não podemos falar de fome, mas sim de carências alimentares graves. Ainda temos muitas famílias que não têm todos os dias uma refeição completa. E temos, sobretudo, uns números que são muito impressionantes: um milhão de pessoas que vive com menos de 250 euros por mês e 2 milhões de pessoas que vive com menos de 450 euros por mês. Estas pessoas não têm mudado porque temos uma persistência da pobreza estrutural muito grande e, por isso, 19% da população é pobre. Quando há uma crise de qualquer tipo, há ainda uma pobreza conjuntural ligada à situação económica: foi isto que se verificou no início da pandemia quando pessoas que nunca imaginaram estar numa situação de pobreza experienciaram-na. Muitas das vezes, famílias com crianças porque eram trabalhadores independentes, o sítio onde trabalhavam fechou ou até porque ficaram em layoff e esse valor não chegava para as suas despesas. Então, aquilo que temos hoje quase que não variou em relação há 30 anos: temos esta persistência da pobreza que é muito impactante, mas não se altera e é isso que é impressionante.
O investigador Fernando Diogo, nos seus trabalhos, enumera os três D da pobreza: o desemprego, a doença e o divórcio. São intergeracionais?
Temos uma persistência da transmissão intergeracional da pobreza que, apesar de tudo, pode ser atenuada com a educação. O grande problema é que a maior parte dos jovens que hoje conclui o Ensino Secundário ou até algumas licenciaturas não tem empregos adequados à sua qualificação nem devidamente remunerados ou que vão ao encontro das expectativas que têm. Temos jovens com melhor formação, mas, em simultâneo, era necessário que a economia gerasse empregos melhores e mais bem remunerados. Ainda que tenhamos pessoas mais qualificadas, elas não encontram lugar no mercado de trabalho e não têm salários que lhes permitam ter uma vida desafogada. E temos um grande peso da habitação: há casos em que o aluguer ou a prestação consome 2/3 do orçamento familiar e, assim, estas pessoas vivem muito limitadas todos os meses. Não conseguem ter uma vida com prazer, com alguns tempos livres, pensar em criar uma família maior… Nos bairros de habitação social, onde continuam a morar maioritariamente porque as rendas são mais acessíveis, acabam por não sair daquele que é um ciclo.
E até aqueles que têm formação universitária continuam numa situação de fragilidade.
Não conseguem sequer sair de lá porque não ganham o suficiente, mas, sobretudo, porque as perspetivas de emprego não são suficientemente aliciantes para quebrarem este ciclo. Mesmo que se tenham licenciado, trabalham em caixas de supermercado, em cadeias de fast food, nos TVDE… Atenção que não estamos a falar de um segundo emprego: é o primeiro e único. Não é para completar outro, só arranjam este. E isto leva a que não possam encarar a vida com esperança.
Os portugueses tinham mais esperança há 30 anos?
Penso que, apesar de tudo, há 30 anos as pessoas tinham mais esperança para os filhos. Acreditavam que estes teriam um futuro melhor, enquanto, atualmente, acham que vão ter um futuro pior. E isto é dramático porque entristecem com aquilo que pode constituir até um motor nas suas próprias vidas.
E que tipo de desabafos ouve?
Recebo muita gente. As pessoas que trabalham comigo dizem, muitas das vezes, que o meu gabinete é uma espécie de confessionário. Recebo muitas pessoas angustiadas porque o Banco Alimentar é uma marca de referência, uma instituição respeitada pela sociedade portuguesa. Temos muitas pessoas que nos ajudam porque a nossa base de trabalho é o voluntariado: vêm individualmente, em grupo, com as escolas, com as empresas, recebemos estagiários estrangeiros… Mas também temos pessoas que só vêm desabafar porque julgam que, pelo menos, podemos ouvi-los. E isso é também muito importante, esta capacidade de conseguir ouvir as pessoas. Permite-nos saber aquilo que se passa no terreno. Sabemos que o desemprego está em níveis baixos, mas há muitas pessoas fora do mercado de trabalho: trabalham informalmente, não estão inscritas no Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) porque preferem não estar e poder ter biscates a frequentar formações que não contribuem para que tenham um emprego melhor. Ficam na economia informal e não entram nas estatísticas de desemprego, mas, efetivamente, estão desempregadas.
Vivem numa incerteza constante.
Sim, principalmente, as famílias que têm filhos. Não nos podemos esquecer de que temos muitos idosos, com baixíssimas pensões de reforma, que representam uma grande fatia da pobreza. Depois, pessoas que não estão qualificadas e não trabalham, mas também muitos trabalhadores pobres. E, nestes, temos famílias com menores e isto é preocupante porque crescem em famílias onde não há dinheiro suficiente para terem um crescimento harmonioso. Para nós, é complicado recebermos telefonemas de mulheres que nos pedem ajuda, têm emprego e o dinheiro pura e simplesmente não chega para proporcionarem o mínimo bem-estar aos filhos. E o dinheiro não chega só durante um mês: é mês após mês! Chegam a meio e já não têm dinheiro.
