“Com doentes mais complexos, tiram-nos tempo em vez de dar”

Jaime Branco foi o primeiro médico a apresentar a candidatura a bastonário nas eleições que se disputam dentro de sete meses. Contra a eutanásia, diz que cumprirá a lei, respeitando a vontade dos médicos, mas considera que o país está a precipitar-se.

Está lançada a corrida às próximas eleições da Ordem dos Médicos, em janeiro do próximo ano. Jaime Branco, diretor do serviço de reumatologia do Hospital Egas Moniz e professor catedrático, nos últimos oito anos diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, foi o primeiro a apresentar a candidatura. Para já, são dois nomes de Lisboa na calha para suceder a Miguel Guimarães, que termina este ano o segundo e último mandato. Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, também já apresentou a candidatura. Em entrevista ao Nascer do SOL, Jaime Branco diz que as eleições não vão ser palco de rivalidades académicas e explica o que o move. Se for bastonário, diz que cumprirá o que vier a ser a lei da eutanásia, mas defende que o país está a dar um passo à frente das pernas: «O odioso da eutanásia vai cair em cima da profissão médica».

O que o fez avançar?

Um conjunto de factos. Primeiro porque entendo que a classe médica tem vindo, de alguns anos a esta parte, a ser pouco respeitada e desprestigiada. Não tenho nenhuma teoria da conspiração, não sei se faz parte de um plano alargado, mas tem acontecido.

Desprestigiada por quem?

Na sua prática, no seu dia a dia, nas suas funções, nas agressões do público. Tudo isto resulta de um contexto social que se foi instalando de menorização da profissão médica e de apoucamento da nossa atividade. Não estou a dizer que acredito que haja alguém por detrás disto, mas é algo que tem decorrido sem que ninguém se tenha importado com isso. 

Vê parte da responsabilidade nos próprios médicos?

Com certeza, nada acontece sem que os próprios estejam envolvidos nisso, eu incluído. Nunca fiz parte da estrutura administrativa da Ordem, faço parte como membro e estive no colégio da minha especialidade entre 1993 e 2000. Depois de 2000, o que fiz? Paguei as quotas, renovei a minha cédula profissional, voto e leio a correspondência que me é enviada, mas não participei.

Perguntava, em relação aos doentes, se pode ser o resultado de um certo elitismo da profissão.

Não creio. Ninguém pode trabalhar sem ver a sua profissão dignificada, qualquer que seja a profissão, e existe na profissão médica uma característica única que é a relação médico-doente. O que se passa é que não podemos ser responsabilizados por aquilo de que não somos responsáveis e a verdade é que, durante os últimos anos, as tarefas foram-se acumulando, retirando tempo da relação com o doente, e cada vez nos dão menos meios para sermos responsáveis. O médico hoje tem dificuldades em cumprir o seu papel e isto vai da prática clínica à formação que lhe é exigida, ao estudo diário que tem de fazer, ao apoio que tem de dar aos colegas mais novos no ensino pré-graduado e na formação de internos. Tudo isto faz parte do estatuto do médico e não está minimamente contemplado nos seus horários nem nos hospitais universitários. E, portanto, tudo isto leva a que os médicos trabalhem cada vez mais, com horas extra não pagas, ou em tempos de descanso. Não digo que isto não aconteça nas outras profissões, mas na Medicina tem um enorme impacto.

Foi diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Depois de anunciar a sua candidatura, o prof. Fausto Pinto, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, entrou também na corrida. Há nesta coincidência alguma rivalidade entre as faculdades de Lisboa?

Falo por mim – não há aqui nenhum bairrismo ou sectarismo. A rivalidade não vai ser entre faculdades, seguramente. Vai haver uma disputa entre duas pessoas, que por acaso se conhecem bem. Tenho estima e admiração pelo dr. Fausto Pinto, que conheço há muitos anos, ainda como aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, que aliás foi onde me formei. Quando entrei em 1972 para o curso de Medicina, vai fazer 50 anos agora em setembro, não havia Faculdade de Ciências Médicas nem Universidade Nova. Sabia que ele se ia candidatar, já falámos e a única questão aqui é que temos ideias diferentes para a Ordem.

