Por Teresa Carvalho
Doutorada em Literatura Comparada pela universidade do Porto, Isabel Rio Novo põe exigência em tudo quanto faz: ensaios, contos, novelas, romances. Um dos livros com que rompeu o seu caminho de ficcionista, O Rio do Esquecimento (2016), logo revelava as suas armas: imaginação versátil, qualidade romanesca, recusa daquele português que, já sem quilates, parece ter feito um voto de pobreza. Depois de ter publicado, em 2019, a biografia de Agustina Bessa-Luís, trabalha agora na biografia da figura máxima da literatura portuguesa: Camões. E bem consciente de «as coisas árduas e lustrosas/ se alcançam com trabalho e com fadiga».
Em mais um 10 de junho, Portugal torna a abrir o sarcófago de Camões, sempre disponível para as lapelas, para ser admirado mesmo por aqueles que desconhecem quantos cantos têm Os Lusíadas. Parece-lhe que Camões continua a ser uma espécie de boneco de mola que a cada 10 de Junho salta da caixa para recolher pouco depois?
É tentador. Camões é tão rico e inesgotável que tem conseguido ajustar-se a todas as épocas e prestar-se a formas diferentes e até opostas de instrumentalização. E depois, há nele aspetos que tocam muito na dita alma portuguesa, ou pelo menos nos temas que acalentamos na literatura e nas artes. O amor. A viagem. O desterro. A saudade. O oceano…
Estará esgotado deste papel ressequido de ‘múmia’ que anualmente lhe cabe, tantas vezes esvaziada do seu significado e importância, como se fosse uma trivializada espécie de padroeiro nacional?
Camões é tão genial que resiste a tudo, até às más citações, até às banalidades, até aos aproveitamentos que fazem dele, até às visões redutoras. Sai sempre por cima. E isso tem a ver com uma espécie de genuinidade a que é difícil alguém ficar indiferente. Há qualquer coisa de fatal e de fascinante no homem de letras e de armas honrado, que não se verga diante dos caprichos da fortuna nem das desfeitas dos seus contemporâneos. O homem que não descrê do seu talento mesmo quando quase toda a gente parece ignorá-lo e mesmo que isso lhe provoque uma amargura indisfarçada.
Como é que Camões, esse peso pesado da literatura portuguesa, lhe cai nas mãos?
Devo-o ao suspeito do costume, o editor Rui Couceiro, que me lançou mais este desafio. Depois do esforço da biografia da Agustina, eu tinha jurado diante de mim mesma e da família que tão cedo não me veriam noutra. Ao que parece, segundo eles, durante três anos, a minha boca não se abria senão para contar histórias sobre Agustina, a ponto de as nossas filhas, a dada altura, terem decidido que a minha biografada não poderia ser nomeada cá em casa. Em vez de ‘Agustina’, diziam ‘Aquela cujo nome não deve ser pronunciado’, ou ‘Aquela cujo nome’, ou simplesmente ‘Aquela’… Foi quando o Rui me contou que estava a pensar numa nova coleção para a Contraponto, desta vez de biografias de figuras históricas, e disse que gostaria muito que eu participasse… Propôs-me este e aquele nome, eu fui recusando, até que surgiu o nome irresistível.
Que outras figuras lhe foram propostas? E porque não a seduziam?
O Rui propôs-me a Ferreirinha, por exemplo. No fundo, eu queria era esquivar-me, arranjar um bom motivo para recusar, por isso encontrava defeitos em todos os possíveis biografados. Mas o Rui, que é bom negociador, não desistiu. Quando me sugeriu Camões, lembro-me de quase lhe ter ralhado, de lhe ter perguntado se me queria mal… Mas ele disse: ‘Vai para casa, pensa um bocadinho, fala com o Paulo’. E eu fui, muito confiante no bom senso do meu marido. Só que este, ao contrário do que eu esperava, disse-me logo: ‘Camões? Claro que sim. Tem tudo para correr bem’. O golpe de misericórdia aconteceu quando eu, à espera de um sinal, como costumava dizer Agustina, abri ao acaso um livro de poemas de Camões que era do meu avô e encontrei logo o título para a futura biografia… Aí pensei: ‘Bem, estou tramada, tenho mesmo de fazer isto’. Seja como for, volta e meia, o mundo à minha volta fazia questão de me lembrar o sarilho em que me tinha metido. Quase todas as pessoas a quem primeiro contei que me preparava para escrever uma biografia de Camões acolheram a novidade com um misto de estupefação, reverência e temor. Um amigo brasileiro ficou, sem exagero, cinco minutos a abanar a cabeça e a repetir, ‘Nossa, Isabel. Nossa, Isabel’…
Assumido o compromisso, deu por si, logo nos dias imediatos, a iniciar a investigação? Diante da vastidão, o que é que começou por fazer? Para onde se orientou?