Quais são os casos mais dramáticos com os quais tem lidado?
Esta questão das mulheres com filhos. Muitas estão sozinhas e isto faz-me impressão porque receio que estas crianças estejam a crescer em famílias que acabam por se desestruturar por falta de dinheiro e apoios. Sempre que recebemos pedidos de apoio de famílias com crianças deficientes, também tentamos encaminhá-los o mais rapidamente possível porque quem tem uma criança com deficiência tem uma realidade que somente quem a conhece de perto é que pode ter a noção daquilo que é. A perceção que temos é muito diferente da realidade: quando chegam aos 18 anos, já não podem estar no mesmo tipo de instituições e isto é muito pesado. Portanto, sempre que recebemos estes pedidos, procuramos de imediato apoiá-las embora as respostas que existam não sejam completamente adequadas às suas necessidades.
Além destas crianças, jovens e adultos deficientes, também existem outras doenças. Podemos, no fundo, abordar a questão dos cuidadores informais.
Sim. Esse apoio é feito pelas próprias instituições de solidariedade social através do apoio domiciliário em que vão a casa e cuidam das pessoas mas, neste caso, não são cuidadores permanentes, não estão sempre com quem precisa de cuidados. São pontuais porque passam em casa, dão comida, fazem a higiene, mas não estão o dia inteiro com elas. Outras há que são cuidadoras permanentes, vivem com outra e cuidam dessa pessoa. Essa realidade é árdua.
Existem outras igualmente preocupantes como a da demência, sendo que um estudo divulgado na revista científica The Lancet Public Health indica que Portugal terá mais de 350 mil pessoas com doenças que lhes provocam a diminuição do funcionamento global, como a Alzheimer, em 2050.
Não pode haver nenhuma desatenção porque a mudança no comportamento e nas necessidades dessas pessoas exige muito e tem uma coisa terrível: o desgaste que provoca nos cuidadores. Estes têm um desgaste grande pela incapacidade de mudarem a situação. E até se conseguir chegar ao estado de aceitação, ainda por cima quando se ama… Sabemos que não podemos fazer nada para além de darmos o máximo de qualidade de vida e isto é uma aprendizagem. Os cuidadores têm de ter muito amor para não desesperarem porque o estado de saúde destas pessoas não vai melhorar.
Têm mais voluntários agora do que no início?
Há mais agora e mais que se oferecem porque, hoje em dia, a cultura do voluntariado, em Portugal, é diferente daquela que existia antes. Aliás, o Banco Alimentar teve um grande papel nisso ao trazer os jovens para o voluntariado. As campanhas estão sempre cheias de voluntários e os nossos armazéns também. Esta crise aproximou as pessoas e deu-lhes a vontade de participar mais.
Vivemos todos as mesmas dificuldades, as mesmas restrições, sentimos o mesmo…
Sim. Vemos os outros e queremos estar solidários com eles fazendo alguma coisa.
A pandemia mostrou-nos que nunca sabemos como será o dia de amanhã.
Aprendemos a relativizar.
O que pensa do apoio de 60 euros para as famílias mais vulneráveis?
Todo o apoio é bom: qualquer acréscimo de rendimento é positivo, e este é um, embora ele se destine a combater a pobreza energética. É um balão de oxigénio para muitas famílias e tenho a certeza de que a maior parte que o recebe usa-o para comprar alimentos. Podem comer um bocadinho melhor este mês.
São 762 mil e 320 famílias que beneficiam da tarifa social de eletricidade, em março, e mais de 280 mil famílias que terão recebido o montante ontem. Portanto, mais de 1 milhão de portugueses receberam este apoio.
A Galp, por exemplo, está a fazer um programa que se chama ‘Energia Solidária’ e distribui uma carga de gás a cada família carenciada. Tudo isso é extremamente positivo e as próprias empresas complementam aquela que é a ação do Estado no apoio às famílias mais vulneráveis.
O Banco Alimentar está sempre atento às iniciativas das empresas para se juntar às mesmas?
Claro! E ajudamos as empresas a poder chegar às pessoas porque temos uma grande rede de instituições de solidariedade social que está muito capilar e, portanto, são os verdadeiros braços para ajudar quem mais precisa.
Quando vamos a um supermercado e compramos bens alimentares para doar ao Banco Alimentar, o IVA referente aos mesmos reverte a favor do Estado.
Sim, tal como quando fazemos qualquer outra compra.
O que pensa disso?
