Paulo Pereira. “A Arquitetura é uma maneira de criar cosmos onde há caos”

Começou pela arqueologia, mas acabaria por especializar-se na arquitetura da Idade Média. Diz que não tem tendência para se fixar. ‘Acabo por precisar de saber outras coisas’. A abrangência dos seus interesses está bem espelhada no volume Arquitetura Portuguesa – História Essencial, que acaba de ser publicado.

Recebe-nos em casa, no escritório onde trabalha. Normalmente, só tem ali por perto os livros de arquitetura e de história de arte, mas o facto de estar em processo de mudanças leva a que haja algumas coisas fora do lugar. É o caso de um conjunto com a obra integral de Tintin. «Sou mesmo um tintinófilo, e um tintinólogo», diz-nos Paulo Pereira sem ponta de vaidade. «Até calhou ter conhecido alguns dos maiores especialistas do Tintin, como o Pierre Sterckx, que já faleceu».

Numa mesa de apoio próxima dos cadeirões onde nos instalamos, há vários livros sobre comboios – reais ou de modelismo – que quase são derrubados à passagem de um visitante esporádico, um boxer enérgico e possante. «Isso é outra mania», confessa o historiador de arte e da arquitetura. «Sou um fã dos comboios, da ferrovia, e até sei umas coisas».

Depois, baixa o que pareciam ser as costas de um móvel alto e revela uma fabulosa maqueta rodoviária feita pelo seu pai em 1963, um cenário idílico em miniatura, com colinas verdejantes, locomotivas, carruagens, árvores, pessoas, apeadeiros, bifurcações. «Hoje isto não se encontra nem na Alemanha. É uma peça que eu amo». Não é difícil perceber porquê.

Mas o pretexto deste encontro é outro. A Temas & Debates/ Círculo de Leitores acaba de publicar Arquitetura Portuguesa – História Essencial, um grosso volume ilustrado que cobre um período de aproximadamente 7500 anos. É ele que serve de mote para uma conversa que vai desde os menires da Pré-História à época dos arranha-céus.

Esta é uma História Essencial da arquitetura portuguesa, mas não se limita ao elementar. Era essa a sua intenção?

Sim, foi essa a intenção desde o princípio. Sentia que fazia falta um livro que funcionasse como uma coleção de conhecimentos acumulados até 2022. Que simultaneamente ajudasse a formar alunos universitários no âmbito da arquitetura, e da história da arte em geral, e se destinasse ao grande público, mas não facilitando quanto a questões mais técnicas ou mais teóricas.

Que não baixasse a fasquia?

Pretendi fazer uma cobertura de todos os períodos da história da arquitetura portuguesa, tentando equilibrá-los tanto quanto possível.

Fazer esse panorama completo com algum grau de especialização, ou de profundidade, deve ser uma loucura…

Não é tanto uma loucura porque, independentemente de a minha especialização ser a arquitetura da Idade Média – o românico, o gótico e o gótico tardio –, tenho muito interesse por tudo quanto diga respeito à Pré-História remota, e depois porque a dado momento no percurso de trabalho e de estudo começo a ficar saturado de uma área… Não tenho essa tendência para me fixar e aprofundar.

Acabo por precisar de saber outras coisas, ou porque ainda não as sei, ou porque suspeito que se souber há coisas para dizer ainda, e por isso é que avanço para outros períodos da história da arte ou da arquitetura. Agora, por exemplo, o meu trabalho de investigação está todo virado para o século XIX-XX.

Falemos então dos monumentos megalíticos. Hoje as cidades estão quase todas distribuídas na faixa litoral, mas olhando para o mapa dos monumentos megalíticos em Portugal é quase o contrário, estão muito concentrados no interior, no Alentejo, perto da região que agora é fronteira. Isso tem que ver com uma ocupação diferente do território, ou os vestígios pré-históricos que havia onde hoje estão as cidades do litoral foram desaparecendo porque se construiu por cima?