É frequente, quando estamos a escrever uma biografia, termos a sensação de que temos de atravessar a nado um oceano e, volta e meia, sentirmos que nos vamos afogar. No início, então, nem se fala. Eu já sabia que Camões era imenso, já fazia uma pequena ideia do muito que se tinha escrito sobre ele, e ao mesmo tempo já estava ciente da escassez das fontes documentais e das muitas zonas obscuras na sua biografia. Mas, quando comecei, essa sensação de afogamento era quase permanente. Aliás, quando iniciei as pesquisas, topei logo com um artigo de jornal relativamente recente, publicado por ocasião do 10 de Junho, e o essencial do conteúdo do artigo era: ‘Fomos à procura de Camões e descobrimos que não se sabe nada da sua vida, a não ser que escreveu Os Lusíadas e recebeu uma tença do rei. O resto é especulação e lenda’. Sentença terrível, pensei eu, não só pelo teor da mensagem em si, mas pelo tom quase ameaçador com que estava escrita. Fiquei logo desconfiada, que é meio caminho andado para querer saber mais. E foi o que fiz.
Rumou de imediato às fontes?
Depois de algumas leituras de referência, percebi rapidamente que teria de examinar as fontes, mesmo que elas fossem escassas, mesmo que já tivessem sido examinadas centenas de vezes. Pode parecer arrogância, mas, pelo contrário, é humildade. Ir às fontes requer algum esforço. Estamos longe de ter tantas fontes para a biografia de Camões como gostaríamos. Mas o que há, isso eu percebi rapidamente, é encarado com uma desconfiança, com um a priori de ceticismo que me parece ir muito para além do que é útil e recomendável e, certamente, muito para além do que é aplicado a outras figuras históricas ou a acontecimentos históricos sobre os quais os documentos são igualmente escassos ou ainda mais duvidosos.
Mas há documentos de cuja autenticidade não se duvida…
A primeira coisa que confirmei foi que os documentos sobre a vida de Camões cuja autenticidade não se questiona estão identificados e são, na verdade, escassos. Há a carta de perdão de 1553 que o fez sair da cadeia do Tronco onde foi preso em consequência de uma rixa grave. Há o alvará de privilégio para a publicação d’Os Lusíadas, confirmado pelo parecer favorável do inquisidor. Há o alvará de concessão da tença anual de 15 000 reis, válido por três anos, e os documentos de renovação da tença, com a menção das somas em atraso. E há a confirmação do pagamento da referida tença em favor da mãe de Camões, que lhe sobrevive. Esses documentos estão todos preservados na Torre do Tombo. E, no entanto, nem eu suspeitava da quantidade de informação que continham, até agora trelida ou desconsiderada.
E há também as primeiras biografias de Camões. Como é que foram acolhidas?
A reação aos primeiros biógrafos de Camões, contemporâneos ou quase contemporâneos do biografado, é ilustrativa do ceticismo de que eu falava há pouco. Durante muito tempo, porque agora começam a ser reabilitados, sobretudo Faria e Sousa, tão injustiçado, quanto a mim. Acusaram-no de falsear documentação, só porque disse tê-la consultado e ela não restou até aos nossos dias. Mas, até agora, tudo quanto Faria e Sousa afirmou e que entretanto pudemos cruzar com outras fontes é verdadeiro. Por exemplo, este biógrafo referiu a tença concedida por D. Sebastião, mencionando a obrigação de o Poeta permanecer na corte. No século XIX, a descoberta dos documentos da tença veio confirmar a existência desta condição. Até acusaram Faria e Sousa de mentir porque, na sua segunda versão da vida do poeta, o biógrafo ousou dizer que iria corrigir algumas coisas escritas da primeira vez, porque entretanto tinha reunido mais informações. Quer-me parecer que a assunção do erro e a vontade de o corrigir é uma demonstração de honestidade, mas isso devo ser eu, que muitas vezes me engano e frequentemente tenho dúvidas.
