O mundo está a afundar-se em papelada», queixava-se Hercule Poirot, em Crime na Mesopotâmia. Às vezes, olhando em volta, sinto-me tentado a concordar com o pequeno detetive belga. Com a grande diferença de que eu gosto…
Diria que uma biblioteca que se preze não se compõe apenas de livros, mas de muitas outras coisas. Jornais, revistas, cadernos, papéis avulsos, recortes, marcadores. E, no caso da minha, também de postais. Mais concretamente postais de pintura. (Ainda bem que não coleciono autocolantes…)
A pequena coleção acaba de receber um reforço, vindo diretamente do Museu do Prado, em Madrid.
A escala desta grande instituição europeia pode tornar a visita um exercício cansativo, fastidioso, em especial para as crianças ou para aqueles que não são muito fãs de objetos antigos. Mas tem uma vantagem suprema: permite fazer descobertas a cada nova incursão.
Desta vez, por exemplo, os quadros que mais me chamaram a atenção não foram as grandes estrelas – os auto-retratos de Dürer e Ticiano, os Velázquez ou mesmo os Goyas. Foram duas pequenas naturezas-mortas. E uma monumental tela de um pintor espanhol do século XIX pouco nosso conhecido, Antonio Gisbert, que nasceu em 1834 e morreu em 1901, aos 66 ano. O quadro chama-se Fuzilamento de Torrijos e seus companheiros nas praias de Málaga.
O episódio passa-se em 1831, durante o reinado absolutista de Fernando VII. José María de Torrijos y Uriarte, um militar liberal que estava exilado em Inglaterra depois de ter combatido as tropas de Napoleão na Península, antigo ministro da Guerra, regressa a Espanha com o propósito de derrubar o absolutismo e restaurar a Constituição de 1812. Desembarca na praia de Málaga com sessenta dos seus homens, mas é traído pelo governador. Este, em vez de o proteger e apoiar, como ptometido, entrega-o às tropas do Rei.
Além das dimensões colossais e do tema, há vários aspetos que tornam memorável a pintura de Gisbert. As montanhas ao fundo acentuam a sensação de encurralamento dos rebeldes. Os sinistros frades franciscanos, de hábito castanho preso por uma corda à cintura com três nós, em vez de salvarem, são cúmplices do massacre. Uma cartola rolou pelo chão como uma cabeça decepada. À esquerda, uma nesga de mar azul-turquesa e de praia oferece – não a Torrijos e seus companheiros de infortúnio, mas ao olhar do espectador – um escape ao tom macabro da cena.
Porém, o aspeto mais impactante é o detalhe dos olhos vendados: prestes a franquear o reino dos mortos, estes homens não sabem como será o outro lado. As vendas oferecem uma poderosa alegoria do desconhecido para onde se dirigem. Apetece citar a última frase que escreveu Fernando Pessoa (que por coincidência nasceu no ano em que este quadro foi pintado): «I know not what tomorrow will bring». ‘Não sei o que me trará o dia de amanhã’, dizia o grande poeta. Estes homens de olhos vendados também não.
Paraíso
Abdulrazak Gurnah €19,95
Cavalo de Ferro
Vendido pelos pais ao tio Aziz, um rico comerciante, o bonito e sensível Yusuf, de doze anos, vê-se envolvido numa expedição que se embrenha progressivamente num território agreste, hostil, impregnado de perigos e de mitos. O percurso, cada vez mais penoso, acaba por levar os forasteiros ao encontro de um sultão desonesto que ameaça despojá-los de toda a sua mercadoria, se não das suas vidas. «Quando a vossa laia chegou a esta terra pela primeira vez, vocês estavam nus e esfomeados, e nós alimentámo-vos», diz o sultão, num discurso que traz à memória o que os indígenas da América dirigiram aos europeus. «E depois vocês mentiram-nos e enganaram-nos».
Paraíso, claro, é um romance sobre a perda da inocência e a natureza do medo. Nascido em Zanzibar em 1948 e galardoado com o Nobel da Literatura em 2021, como um contador de histórias versado em lendas muito antigas Gurnah tem uma extraordinária capacidade de dar peso, textura, significados e ressonâncias desconhecidas à linguagem.
A máfia
dos bombardeiros
Malcolm Gladwell €15,90
D. Quixote
Curtis Le May, o militar que arrasou o Japão e inspirou o Dr. Strangelove de Stanley Kubrick, considerava a sua missão mais bem-sucedida o bombardeamento de Tóquio. À entrada de casa tinha fotografias da devastação provocada pelos explosivos. Descrito como cruel, é-lhe atribuída (talvez injustamente) a frase, referindo-se ao Vietname do Norte: «Vamos bombardeá-los até regressarem à Idade da Pedra». Le May é, compreensivelmente, um dos protagonistas de A Máfia dos Bombardeiros.
Mas há outros, como Carl Noden, «o padrinho do bombardeamento de precisão» e «um cristão devoto», Harold George, um aviador que viria a ser duas vezes presidente da Câmara de Beverly Hills, ou Louis Fieser, professor de Química de Harvard («um homem excêntrico e com imaginação») e E.B. Hershberg, os pais do napalm. Malcolm Gladwell, com o seu faro infalível para identificar uma boa história e a capacidade para manter o leitor agarrado, conta-nos como estas figuras duvidosas usaram os métodos mais infames para garantir a vitória ao lado dos ‘bons’ na II Guerra Mundial.