Tem a ver com as duas coisas. De facto, no Alentejo, especialmente no Alto e Médio Alentejo, a concentração de megálitos é impressionante. É uma das zonas, se não a zona da Europa com maior densidade de monumentos megalíticos.

Portanto há claramente um processo de ocupação territorial e de domesticação da paisagem, que se estende também à região da Extremadura espanhola. Já no que respeita à faixa litoral, tirando as zonas mais arenosas no centro de Portugal, creio que existia também uma densidade razoável de megálitos, que foram desaparecendo precisamente com a urbanização e com as conurbações. O mesmo se deteta, por exemplo, nas vilas rurais romanas.

As vilas romanas existem em quantidade apreciável e com vestígios muito significativos em todo o Alentejo, que tem muito menor pressão de especulação fundiária, ou quase nenhuma, enquanto no litoral as grandes explorações rurais que sabemos que existem encontram-se muitas vezes já degradadas ou perdidas por causa de todo o sistema de infraestruturação do território.

E isto não é uma coisa de agora, vem do século XIX em diante. Com o megalitismo acredito que aconteça a mesma coisa.

A península de Lisboa era uma zona com uma densidade megalítica muito grande. Basta ver que encontramos um dólmen no meio de um parque da Agualva-Cacém. Depois, na passagem do período megalítico para o calcolítico, vamos assistir a uma gradual concentração humana em altos fortificados, às vezes provavelmente fortificados por questões retóricas e não propriamente por questões defensivas.

Mais para dissuadir?

Sim, como demonstração de poder, o que não quer dizer que não tivesse havido – e houve com certeza – embates e guerras. De qualquer das formas, percebe-se que essa é uma transformação social, porque passa a existir uma sociedade muito mais hierarquizada. Falamos de Portugal, mas na Pré-história não existe semelhante coisa, há todo um conjunto de comunidades partilhadas com o território espanhol e até com territórios atlânticos, com sinais de comércio a longa distância, desde 4000 a.C. Isso é um fascínio que eu tenho, porque comecei pela arqueologia e depois é que me tornei historiador de arte. A arqueologia acaba por ser uma coisa um bocadinho exigente, andamos sempre com as unhas sujas e ficamos cheios de pó. [risos] É muito romântico mas…

Não acaba por ser frustrante? Não é todos os dias que se descobre uma Pompeia ou um túmulo do Tutankhamon…

Aquilo que é interessante é o trabalho em si, toda a sociabilidade que há em torno desse trabalho. Mas há campanhas e campanhas onde vai saindo muita informação, mas não é uma informação espetacular. Portanto acabei por tender para a história de arte e da arquitetura, em especial. Mas não foi para fugir à arqueologia, foi por me interessar mais por esse domínio.

A partir de que momento estamos a falar de arquitetura? Uma pedra levantada, como um menir, já se pode considerar arquitetura?

Absolutamente. Do ponto de vista fenomenológico, o ato de erguer uma pedra ao alto é um ato de sinalização e de marcação de um território. Ou seja, torna um espaço indiferenciado num lugar. Passa a ser reconhecido como lugar, quanto mais não seja ‘o lugar da pedra’. E a partir daí temos arquitetura. Esse gesto primordial é o gesto arquetípico da arquitetura. Também tem uma componente tectónica, de construção e fincagem no solo. A arquitetura decorre desse gesto de implantação.

Em todo o caso, as ilações que podemos tirar desses vestígios têm sempre de ser um processo quase de adivinhação, não é?

Hoje em dia, com as ciências da arqueologia, obtém-se muita informação. Percebe-se qual era a dieta das comunidades, qual era o habitat e inclusivamente o entorno vegetal que existia. É sempre um processo de adivinhação, mas cada vez mais preciso, cada vez mais concreto. Já as superestruturas, o que conhecemos das escavações e dos trabalhos arqueológicos de gabinete, são vestígios de uma cultura simbólica que está ligada a uma cultura religiosa, e essa é praticamente impenetrável, embora os arqueólogos consigam relacionar, comparar e ver as diversas nuances que há de região para região. Esse trabalho, não sendo de adivinhação, é de dedução, é um trabalho mesmo de detetive.