Depois de bastonários do Norte e de Coimbra, será um bastonário de Lisboa?

Não faço ideia se vai haver outros candidatos, por isso não sei. Mas não temos aqui estes bairrismos, é uma eleição demasiado importante. Em relação às escolas médicas, de todo – na minha opinião, podem no entanto ter uma relação mais aprofundada com a Ordem, que este senhor bastonário de resto já pugnou por fazer, sobretudo ao nível da formação pós-graduada ao longo da vida. A Medicina é uma profissão em que a atualização tem de ser diária. O conhecimento avança tão rapidamente que é difícil acompanhar se não o fizermos nessa base.

Uma das discussões ao longo dos anos tem sido sobre a necessidade de recertificação dos médicos ao longo da vida. Tem uma proposta?

É fundamental que a Ordem pense e estruture uma ideia acerca disto e que haja um instrumento que possa, não digo avaliar, mas perceber se um médico se atualiza ou não. Um médico atualiza-se através de formação pós-graduada diversa, portanto penso que se pode pensar em formas de entrega de documentação na Ordem que validem essa atualização.

Portanto, a sua ideia não é uma prova de aptidão para continuar a exercer como a revalidação da carta?

Mesmo a carta só implica testes se a pessoa a perde. Não defendo nada disso. O que defendo é que o seguimento da formação pós-graduada do médico, que é responsabilidade do próprio, deve ser tutelado por uma instituição e a instituição ideal é a Ordem. É o que se passa na generalidade dos países. As reuniões científicas a que vamos já têm determinados créditos e o que temos de definir é quantos créditos por ano é que o médico tem de garantir para ser considerado atualizado em relação às matérias que deve dominar. É basicamente isto, não há testes ou exames, porque nesse aspeto os médicos portugueses são dos mais examinados do mundo. Fazemos muito mais concursos do que os nossos colegas europeus e americanos: para aceder ao internato, para ganhar vagas nos hospitais, para passar a consultor, consultor sénior, chefe de serviço. Temos permanentemente de atualizar os currículos e prepararmo-nos para os concursos do ponto de vista teórico e prático.

Mas avançando essa recertificação por créditos, não será mais um encargo para os médicos?

Essa é outra pecha e que vai ao encontro do que dizia ao início, que é a nossa formação não ter tempo reservado nos horários nem financiamento das instituições em que trabalhamos.

Isso tem levado a uma excessiva relação com a indústria farmacêutica, que acaba por ser o grande financiador reuniões e participações em congressos?

É natural. Não sei se é excessiva ou não, porque cada um sabe de si. A minha relação nunca foi excessiva com a indústria farmacêutica. Mas é evidente que boa parte da minha formação pós-graduada foi suportada pela indústria farmacêutica, como a de qualquer outro colega do nosso país. E porquê? Porque as instituições onde trabalhei, e vão quase 44 anos, nunca – e quando digo nunca é nem uma vez – financiaram nenhum congresso e nenhuma formação.

Suprindo uma lacuna, acredita que a indústria o faz inocentemente?

Isso é uma pergunta que tem de ser feita a quem representa a indústria. O que posso e devo responder é se os médicos fazem isso por necessidade e a resposta é sim. Com os vencimentos que têm, evidentemente, não podem suportar congressos, nomeadamente os internacionais. É impossível. Obviamente que em todas as profissões há exceções, mas a generalidade dos médicos aceita o suporte que a indústria farmacêutica lhes dá para formação de uma forma positiva, para saber mais, para se preparar melhor e para tratar melhor os seus doentes e não com intenção secundária de ganho. Se a indústria tem ou não um interesse secundário de ganho, é uma pergunta que tem de se colocar à indústria.

Parece-lhe um modelo sustentável?

Sustentável tem sido, agora se é o ideal, não é. O ideal seria as instituições, tal como fazem por exemplo as escolas em relação aos professores do secundário, suportarem a formação.