Acho que tem de ser assim porque o IVA é um imposto que incide sobre o valor acrescentado dos bens e todos os bens que são vendidos têm-no. O Estado apoia as instituições de outras formas. Na doação dos bens, há benefícios fiscais e, então, aí, há isenção de IVA e majoração do IRC e, no caso dos donativos em dinheiro, IRS. Uma coisa é a venda de bens e outra é a doação de bens.
Existe retorno através da responsabilidade social?
Numa campanha do Banco Alimentar, as cadeias de distribuição vendem muito mais, mas ajudam imenso os bancos alimentares ao longo do ano. Ainda nesta próxima campanha o Lidl, por cada produto que for doado por meio da campanha ajuda-vale, dá outro. Portanto, duplica as doações.
Alguma vez uma empresa recusou ajudar-vos?
Nunca tive nenhuma empresa que não nos quisesse ajudar. Há muita confiança porque o processo é transparente: acreditam que podemos cuidar da marca delas, dão-nos os produtos e entregamo-los às famílias mais necessitadas. E, sempre que querem ver como o Banco Alimentar trabalha, vêm cá e tenho muito gosto em recebê-las. Muitas empresas da indústria agroalimentar ou as cooperativas agrícolas têm excedentes e, para elas, somos um bom parceiro. As empresas não conseguem vender, encaminham os produtos para o Banco Alimentar e, assim, elas contribuem também para a sustentabilidade. Para além da questão social, temos a ambiental: quando mandamos para destruição embalagens de cartão ou outros materiais, aumentamos os impactos materiais. Reutilizamos os bens que teriam como destino o lixo. Ainda por cima, as empresas têm benefícios fiscais.
Precisam mais de alguns bens alimentares?
Todos os bens são bem-vindos, mas privilegiamos os não perecíveis porque permite que distribuamos os produtos ao longo de mais tempo sem termos medo de que se deteriorem. O azeite, o leite, o arroz, a massa, os enlatados, as bolachas, as papas e os cereais de pequeno-almoço… Mas se as pessoas quiserem dar mimos para as crianças, como chocolates, imaginemos, também podem.
Há 8 209 pessoas em situação de sem-abrigo. Este número vai aumentar?
A realidade da população sem-abrigo é muito específica e nem gosto muito de me pronunciar sobre ela porque as instituições que a apoiam é que sabem como é, mas, muitas das vezes, são pessoas que perderam a esperança de uma vida melhor. Tem de se conseguir chegar a cada uma delas para as tirarmos da rua. Dado o elevado preço da habitação, não me espantaria que o número de pessoas a viver em condições muito precárias aumentasse.
A taxa de privação material desceu de 2019 para 2020, mas ainda se morre muito devido ao frio extremo, por exemplo. Além da comida, de que é que os portugueses necessitam mais?
As pessoas precisam de ter uma habitação condigna a um preço razoável. E aquilo que eu diria que é que as pessoas não podem passar frio em casa e não ter dinheiro sequer para comprarem uma bilha para um radiador de gás. Tudo o resto, em Portugal, está garantido: a saúde, melhor ou pior, está acessível. A escola é gratuita e é obrigatória. Por isso, as pessoas devem é ter uma boa vida e a única condição é que a economia se ponha em marcha: tem de gerar mais e melhor emprego.
Estamos nesse caminho?
Já estivemos melhor do que estamos hoje. Esperemos que as verbas da bazuca europeia sejam, sobretudo, injetadas nas empresas – porque estas é que são os verdadeiros agentes económicos que geram emprego – e não canalizadas para o setor público para, uma vez mais, prolongar aquilo que não gera riqueza.
Tem-se falado muito na eventual suspensão da importação de trigo e que não teria grande impacto aqui.
A Ucrânia e a Rússia são dos maiores produtores mundiais de cereais e estes estão na base da nossa alimentação. Mesmo que não importássemos cereais de lá, os preços dos restantes aumentariam. A guerra teve ainda um efeito com o embargo das exportações para a Rússia: a fruta, os legumes, etc. dos produtores vão inundar o mercado europeu e os preços vão baixar. Há um impacto que já se faz sentir hoje quando aumenta o preço do pão. O trigo está mais caro, mas também a eletricidade e toda a restante energia para produzir o pão. Se houver uma perturbação neste mercado, a mesma reflete-se em todos os produtos. E, sobretudo, nos países mais dependentes, como o Egito – que depende a 80% do trigo da Rússia –, será pior.
Conseguimos responder às necessidades alimentares dos refugiados?
Não têm muita expressão na ajuda alimentar porque não têm grandes dificuldades económicas e são acolhidos pelas famílias. Aquilo de que necessitam é de casas e não as têm.
Qual é o futuro do Banco Alimentar?
Gostava que fechasse porque significaria que não é necessário. Infelizmente, não vejo que isto aconteça nos próximos tempos.