E há um indicador importante, a orientação relativamente aos astros, que permite também tirar algumas ilações.

Sim. Hoje em dia está totalmente aceite que havia um relacionamento entre uma leitura do cosmos e a arquitetura. Digamos que é um processo que sempre existiu e continua a existir. Indo buscar um caso mais que conhecido e debatido, a capela de Ronchamp, do Le Corbusier, também não construída ao acaso nem por acaso. Aquelas torres que servem de referência para a iluminação interior não são um mero efeito plástico. A arquitetura muitas vezes tem uma componente de relação com o cosmos, e, como lhe disse em relação à pedra fincada ao alto, a arquitetura é uma maneira de criar cosmos onde há caos. Basta ver que a destruição da arquitetura é caos.

Temos um exemplo muito claro agora com esta guerra inacreditável que se trava na Ucrânia. Quem destrói pedras destrói homens. Veja o que se passou com os budas de Bamiyan [estátuas gigantes de budas escavadas na rocha, no Afeganistão, que remontam ao século VI e que foram destruídos pelos talibãs em 2001]. Primeiro destroem-se os budas, a seguir destroem-se as torres gémeas e depois as pessoas. É sempre uma coisa que me deixa profundamente tenso e irritado.

Os monumentos megalíticos são espaços rituais. Quando temos as primeiras casas?

As casas existiam no período no Neolítico antigo e até já os Neandertais faziam cabanas. O que acontece é que a maior parte dos vestígios dessas casas eram muito perecíveis e desapareceram. Nos países com solos húmidos, onde se preserva bem a madeira, como é o caso da Polónia, da Alemanha e até da Holanda, encontram-se ainda aldeias neolíticas com casas – casas ovais, casas comunais, long houses.

Uma das hipóteses para a estrutura megalítica é a petrificação de uma casa, mas para os mortos. A forma circular, com o corredor, até que ponto isso não repercute a ideia de casa? De algumas escavações que se fizeram, percebe-se que em alguns sítios onde temos construções megalíticas houve uma ocupação anterior. Pode ter sido meramente uma ocupação ritual, e é o mais provável, mas não invalida que tivesse relação com uma imitação do espaço de habitar, neste caso nobilitado, perenizado, para os mortos. Não passa de uma hipótese, mas é provável.

Aqui no livro reproduz uma fotografia muito interessante, que eu nunca tinha visto, do chamado templo de ‘Diana’ – que não é de Diana – com paredes. Esta fotografia é de quando?

De finais do século XIX. O que aconteceu foi que logo desde o século XIII o templo dito ‘de Diana’ foi utilizado para torre defensiva, uma torre com um coroamento com merlões. Se olharmos para a representação de Évora em 1500 da ilustração do foral de Évora, vemos ainda o templo como uma torre, com uma marcação vertical que se percebe serem as colunas embebidas na estrutura. Depois houve um projeto de restauro, do Augusto Filipe Simões, que vai devolver o edifício à sua condição de templo clássico arruinado, ou seja, desmonta-se tudo aquilo que era, digamos, ‘espúrio’, e que era do século XIV-XV, porque aquilo depois foi prisão, foi açougue [matadouro]…

A torre de menagem de Beja também foi açougue, não foi?

Sim. O açougue, o sítio do talho, tinha sempre importância. Nas sedes dos antigos concelhos, normalmente havia na parte de cima uma zona funcional e na parte de baixo era o açougue. Era ali que se fazia o controlo da carne que se vendia, dos chouriços, dessas coisas, e provavelmente também com taxas. No caso de Évora foi claramente um restauro romântico, de finais do século XIX, para devolver ao edifício a nobreza de uma ruína clássica, à maneira dos templos gregos e romanos em ruínas.