Mas é menos dispendiosa, não? Um professor não vai a  congressos nos EUA.

Mas se calhar para manter os créditos necessários para um médico estar atualizado não é preciso ir todos os anos ao congresso americano ou ao europeu. Se calhar basta o português e, de x em x tempo, ir a um congresso internacional. Serão necessidades diferentes consoante a especialidade.

As viagens eram como que um bónus da vida de médico?

Há esse lado, mas um congresso vai muito para além do que se aprende nas salas. Permite estabelecer relações entre as pessoas, perceber como se trabalha noutros países e, em Portugal, noutros serviços. Se estivermos a fazer uma coisa menos bem, se não tivermos contacto com exemplos exteriores, nunca a emendamos. Foi o que a indústria ofereceu a uma larguíssima geração de médicos de que faço parte.

Ideias de com convites vinha um envelope de notas são um mito?

O que posso responder é que nunca vi. Nestes 44 anos, nunca nenhum responsável, dos mais modestos aos mais importantes me fez qualquer sugestão desse género. Não estou a dizer que não possa haver, mas nunca vi e a mim nunca nada me foi proposto fazer nesse sentido.

Já falámos da recertificação. Nos primeiros 100 dias de mandato, quais seriam as suas medidas?

Nos primeiros 100 dias de mandato penso que iria sobretudo perceber os mecanismos internos da ordem e como se pode inovar e tornar-se mais ágil.

Na apresentação da sua candidatura falou de uma lógica e prática imobilista. O atual bastonário tem sido bastante ativo. Em que é que a ordem é imobilista?

Eu apoiei o senhor bastonário, este como os anteriores, nas suas duas últimas eleições e não estou arrependido. E fechamos já essa questão. Agora quando falo de imobilismo, a ordem é muito mais do que o bastonário, é uma estrutura pesada, que acho que deveria ser tornada mais ágil.

Em que é que o incomoda mais esse imobilismo?

Nas respostas nomeadamente à justiça dentro da Ordem, os processos disciplinares.

Houve nos últimos anos casos mediáticos, o mais trágico o do bebé que nasceu sem rosto.

Mas esse foi rápido, o escândalo foi tão grande…

Foi rápido depois, porque o médico tinha já várias queixas.

Penso que o problema é que muitas pessoas que trabalham dentro da Ordem o fazem graciosamente, nomeadamente nestas funções. 

A ideia que acaba por passar é que existe um corporativismo que protege os médicos. O que está a dizer é que será mais por não haver uma estrutura profissional?

Provavelmente. Não posso falar do que não conheço aprofundadamente, mas daí o que dizia, que nos primeiros 100 dias tenho de conhecer melhor a estrutura interna e perceber o que se pode fazer para melhorar. E, como dizia, não conheço suficientemente, por minha culpa. A Ordem neste momento é pouco participativa e por isso é pouco participada. E se isto é verdade para mim, ainda mais para os médicos mais jovens e para as mulheres, que hoje estão em maioria na profissão: são dois terços dos médicos. A maioria dos médicos tem 45 anos ou menos e não estão suficientemente envolvidos na vida da ordem. Nas centenas de contactos que tenho feito nos últimos meses percebo que os jovens estão desencantados com a vida da Ordem e, entre eles, sobretudo das mulheres. Quando procuramos envolver as colegas, elas dizem mais vezes que não do que os homens.

É uma ordem machista?

Não tenho nada essa ideia. A profissão médica é uma profissão que desde sempre é igualitária, fazemos  o mesmo trabalho e ganhamos o mesmo que as mulheres.

Mas depois as mulheres têm de ir ter filhos.

