O Kremlin celebra a vitória em Severodonetsk, de onde os ucranianos estão a retirar, temendo ser cercados. Mas nota-se um certo nervosismo entre a liderança russa, com o anúncio do envio de baterias de mísseis M142 Himars, na quarta-feira.
“Ultrapassa todos os limites da decência”, queixou-se o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, citado pela agência russa Tass. Lavrov – que, no seu papel de rosto internacional do Kremlin, tem negado que a Rússia tenha cometido crimes de guerra, apesar da Ucrânia ter registado mais de 15 mil, anunciou na quarta-feira – descreveu como arrogantes os apelos dos ucranianos por armas para defender a sua terra, “como se toda a gente lhes devesse algo”. E acrescentando que isso não passava de “uma provocação direta, com o objetivo de envolver o Ocidente em ações militares”.
De facto, havia algum receio disso em Washington, que durante semanas hesitou em enviar para a Ucrânia baterias de mísseis de longo alcance, como os M142 Himars. Temiam que ucranianos as usassem para atingir a Rússia, escalando o conflito.
“Não estamos a encorajar ou a facilitar que a Ucrânia ataque além das suas fronteiras. Não queremos prolongar a guerra só para infligir dor à Rússia”, frisou Joe Biden, num artigo de opinião assinado por si no New York Times. Justificava o envio dos M142 Himars, parte de um pacote de ajuda à Ucrânia aprovado pelo Congresso, de 40 mil milhões de dólares, o equivalente a 37 mil milhões de euros.
“Enviámos para a Ucrânia uma quantidade significativa de armamento e munições, de maneira a que consiga combater no campo de batalha e esteja na mais forte posição possível na mesa de negociações”, garantiu o Presidente americano, explicando que os M142 Himars “irão permitir-lhes atingir de forma mais precisa alvos chave”.
Mas Biden também fez questão de responder a um dos receios dos mais céticos quanto ao envio de armamento avançado. E se, caso a Ucrânia consiga escorraçar as forças russas do território conquistado, o Kremlin decida que a guerra convencional não chega, recorrendo a armas nucleares táticas, ou seja, pequenas ogivas, usadas para destruir alvos no campo de batalha?
“Sei que muitas pessoas em todo o mundo estão preocupadas”, admitiu o Presidente dos EUA. “Não vemos nenhuma indicação que a Rússia tenha intenção de usar armas nucleares na Ucrânia”, garantiu. “Deixem-me ser claro”, acrescentou, prometendo “graves consequências” caso isso acontecesse.
Retirada Os comandantes ucranianos tiveram de escolher entre ter as suas tropas cercadas em Severodonetsk, à semelhança do que se viu em Mariupol, ou retirar, dado o risco dos invasores tomarem a estrada para sul, rumo a Bakmut, a última via de abastecimento da cidade.
“Isto não é uma traição”, salientou Serhiy Haidai, governador de Lugansk, anunciando a retirada e admitindo que as forças russas já controlavam uns 70% de Severodonestsk, num post no Telegram. “Algumas tropas ucranianas retiraram para posições mais vantajosas, pré-preparadas”, explicou o governador. Atravessaram o rio Siverskyi Donetsk até Lysychansk, a cidade-gémea de Severodonestsk, enquanto esperam a chegada de “armas ocidentais e se preparam para a desocupação”, prometeu.
A decisão de retirar, apesar de ser um golpe de duro, preservou forças de que Kiev necessita desesperadamente, apontou o Institute for the Study of War. Até porque, talvez mais crucial que ganhar tempo no Donbass, seja reforçar os contra-ataques ucranianos do outro lado do país, em Kherson, aproveitando o foco de Putin no leste da Ucrânia.
“Se a Rússia conseguir manter uma presença forte em Kherson quando os combates terminarem, estará numa posição muito forte a partir de onde lançar uma futura invasão”, lia-se no mais recente relatório deste think tank sediado em Washington. Explicando que o facto dos ucranianos terem conseguido empurrar a artilharia russa para longe do alcance de Kharkiv, ou travado os avanços do invasor a partir de Izyum, rumo a Sloviansk e Kramatorsk, cidades cruciais para o abastecimento das forças ucranianas no Donbass, é mais taticamente importante que preservar Severodonetsk.
De facto, os militares ucranianos não tiveram grandes hipóteses, com o Kremlin a montar sucessivos assaltos – algo que evitavam fazer há semanas, dadas as durasperdas sofridas a norte de Kiev e arredores de Kharkiv – e a destruir Severodonetsk com fogo de artilharia indiscriminado. Apesar da moral elevada e experiência das tropas ucranianas no Donbass, boa parte veteranos da guerra de 2014, não é possível enfrentar um inimigo que não conseguimos ver, que destrói cidades inteiras a quilómetros de distância.
“Há muita artilharia”, lamentou Vladimir, um soldado ucraniano que combateu este mês em Rubizhne, uma pequena cidade que costumava ter uns 50 mil habitantes, a norte de Severodonetsk, que foi varrida do mapa. “Os bombardeamentos eram um pesadelo, nós disparamos uma vez, eles disparam dez”, contou Vladimir a um repórter da BBC.
“Quando o nosso sniper está a disparar, eles enviam um carregador de Grads inteiro contra a sua posição”, explicou, referindo-se às baterias de foguetes montadas em camiões, de design soviético. “Basicamente, é um sniper com uma bala, e eles mandam uns mil dólares de munições de artilharia. Não querem mesmo saber quanta munições usam”, apontou.
Não espanta que os ucranianos aguardem ansiosamente a chegada dos M142 Himars. Estes baterias de mísseis, altamente móveis e com enorme alcance, até 80km, podem alterar o equilibro de forças no Donbass, apontam analistas. O combate nas vastas estepes desta região tornou-se um enorme duelo de artilharia, algo em que a Rússia tem vantagem esmagadora – talvez não por muito tempo.
A ideia de enviar M142 Himars – que têm mais do dobro do alcance dos howitzers M777 que a NATO tem enviado, ultrapassando até a artilharia da Rússia – é que os ucranianos consigam atingir os russos em profundidade, sem grandes receios de retaliação, conseguindo deslocar agilmente estas baterias de mísses caso os invasores avancem. Ainda demorará a chegarem aos campos de batalha do Donbass, tendo artilheiros ucranianos de ser ensinados a usar os M124 Himar. Mas poderá permitir até atingir pontos de abastecimento russos, algo potencialmente devastador, dado já estarem a sofrer de problemas logísticos. Não espanta que o Kremlin esteja preocupado.