Hoje em dia, se encontrarmos – e encontramos – uma estrutura romana que tenha acrescentos medievais, e até acrescentos dos séculos XVII e XVIII, mantém-se tudo, estuda-se tudo em pormenor, e não se desmonta nada. Mesmo que tenha no cocuruto uma peça do século XX, fica lá para a gente ver. É a coerência do objeto e a história toda do objeto. Aí eram outros critérios. ‘Libertou-se’ o edifício, era essa a noção, limpou-se, higienizou-se o edifício das excrescências, coisa que depois a própria DGEMN [Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais] nas grandes campanhas de restauro, a partir de 1929, também fazia.

Mas aí já se valorizava o medieval.

Era um processo que tinha também raízes ideológicas. A DGEMN, no tempo do Estado Novo, valorizava, por um lado, o românico, como símbolo da fundação da nacionalidade; por outro lado, no gótico valorizava tudo aquilo que envolvia a Ínclita Geração, D. João I, Aljubarrota, o Mosteiro da Batalha, o infante D. Henrique; e os castelos, como sinal de soberania, o que acabou por resultar numa intervenção, ao nível de restauro, em muitos concelhos.

E também valorizou o manuelino, claro, que nunca sai do discurso heroico português. O manuelino esteve sempre presente, desde o tempo de D. Manuel, vendo bem, até hoje, porque a Expo98 foi dedicada aos oceanos do lado oposto da cidade onde foi a exposição do Mundo Português.

Quanto ao legado árabe, temos os exemplos da mesquita de Mértola e do Paço Real de Sintra, que antes era a residência dos walis, os chefes mouros. Chegou-nos pouca arquitetura desse período. Mas passou alguma coisa, fosse a nível decorativo, fosse a nível do uso ou tipologias dos espaços? Estou-me a lembrar do azulejo, por exemplo…

A arquitetura portuguesa tem uma influência mediterrânica. A presença islâmica traduz-se essencialmente por um pragmatismo muito grande e ao nível da construção. Do ponto de vista estilístico, não ficou tanto quanto ficou na vizinha Espanha. Aqui, com casos excecionais como a ex-mesquita de Mértola, a reconquista vai destruir ou modificar os edifícios islâmicos. Portanto o que fica são essencialmente tradições construtivas. Eventualmente também em termos urbanos fica uma marca forte no que respeita à organicidade de algumas cidades.

Aqui em Lisboa vemos essa organicidade num bairro como Alfama – curiosamente não vemos isso na Mouraria, porque foi um gueto feito por cristãos. Esse tipo de labirinto, esse tipo de rua de que nunca se vê o fim, é algo que resulta muito da arquitetura islâmica. Também no Algarve, onde a presença islâmica mais perdurou, ainda se percebe que a casa com açoteia resulta em grande medida da tradição islâmica.

E a porta de reixa, por exemplo.

Também. Há um conjunto de tradições, essencialmente ao nível da tectónica. Já do ponto da ornamentação, aquilo que aparece com mais evidência como influência islâmica decorre do mudéjar, da influência dos artífices espanhóis, ou mouros forros, que acabam por vir para Portugal por captação de mão-de-obra na vizinha Espanha. Aí o D. Manuel teve um papel importante. Há um vigor muito grande nas escolhas mouriscas, que são uma espécie de ‘neo-mourisco’ assumido por D. Manuel como uma forma de luxo e de discurso de propaganda.

Há uma componente festiva, até – o baile da mourisca, a morris dance (morris vem de moresque, que é mourisco), que era uma influência portuguesa na corte inglesa – e esse processo vai introduzir sintagmas e ornamentos arquitetónicos de natureza mourisca, mas em grande medida por influência espanhola. A Espanha tem uma continuidade muito visível desde o período da ocupação islâmica mais remota até ao século XVI-XVII. Portugal menos. Exceto nas questões que se prendem com o pragmatismo construtivo. O uso da cal branca, o uso da terra apisoada, o uso da taipa são práticas que ficam.