Mas essa é outra questão e é uma preocupação que tenho e que será contemplada no meu programa. Penso que seria importante os locais de trabalho voltarem a ter creches. Por que é que se perdeu isso? Evidentemente que não é só para as médicas, é para os profissionais todos. Já viu a preocupação de uma mãe ou de um pai que deixou o filho que não estava muito bem para ir para o trabalho ou a enorme vantagem mesmo até pela questão do trânsito, com todo o stresse que existe hoje para ir pôr as crianças e estar a horas. Então aqui na grande Lisboa é dramático: hoje toda a gente se admira muito com o número de utentes sem médico de família e que os médicos não queiram ficar nos centros de saúde, mas quem é que consegue viver no centro de Lisboa? Por que temos este problema sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo? A vida é muito mais cara e os ordenados não chegam. O ordenado de um médico hoje é irrisório.

Falamos de um salário inicial de 1800 euros líquidos por 40 horas de trabalho.

É absolutamente irrisório para o tempo de formação e para as necessidades que o médico tem. Querem que as pessoas vão trabalhar para perder dinheiro? Sabe quanto custa um livro de Medicina, a assinatura de uma revista, um estetoscópio? São milhares de euros. As outras profissões, com todo o respeito, não têm este tipo de necessidade ou as suas instituições promovem isso, as nossas não. Portanto ter uma casa em Lisboa é impensável. Os jovens médicos ou vivem na casa dos pais ou são ricos, porque alguns de nós somos ricos, mas a generalidade não é. Neste momento já não é na província e no interior que há falta de médicos de família, penso que até as autarquias terão de pensar em como criar condições nos grandes centros em que a vida se tornou insuportável em termos de custos, para não falar da inflação que aí está e aí vem, que vai completamente absorver os vencimentos, que já tinham caído.

Consegue quantificar?

Se eu olhar para o meu vencimento hoje como médico, é inferior ao que tinha há 15 anos.

Quanto ganha um diretor de serviço?

No topo de carreira e em exclusividade, leva para casa à volta de 3000 euros. Estes ordenados não são diferentes dos que se podem ganhar na academia, mas as necessidades de formação continua ao longo da vida são muito exigentes, a disponibilidade, as horas de trabalho incómodas, as horas que não são pagas, além da responsabilidade.

Defende que é preciso separar a Ordem de interesses sindicais. Tem sido um tema polémico com o projeto de lei do PS para regular as ordens. Dá razão ao Governo?

Nesse particular dou. A ordem é muito grande e não falo de toda a ordem, mas há uma regional da ordem que está completamente sindicalizada. Existe uma ligação enorme da região Sul aos sindicatos e, com todo o respeito pelos sindicatos e pelos seus dirigentes, a ordem não tem nada que ver com sindicatos. Ordem e sindicatos são complementares em relação à profissão médica e não tem de haver uma ingerência dos sindicatos na ordem. Os dirigentes de sindicatos não têm de ser dirigentes da ordem e vice-versa. Misturam-se interesses.

Como é que se propõe a alterá-lo?

Penso que passa por alterar os estatutos impondo períodos de nojo, o que o documento que está para aprovação na AR nesse particular já faz, impondo quatro anos.

E questões como as ordens terem membros nomeados externamente? Na última versão, propõe-se que as universidades possam designar membros de órgãos das ordens.

Houve uma dulcificação do diploma mas a verdade é que não sei com que intenção é que isto é feito e de boas intenções está o inferno cheio. A questão é se este tipo de alteração estatuária não terá a ver com uma tentativa de governamentalização.

Que tem sido a posição dos bastonários.

E aí estou totalmente de acordo, a única questão que de facto acho importante é a separação sindical. E repare, não sei se é algo que acontece noutras ordens e as pessoas têm com certeza a maior lisura no exercício das suas funções, mas à mulher de César não basta ser o honesta, tem de parecer honesta e esta ligação não é adequada. Já vivi em tempos anteriores uma altura em que a ordem tinha este mesmo problema, na altura quebrado pelo bastonário António Gentil Martins. Eram contornos diferentes, o momento era outro, mas tinha semelhanças. Isto não tem nada a ver com as pessoas, é o princípio.

Na senda dessa acusação de uma tentativa de governamentalização, uma das querelas entre os médicos e o Governo nos últimos anos prende-se com até que ponto a ordem tem limitado o acesso à profissão.

Como é que a Ordem pode limitar acesso à profissão?