Faria de Sousa está, neste capítulo, bem acompanhado?
O que aconteceu com Faria e Sousa aconteceu com a generalidade dos primeiros biógrafos. Se se calaram, deviam ter dito. Se disseram, deve ser mentira. Eu não duvido que esses primeiros biógrafos foram cautelosos, silenciaram matéria melindrosa, suscetível de lhes criar problemas no momento em que escreviam, ou escreveram-na de forma obscura. De qualquer modo, examinar com atenção e sem pré-juízos de valor esses primeiros biógrafos, que forneceriam informações quanto a mim injustamente desperdiçadas, foi uma das minhas resoluções. Já as muitas biografias que se seguiram ao longo dos séculos ou se parecem muito umas com as outras (houve um biógrafo britânico de Camões, Richard Burton, que as comparou a um rebanho de carneirinhos enfileirados) ou parecem um coro de homens mais preocupados em criticarem-se uns aos outros ou em responderem uns aos outros do que em acercarem-se das fontes, que foram desaparecendo com o passar do tempo. Mas até essas biografias eu tento ler todas, e em todas descubro qualquer informação ou inferência proveitosa.
Disse Eduardo Lourenço que são muitos os povos que se reveem nos seus grandes poetas: os italianos em Dante, os ingleses em Shakespeare, os Franceses em Molière ou os alemães em Goethe, mas ‘nenhum deles é Dante, Shakespeare, Molière ou Goethe como nós somos Camões … só Camões’. O facto de Camões ser a imagem mesma de Portugal aumenta a sua responsabilidade?
Se aumenta. Há pouco falava da reação de assombro dos meus amigos, quando lhes dizia que ia biografar Camões. Mas houve um outro que recuperou quase instantaneamente do choque e que me perguntou: ‘Então vais biografar Camões. Mas que Camões?’. E eu fiquei a pensar nas palavras dele. Há tantas camadas em Camões, tantas camadas que lhe acrescentámos ao longo dos séculos, que a primeira coisa a fazer é como quando a equipa de conservadores de um museu se prepara para restaurar uma pintura. É preciso observar a extensão dos danos, remover as poeiras e os remendos da tela, raspar e retirar as camadas de acrescentos que se foram fazendo. Neste caso, é preciso expurgar a biografia de Camões de todo o acréscimo romanesco, de todos as dimensões com que a fomos reinventando, incluindo essa de ser a imagem de Portugal. De todas as camadas de tinta, em suma. Cada época acrescentou a sua. Cada regime político também. Se calhar, como diz, cada português também.
Os estudos camonianos, novas correntes incluídas, avançaram muito nas últimas décadas. Mas o mesmo não se passa relativamente à investigação no campo da biografia, verdade? Entre nós, quais são os últimos trabalhos dignos de registo?
É verdade. E eu nasci precisamente em 1972, ano da comemoração do 4.º centenário d’Os Lusíadas, em que se assistiu a várias iniciativas promovidas pela Academia das Ciências de Lisboa e não só. Tive a sorte de crescer e de me formar num tempo de renovação dos estudos camonianos. E isto não pára. Estou muito entusiasmada com tudo o que já está a ser produzido no âmbito dos 450 anos d’Os Lusíadas, tudo o que vai acontecer com o centenário, e não só em Portugal, note-se. Participei recentemente num congresso em Jacarta, onde intervieram jovens conferencistas (e outros não tão jovens) de várias proveniências, com perspetivas extremamente enriquecedoras.
Já a investigação no campo biográfico parece ter estacado…
Depois da biografia controversa do Professor José Hermano Saraiva, que é de 1978, julgo eu, não houve mais nenhum trabalho de fundo sobre a vida de Camões. Curiosamente, nas últimas décadas, à medida que os projetos de caráter biográfico foram escasseando, multiplicaram-se as obras de ficção em torno de Camões, em géneros literários diversos (teatro, poesia, conto, e sobretudo romance biográfico). Quer dizer, compreende-se que assim seja. A escassez de informação biográfica detalhada, a existência de zonas obscuras na vida do poeta, estimulam a recriação ficcional. Dito isto, há ficções em torno de Camões muito interessantes. As Naus, de António Lobo Antunes. A peça Que farei com este livro?, de José Saramago. O romance Os Naufrágios de Camões, de Mário Cláudio… E há outras que nem tanto. No entanto, tenho lido muitas dessas ficções, e quase sempre com utilidade, até porque nelas às vezes se sente mais o palpitar de uma vida do que nos verbetes dos dicionários ou das páginas da Internet ou nas tábuas cronológicas dos manuais. Simplesmente, não deixam de ser relatos ficcionais, mais ou menos fantasiosos, de vidas de uma personagem inventada. E eu quero aproximar-me do indivíduo Luís Vaz de Camões, aquele que existiu realmente. Até porque a vida de Camões, por si só, não carece de artifícios romanescos para ser uma leitura apaixonante.