Depois o grande legado árabe é essencialmente da cultura material – o alguidar, essas palavras todas que usamos vulgarmente e que designam coisas introduzidas, ou pelo menos muito reforçadas, pela presença islâmica, que ainda durou 400 anos. Temos milhares de vocábulos islâmicos. E na prática construtiva também: alvenel, alvenaria… E os nomes das cidades. Alverca, ‘alberca’, ‘o tanque’…

Ou Alcabideche.

Essa zona saloia foi fortemente colonizada por tribos vindas do norte de África, as tribos de Salah. Ainda não se sabe a origem verdadeira da palavra saloio, mas provavelmente vem das tribos de Salah, do Magrebe marroquino, que se fixaram nesta zona fabulosamente rica para a horticultura. Todas essas componentes pragmáticas contribuíram para desenvolver o Sul de Portugal, até porque o Sul acaba por ter uma rede urbana em função da tradição árabe de criar cidades, enquanto a cultura do Norte, como diria o Cláudio Torres, apostasiava a cidade, eram culturas rurais, do campo, dos mosteiros perdidos no campo, etc. É muito interessante esse contraste.

Se quiséssemos caricaturar, pegávamos no título do livro do Orlando Ribeiro: Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. E as pessoas pensam: ‘Mediterrâneo para baixo, Atlântico para cima’. O que o Orlando Ribeiro diz não é nada disso, diz que o Portugal mediterrânico e atlântico é uma mistura, e portanto vamos encontrar mesmo no Norte do país algumas práticas construtivas de tradição islâmica, e vice-versa. As comunidades árabes foram fortemente assimiladas apesar dos guetos.

Do ponto de vista estético, aquilo que é o mudéjar [arte de influência islâmica feita em solo cristão] e as construções mudéjares do tempo de D. Manuel vai projetar-se na arquitetura de aparato e também na ornamentação, até de igrejas.

Por exemplo, toda a técnica absolutamente extraordinária dos tetos de alfarge é introduzida no tempo de D. Manuel. E vamos encontrar isso no Minho, em Caminha, nos Açores, na Madeira. Há uma quantidade de tetos de alfarge no meio do Atlântico. E esta técnica vai passar ao México, por via dos espanhóis e de alguns portugueses que foram para lá, e no México há uma tradição de construção mourisca de alfarge, decorativa, no século XVI-XVII. É um fenómeno muito interessante.

O manuelino foi sempre visto como o estilo dos Descobrimentos. Isto é uma visão um bocadinho deturpada das coisas, não é?

É. O manuelino, quando aparece – no tempo de D. Manuel – é um gótico tardio, ultradecorado, que tem essencialmente símbolos heráldicos e um discurso simbólico de exaltação do poder real. O que vai acontecer é que, a partir de 1850, vai-se encontrar nas cordas e em temas ornamentais, que não são entendidos porque não têm um referente imediato, temas marítimos, e a partir daí é que se vai criar a ideia do simbolismo marítimo. O simbolismo marítimo não nasce com quem criou o manuelino, nasce com quem comentou o manuelino de 1850 em diante. O manuelino pode ocasionalmente ter uma ou outra referência a um tema exótico, mas é raro.

O exotismo é assumido pela corte portuguesa já no reinado seguinte, com D. João III, D. Catarina, etc., com a importação de bens produzidos no Ultramar – os aparadores e os escritórios da Índia, os marfins do Benim, etc. Mas o ‘estilo manuelino’ é obviamente uma construção mítica que a partir de determinado momento vai ter sempre agregado este simbolismo marítimo e de celebração dos Descobrimentos, da navegação, dos marinheiros portugueses. Evidentemente que o D. Manuel celebrava o seu poder régio em função das conquistas que tinha conseguido. Disso não há dúvida nenhuma. Mas dizer que o manuelino tem temas referentes ao simbolismo marítimo não está correto, não é verdade. Onde encontra esses temas é nos restauros do século XIX, por exemplo no corpo ocidental dos Jerónimos, onde é o Museu de Arqueologia. Aí vai encontrar um barquinho, um peixinho, uma âncora…

O manuelino autêntico, do tempo de D. Manuel, era uma fórmula de tardogótico com um simbolismo heráldico de um vigor representativo que não encontramos noutros lugares da Europa, e daí ter seduzido tantos estetas estrangeiros, do Edgar Quinet ao Eugenio d’Ors, que dizia que a janela do Convento de Cristo em Tomar era o barroco marítimo e atlântico, por oposição à civilização grega, mediterrânica, do templo dórico.