O primeiro-ministro chegou a criticar as práticas restritivas da ordem para limitar o acesso à formação pós-graduada em Medicina, para os internatos.

A capacidade formativa do país tem a ver com os serviços que tem, não se inventa. Não posso formar médicos sem ser em serviços. Isto é verdade para a pré-graduação mas sobretudo para a pós-graduação. Como é que formo internos para serem especialistas sem serviços onde eles treinem? Se os responsáveis políticos deste país acham que podemos ter amanhã cirurgiões como especialistas que só tiveram treino a fazer 10 cirurgias durante o internato, porque em vez do serviço ter dois internos tem 20, tudo bem. Mas depois querem ser operados por esse cirurgião? Vão ser operados onde?

Está no limite a capacidade de formação de internos?

Tenho a certeza que está. E o mesmo nas escolas médicas: estão no limite da sua capacidade exatamente pelo mesmo motivo.

Há o relato de que já têm aulas sentados no chão.

Mas isso é secundário: nos auditórios, onde estão a ter uma aula teórica, podem estar sentados no chão porque ouvem tanto como quem está em pé. Se me pergunta se devem estar, não, não tem dignidade. Mas ouvem tão bem a aula como quem está sentado. Mas o que me preocupa mais é saber em que enfermarias é que os metemos, em que centros de saúde, em que hospitais? Os alunos já estão por todo lado e depois são os mesmos que estão a formar estudantes de Medicina e internos, com um esforço enorme porque são poucos para assistir a tudo.

Como viu a abertura do primeiro curso privado na Católica?

Devia ter sido acompanhado de uma redução de numerus clausus. Já temos médicos a mais. Este ano para entrada na especialidade vai haver 2500 pessoas a concorrer e só há 1500 vagas. As pessoas querem ser tratadas por médicos indiferenciados? Acham que é isso que resolve o problema?

Vê nesta polémica uma desculpa para não contratar mais médicos?

É preciso perguntar ao Governo.

Mas defende que devia haver concursos o ano todo.

Obviamente, sobretudo nos locais mais problemáticos. Se em Lisboa e Vale do Tejo faltam 900 médicos de família, só abrem concursos duas vezes por ano? Porque é que não está sempre aberto? 

Por que é que acha que isso não acontece?

Não faço ideia. Ou não pensaram nisso ou não querem resolver. Estou a falar como médico no desejo de ver os serviços funcionar da melhor maneira e servir melhor os doentes. O meu único desígnio é defender médicos e doentes, porque ao defender uns, defendo outros. É um binómio inseparável. Sem médicos não se trata bem os doentes. É verdade que há para aí coisas alternativas, mas não têm demonstração científica.

Se for bastonário, as terapias alternativas vão continuar a ser uma batalha da ordem?

Ou é ciência ou não é.

Na sua especialidade, apanha muitos maus resultados? A acupuntura não faz bem às dores?

A generalidade dessas práticas não está demonstrada cientificamente. O facto de me aparecer uma pessoa ou duas a dizer que isso funciona não quer dizer nada. Sabe quantas pessoas recorrem a essas práticas? Eu não sei e acho que ninguém sabe. Se me aparece uma pessoa a dizer que sim, aparecem duas ou três a dizer que não fez nada. A si talvez não, mas a mim aparece. Uma pessoa melhorou, ótimo, mas num grupo de 100, quantas melhoraram?

Voltamos ao financiamento de estudos, muitas vezes suportados pela indústria.

Quem tem de financiar é quem propõe a técnica, não são terceiros. Ou então os Estados, e vamos ao ponto: se o Estado entende que um determinado conjunto de técnicas podem ser úteis à população fora dos meios normais da medicina – que é a única que conheço, por o resto são práticas avulsas – então tem o dever de patrocinar esses estudos.

Vemos por exemplo no NHS uma maior prática de projetos piloto de abordagens terapêuticas.

Exato, ou os National Institutes of Health nos EUA. Isso é diferente do que temos cá, que é estarmos a dizer por decreto o que é válido. Ontem não era e agora passou a ser porreiro.

É conhecida a posição contra a eutanásia do atual bastonário e dos anteriores. Qual é a sua?

Pessoalmente também sou contra a eutanásia. Mas sobretudo o que sou contra que um direito da população portuguesa, se vier a ser considerado pela AR – e isso tem de ser respeitado evidentemente – passe a ser uma obrigação de uma classe profissional. A maior parte das decisões vão cair sobre o médico. Se isso já acontece noutras situações não tão graves, mas que são diárias – todos ouvimos os doentes perguntar o que é que achamos, o que é que faríamos – isso vai acontecer inevitavelmente. E isto do lado dos doentes e das famílias.

Receia que possam pressionar os médicos a convencer os doentes num sentido ou noutro?

Sim. O odioso vai cair em cima da profissão médica, não vai cair em cima dos senhores deputados que vão ou não aprovar a lei. Evidentemente que essa é uma coisa que deve ser acautelada.

Com a objeção de consciência?

Isso haverá certamente. Percebo que possa haver uma divisão entre os médicos. Quando falo da minha posição, tem a ver com a minha idade, com o momento em que me formei, com as minhas circunstâncias todas.

Há quem defenda que o atual juramento de Hipócrates, ao contemplar a autonomia do doente, dá respaldo à prática da eutanásia.

O direito à eutanásia, com certeza, desde que o médico não interfira. Em nenhum momento o juramento de Hipócrates, que é aquilo a que devemos obediência profissional, sai de dizer que o médico serve para tratar doentes e salvar a vida. Claro que cada um lê como quer e as pessoas são autónomas, mas se são autónomas não podem implicar outras na sua autonomia.

Defende que devia optar-se por regulamentar o suicídio assistido?

É o formato suíço, com que alguns serviços se têm dado bem. Mas o que digo  antes disso é que o Estado, qualquer Estado, não pode alijar as suas responsabilidades de não oferecer cuidados paliativos a todos os doentes que deles precisam e depois oferecer-lhes a possibilidade de eles se matarem.

Acha que se está a dar um passo à frente da perna?

Acho que sim. Neste momento não há capacidade para oferecer cuidados paliativos a toda a gente e a medicina evoluiu imenso. Isso não está acessível a todos.

Estando dentro do sistema de saúde, que barreiras vê?

O número de serviços e pessoas  é insuficiente. Não estou junto das especialidades que lidam com essa realidade, mas sei que é preciso esperar. E percebo que uma pessoa que tem limitações para entrar neste tipo de serviços, que tem dor para além do que é suportável, que tem uma grande debilidade, queira desistir. Se estiver bem acompanhada, se calhar não quer. São terrenos tão escorregadios que deviam ser melhor pensados. Vamos ver qual é o desfecho e o texto da lei.

Nunca nenhum doente lhe pediu ajuda para morrer?

Em 44 anos nunca. Todos os doentes me pediram para viver. Tive uma doente que, por motivos religiosos, se deixou morrer porque não permitiu fazer uma transfusão sanguínea. E é uma coisa que nunca mais esqueço. Se isto é uma coisa que nunca mais esqueço, imagine o que é decidir ou interferir com a morte de uma pessoa. Admito que os médicos mais jovens tenham outra visão, sem crítica nenhuma, há uma evolução social e as cabeças são diferentes, mas isto é o que eu sinto.

Enquanto bastonário, o que faria?

Enquanto bastonário cumprirei a lei, evidentemente respeitando a vontade de cada médico.

Estamos com dois anos e meio da pandemia. Ia dizer a sair dela, mas já não sabemos bem.

Pois, a sair ou a entrar…

A Ordem foi muito interventiva. Concordou com a abordagem? Acha que as ordens da saúde deviam ter sido envolvidas pelo Governo nos processos de decisão?

Acho que genericamente não nos saímos mal desta situação. O que estamos a viver agora acaba por ser mais preocupante, porque há muitos casos e muitos óbitos. Estamos num pico e este momento provavelmente vai ser dilatado pelas festas que aí vêm, pelo Santo António e depois o São João.