Temos o românico, que é o ‘estilo’ da fundação da nacionalidade, e o manuelino, que é o ‘estilo’ das Descobertas, dos tempos áureos do império. Mas curiosamente, quando estudei história de arte na faculdade, valorizava-se muito o que vinha de fora. Para enaltecer uma igreja, por exemplo, os professores diziam ‘é um modelo italiano, semelhante ao de uma igreja que há não sei onde’. Quase como se quanto mais estrangeiro, mais puro. Que é um pouco o inverso deste discurso nacionalista.

É um contraponto e, se quisermos, uma reação à antiga tradição historiográfica. Mas também houve uma descoberta, ou redescoberta, do valor de alguns elementos arquitetónicos que outrora não eram considerados legitimamente nacionais. É o caso do Renascimento. O Renascimento acaba por ser valorizado, vendo bem, só nos anos 80. Os bons estudos acabam por acontecer só por volta de 78, 79, 80, com a Sylvie Deswarte e com o Rafael Moreira.

E depois há um crescimento dos conhecimentos em torno do Renascimento que vai desembocar na dita ‘arquitetura chã’, que é algo definido por um historiador norte-americano, o George Kubler, um homem brilhante que eu cheguei a conhecer pessoalmente. Ele conclui que os portugueses adoptam uma forma pragmática, simples, mas intelectualizada, de construir. Por necessidade, mas também por gosto. E intitula o seu livro Portuguese Plain Architecture – Between Spices and Diamonds. Entre as especiarias e os diamantes. Esse período não estava estudado. Hoje em dia já temos uma análise muito mais fina, muito mais rigorosa. Mas a herança dele é muito importante. Aliás, este livro vai ter um impacto na própria arquitetura contemporânea.

Podemos dizer que a arquitetura chã deixou uma linhagem?

Percebemos que entre a prática de um Távora, de um Siza, como ele trabalha as formas, ou até recentemente o Souto Moura ou o Aires Mateus, há uma espécie de continuidade. Não vou dizer que o Aires Mateus leu o Kubler e pensou: ‘Agora vou fazer parecido’. Não é nada isso, mas há de facto um fio condutor na arquitetura portuguesa, contrariado pelo manuelino e eventualmente pelo D. João V e o barroco italiano – ambos soberbos, grandes momentos da história da arquitetura e da arte em Portugal –, que vai passando como uma constante desde um passado relativamente remoto, do século XV-XVI. Se calhar até vem do gótico, a que eu chamo muitas vezes ‘gótico chão’, um gótico muito simples, que também tem a ver com o programa mendicante, dos franciscanos, etc. Mas depois vemos uma simplicidade que nuns casos pode ser falta de jeito, noutros casos é uma tendência estética.

Acha que pode vir daí, da arquitetura chã, a nossa falta de tradição de construção em altura?

Não creio que seja por isso. Tem mais a ver com as condições socioeconómicas do país. Nós não temos uma sociedade burguesa e industrial que seja suficientemente forte para a criação de arranha-céus. Investe-se sempre mais na peça de excepção. Basta ver a sede da EDP, do Aires Mateus, ou o MAAT. Esse tipo de arquitetura de representação aqui em Portugal faz-se pela construção de prestígio. E a construção em altura encontra quase sempre resistências. Quando o Siza esboçou a torre ali em Alcântara foi imediatamente contestado. De facto a arquitetura em altura nunca teve grande aceitação.

Há o episódio das Amoreiras…

Que também foram muito contestadas. Tivemos o caso, ainda no Estado Novo, do Sheraton, mas isso é porque havia capital da própria empresa para fazer um arranha-céus. Basta ver que o Sheraton é de uma maneira, e o Avis, ao lado, já é mais baixo. E depois, aqui na cidade de Lisboa, fazer arranha-céus só muito longe, por causa do aeroporto. [Aponta para a janela] Ali o Arcis [21 andares] é um dos mais altos que há na cidade, e até fica num sítio não muito distante da trajetória dos aviões.

O Norman Foster, numa palestra a que assisti recentemente, dizia que as cidades tinham crises quase cíclicas e que eram as respostas a essas crises que faziam o mundo andar para a frente. E deu como exemplo o terramoto de Lisboa, explicando que esteve na origem da construção antissísmica. A reconstrução da Baixa foi pioneira?

Hoje quase todos os livros que se debruçam sobre a arquitetura e urbanismo dos séculos XVIII-XIX começam com a Baixa pombalina. A construção antissísmica é uma invenção da Casa do Risco. Mas não é uma invenção pura. O Manuel da Maia estava bastante informado do que era a construção antissísmica do Sul de Itália, onde havia uma tradição de construção de caixa em madeira. Foi a partir destes pressupostos que ele criou a gaiola pombalina, que é algo muito complexo do ponto de vista da construção. E que exige um trabalho de carpintaria fortíssimo.

Grande parte dos edifícios pombalinos têm uma estrutura carpinteira que depois se foi degradando nos edifícios ditos ‘de gaioleiro’, estes edifícios da Av. da República, de 1870 até 1920. Que agora para restaurar é uma chatice, de modo que geralmente deixa-se as fachadas e faz-se o miolo de betão. Mas a gaiola pombalina é uma coisa fantástica. Mas é preciso ter em conta que a Baixa Pombalina foi construída durante muito tempo – a gente tem a ideia de que chegou lá o Marquês de Pombal…

Estalou os dedos e a Baixa apareceu.

No século XX o Rossio ainda tinha partes por fechar, portanto é um processo longo. Outra questão que importa reter é que se trata de um modelo completamente laico, talvez a primeira manifestação de urbanismo iluminista. O José-Augusto França mostrou ao mundo em 1976 [na sua tese Lisboa Pombalina e o Iluminismo, ed. Bertrand] como era pioneira toda a produção urbanística, arquitetónica, científica e legislativa – é impressionante a burocracia daquilo tudo – da reconstrução da Baixa. Coisa que só se podia fazer num regime despótico.

Falámos do terramoto. Se houvesse alguma joia perdida da arquitetura portuguesa que pudéssemos recuperar, qual escolheria?

Não é tanto a joia perdida, é uma joia que nunca foi edificada, a Igreja da Divina Providência, do Guarino Guarini. Se tivesse sido construída, precisamente onde é hoje o Conservatório, era uma coisa de uma pessoa ficar de boca aberta.

Ele chegou a desenhá-la, está no Tratado da Arquitetura Civil dele, essa seria uma joia. Quanto a uma coisa que tenha sido sacrificada no terramoto em Lisboa, aquilo que me faz mais impressão é o Paço da Ribeira. Quer o paço em si – e as partes recuadas do paço, não é só o corpo extenso e o torreão –, quer a Patriarcal. Esse conjunto devia ser absolutamente assombroso. E o recheio que lá estava!

A biblioteca do D. João V tinha quase a mesma riqueza que a do palácio de Mafra, porque foi tudo comprado em duplicado. Fora a maquete gigante de São Pedro do Vaticano feita em Itália e trazida em 37 caixotes, de barco. Agachando-se, podia-se andar lá dentro. O D. João V, que nunca foi a Itália e tinha aquele fascínio por Roma, de certeza que se divertiu imenso com aquele modelo.

E há algum período que ainda seja subvalorizado, que mereça mais atenção?