Mas é daqueles que acha que não devia haver festas ou que se está a ser pouco prudente?

Acho que temos de viver, mas devia haver máscaras. Da mesma forma que há máscaras nos transportes, nos hospitais, não percebo porque é que, com este nível de transmissão, não há máscaras nos locais fechados. A Ordem dos Médicos teve uma estrutura específica para aconselhar sobre a pandemia, que funcionou bem, e de facto lamento que não tenha havido um trabalho mais próximo com o Governo e com a Direção Geral da Saúde. Durante dois anos a senhora ministra não recebeu a Ordem dos Médicos, como penso que não recebeu nenhuma ordem da saúde. Foi uma opção, eu não teria feito assim se fosse ministro. Quando cerramos fileiras, devemos fazê-lo com todos os aliados à nossa disposição e numa situação destas a Ordem dos Médicos era um aliado, não era um inimigo.

Que expectativas tem em relação a esta nova legislatura e à ministra?

Se as expectativas são feitas do passado, não são altas. Se forem a pensar no futuro, podem ser altíssimas, depende da forma como a interlocução com as estruturas que representam e defendem os médicos vier a decorrer. Tem de haver uma viragem grande. A visão que o Governo e o Ministério da Saúde tem de ter em relação ao SNS e ao sistema de saúde todo implica uma abertura maior em relação à discussão das reais necessidades.

Que marcas ficam destes anos?

Além das especialidades hospitalares mais envolvidas na covid-19, foi sobretudo sobre os colegas da medicina geral e familiar que caiu a sobrecarga da pandemia, com o seguimento de doentes, contactos e depois a vacinação. Houve algumas medidas que permitiram atenuar algum impacto, como a abertura de consultas à distância, que acabam por ajudar sobretudo os doentes que já conhecíamos e neste momento a recuperação está a acontecer. Agora o ritmo dessa recuperação depende de muitas coisas. Se nos impedem, se nos colocam constrangimentos, se nos dificultam, é evidente que o ânimo desce.

Mas sente que o SNS está melhor ou pior depois da pandemia?

São precisos muitos números para responder a isso. Mas há coisas em que não podemos ignorar que está pior; está pior no número de utentes sem médico, está pior na mortalidade, está pior no número de cancros que não são diagnosticados atempadamente. Isto sem acusar ninguém, porque as pessoas esconderam-se também em casa e desvalorizaram queixas. Não podemos pôr o ónus da culpa só no sistema.

Uma das questões em cima da mesa é a dedicação plena.

Não tenho absolutamente nada contra a dedicação plena, como não tinha em relação à dedicação exclusiva, desde que voluntária.

No novo estatuto do SNS aprovado pelo Governo antes da crise política, havia uma componente voluntária, mas para diretores de serviço, como é o seu caso, seria obrigatório. Trabalha no público e no privado. Se tivesse de fazer essa escolha, qual teria sido a decisão?

Perder uma direção de serviço não é problemático: dá imenso trabalho, responsabilidade e é pouquíssimo recompensado. Mas o que defendo, para todos os médicos, é que a dedicação plena deve ser voluntária e deve ser acompanhada por outras coisas, que é o momento de reivindicar: a possibilidade de fazer investigação e formação incluída no horário e remunerada.

Optava então por continua a trabalhar no privado.

Sim, deixava de ser diretor de serviço se for obrigatório, até por princípio. Se acho que deve ser voluntário, se me impõem, eu saio.

Pode haver uma debandada de diretores de serviço?

Acho que haver uma imposição ainda porá mais em perigo, lá está, a questão da capacidade de formação. Tem havido um desnatar dos serviços. Neste momento têm as pessoas mais velhas, como eu, depois tem os mais novos – e em especialidades com mais possibilidade para ir para o privado já não ficam no SNS – e depois tem uma geração com 40 anos que saiu em grande peso. Isto põe em risco a formação dos novos especialistas: não há quem a dê.

Não existindo o perigo da fuga, a exclusividade seria boa para o SNS? Continua a haver o relato de blocos fechados à tarde.