Uma coisa que muitas pessoas desprezavam nas cidades era a arquitetura eclética do século XIX e da passagem do século XIX para o século XX. Hoje em dia está a mergulhar-se de novo, não apenas aqui em Portugal mas em quase todos os países, na reavaliação desse processo criativo do século XIX-XX. A maior parte das grandes cidades, as grandes metrópoles que tanto admiramos – Viena, Londres, Paris, Madrid, mesmo Lisboa – são cidades do século XIX. A grande cidade monumental nasceu no século XIX e continuou pelo século XX dentro. As pessoas muitas vezes esquecem-se disso.

Gosto de insistir neste aspeto: não é só o centro histórico, ou esse centro absolutamente patrimonializável, que tem valor, mas é também todo esse envolvente. E até aquilo a que chamamos o património menor, ou património difuso – o banco de jardim, os postes de iluminação, os chafarizes. Passamos por eles e não damos por que lá estão. Mas se os tirarem damos logo por isso. Necessitamos em absoluto de um imaginário. E há-de reparar que os países que não têm um imaginário potente são de uma enorme pobreza.

Nós já devíamos ter algum cuidado com certos juízos, até porque nos lembramos do que se dizia no Renascimento sobre as catedrais góticas: ‘Os bárbaros que faziam aquelas coisas horríveis’! E hoje perguntam-nos como é possível olhar para uma catedral e achá-la horrível. Mas se calhar continuamos a ter atitudes parecidas.

É um problema de julgamento. Posso confessar-lhe uma coisa? Quando comecei a interessar-me pela história da arquitetura, ia pelo país fora, até com um colega que agora me telefonou, para visitar os monumentos medievais. E de vez em quando havia uma coisa mais recente: ‘Epá, isso é uma merda barroca!’.

Como quem diz ‘não interessa nada’.

‘Isso é uma merda barroca, estou-me a cagar para isso!’ [risos] E ficávamos obcecados com uma ‘merda’ gótica… Desculpe o coloquialismo mas é tal e qual o que se passava. Até que comecei a aprender, e quanto mais alargamos o nosso campo de conhecimento, mais gostamos das coisas. Mas é interessante ter lembrado o que se dizia no Renascimento. ‘Traficâncias dos Godos’, dizia o Vasari. E depois é o século XVIII que vai incorporar a arquitetura medieval no quadro da história da arquitetura, porque até aí estava praticamente excluída da tratadística.

Pode falar-me um pouco dessas andanças, dessas peregrinações pelo país para ver monumentos?

Começou precisamente quando eu era pós-adolescente, a partir dos 19, 20 anos. Acabei por conhecer o país praticamente todo, se não mesmo todo, inclusivamente algumas regiões mais remotas. E isso prendia-se com o entusiasmo pela arqueologia, pelo megalistismo, mas também pela Idade Média. Fazíamos essas viagens, às vezes no inverno, de comboio ou de camioneta, e quando esse amigo tirou a carta passámos a ir num Mini que se estava sempre a avariar.

Deve haver coisas muito pouco acessíveis.

Há, sobretudo quando andamos à procura de antas e de menires. Por vezes, mesmo tendo as coordenadas todas, e os mapas marcados, aquilo está tão camuflado pela paisagem que se passa um dia inteiro à procura. Mesmo no Alentejo, em zonas relativamente abertas. Mas um tipo depois não desiste. Isso também é impagável. Depois, como fui vice-presidente do IPPAR durante oito anos, naturalmente tornei a percorrer o país para bater uma quantidade de lugares. Tinha de se ir ver, falar, trabalhar com as pessoas localmente, com as direções regionais, com as câmaras municipais, para tomar as decisões.

Aí já não havia esse romantismo, mas mesmo assim foi muito comovente algumas coisas que conseguimos fazer durante aqueles oito anos. Foi uma experiência profissional absolutamente espetacular, insubstituível. Jamais em tempo algum quererei ocupar outro cargo público porque fui tão feliz ali que sei que é irrepetível. Fui mesmo feliz, por exemplo quando se inaugurou o centro interpretativo de Santa Clara-a-Velha, que foi uma obra muito difícil. Foram alturas de grande realização pessoal. E quando digo que me comovi, comovi-me mesmo. Não troco essa experiência por nada.