O meu serviço tem cirurgias à tarde, tem consultas à tarde, tem técnicas à tarde.

Não existe desaproveitamento da capacidade do SNS?

Não tenho essa experiência. Há outros problemas. Por que é que não posso dar emprego a um médico ou a uma médica competente que goste de fazer outras coisas? Pode não ser trabalhar na privada, pode ser ter um filho, ou dois ou três, estar a fazer uma pós-graduação e só querer trabalhar 20 horas por semana. Porque é que não lhe hei de dar emprego no SNS? Já pude fazê-lo, mas neste momento o conselho de administração não permite.

É o que o privado faz?

Claro, habilmente. Se eu fosse eu, acabava com a rigidez dos horários impostos às pessoas no SNS.

Dizia há pouco que vai fazer 50 anos que entrou para Medicina, acabou em 1978, a meses de ser criado o SNS. Que memórias tem?

Vai fazer 44 anos no dia 26 de julho que acabei o curso. Comecei a trabalhar como médico no ano em que foi criado o SNS. Estava em Albergaria a Velha a fazer o estágio de saúde pública.

Já tinha ido a Albergaria a Velha?

Já, era o concelho do avô da minha mãe e do meu pai. Ofereci-me.

Sentiu o choque de sair da capital?

Claro. Na altura da autoestrada acabava na Ponderosa! Demorava-se sempre mais de quatro horas a chegar de Lisboa a Aveiro. Encontrei muita pobreza, muita iliteracia. Mas hoje ainda encontro. E acho que é uma aposta que a Ordem tem de fazer. Quanto mais literacia houver na população, mais fácil é o ato médico e melhores são os resultados. Dos orçamentos da Saúde nos países ocidentais, só 3% a 5% são colocados na prevenção da saúde e na promoção da doença, o que é pouquíssimo.

Quando compara o entusiasmo desses anos, o que trazia de volta?

Tenho um entusiasmo idêntico apesar da idade, se não já não estaria no SNS. Reconheço que para um jovem, por tudo o que já falámos, o entusiasmo possa não ser o mesmo. Quando falo de condições de trabalho, não estou a pedir para mim. Não posso estar sentado numa cadeira que me incomode quando tenho de ver 14 doentes. Não posso estar num sítio sem ar condicionado de inverno e de verão, em que estou cheio de frio e o doente também – ou estou cheio de calor, a suar, e o doente também. Não posso estar num sítio em que o sistema informático está sempre a cair e só me desajuda. Quando peço condições, as pessoas podem pensar: “este tipo quer luxos”. Quero um sítio onde esteja sossegado para desempenhar a minha profissão, que é ver e ajudar doentes. É isso que é preciso que os médicos tenham. Não é só uma questão salarial, mas parece que ninguém se preocupa. Há estudos, cá e lá fora, que mostram que o mal-estar dos profissionais, não só dos médicos, muitas vezes vem de coisas pequenas.

Disso tudo, o que o irrita mais?

A ineficiência e a falta de recursos humanos, que hoje é frequente. Num momento em que os doentes são cada vez mais complexos, com múltiplas doenças e polifarmácia, tiram-nos tempo, quando nos deviam dar mais tempo.

O próximo bastonário vai estar em funções nos 45 anos do SNS. O que gostava de celebrar?

A sua sustentabilidade. Estou muito preocupado e gostava de ver o seu revigoramento, que acredito que passará por uma intervenção rápida e profunda nos cuidados primários.

O Governo garante que haverá investimento, análises e exames nos centros de saúde.

E não digo o contrário, mas não sei se é bom passar a haver análises e exames. Há sítios em que sim, há outros em que provavelmente seria mais barato os convencionados fazerem-nos. Porque é que havemos de gastar mais dinheiro? Mas falo sobretudo de o SNS ter pessoas suficientes para que o trabalho seja desempenhado sem sobrecarga dos profissionais. A pressão tem uma repercussão sobre a qualidade do serviço prestado aos doentes, que têm de estar no centro das preocupações.