Ao contrário do seu trabalho biográfico sobre Agustina, com Camões as dúvidas levantam-se logo a propósito do local e data de nascimento. Vendo bem, o autor nem infância tem… O que é que, com segurança, sabemos sobre Camões?
Pois, sabemos algumas coisas e espero que venhamos a saber algumas mais quando a biografia for publicada [risos]. De qualquer modo, o que não se vier a saber terá de ser assumido com honestidade. Tenho-me lembrado muito das palavras de Georges Le Gentil, que dizia que é preciso distinguir o certo do provável, o provável do possível, o possível do impossível. E, quando esbarrar num muro de interrogações, tenho de transportar para o discurso essas interrogações, sem omitir que, tantas vezes, as respostas definitivas não surgem.
Presumo que o contexto histórico terá nesta biografia um importantíssimo papel a jogar…
Escrever uma biografia de Camões sem abordar o contexto histórico não faria sentido. Felizmente, nesse ponto estamos bem servidos; a época está muito bem estudada. Em muitos aspetos, Camões foi um indivíduo igual a tantos outros do seu tempo. Cortesão, soldado, embarcado, escritor. Habitante do Oriente, um daqueles ocidentais abalados pela novidade das impressões, das gentes, dos costumes, das paisagens. Não investigo a época só para obter o pano de fundo do meu retrato. Os indivíduos não vivem apenas na sua época; eles são, em certa medida, a sua época. Que significava no século XVI, ser amigo de alguém? Que significava ser desterrado? As palavras aparentemente mais simples e descomplicadas têm sentidos e ressonâncias e implicações que se perdem com o tempo. Achar que, no século XXI, dominamos as aceções que as palavras detinham há quinhentos anos ou que elas são óbvias é uma presunção.
Fez novas descobertas? Pode desde já avançar alguns elementos?
Todos os dias descubro coisas novas em Camões, na sua vida ou na sua obra. Eu moro em Gaia, perto da praia, e costumo caminhar pelos passadiços à beira-mar. Quando caminho em direção do estuário do Douro, em muitas ocasiões cruzo-me com pescadores à linha (é assim que se diz?). Às vezes, um só pescador tem cinco ou seis canas de pesca cravadas em diferentes locais e apontadas em várias direções, e lá vai ele de uma a outra a ver se o peixe já mordeu nalgum anzol… Digamos que o peixe tem mordido nalguns anzóis.
Sendo romancista e tendo em mãos um autor cuja vida tem tantos ‘brancos’, não teme aquela sua camoniana ‘virtude do muito imaginar’?
Isso não, sinceramente. Já escrevi alguns romances, já escrevi uma biografia. Há qualidades, passe a imodéstia, que servem igualmente à romancista e à biógrafa: a capacidade de conduzir uma narrativa; de a tornar apelativa para o leitor; a capacidade de ver num indivíduo do passado um ser de carne e osso dotado das mesmas emoções que nós, mas que, simplesmente, não se cruzou connosco no nosso aqui e agora. Mas a literatura de não ficção, como eu entendo a biografia, tem premissas de rigor, exaustividade e fidelidade ao real que nada têm a ver com o ato livre de romancear.
O Camões das Cartas é real, mas tem sido quase silenciado… Por que motivo?
As cartas de Camões são um bom exemplo de informação conhecida desde o século XVI, mas quase completamente descurada do ponto de vista biográfico. Oferecem uma imagem de Camões avessa ao discurso oficial, e só isso justifica o quase desconhecimento por parte do grande público e o desconforto que geraram na maioria dos estudiosos. Até ao século XX, e mesmo no século XXI, a maioria dos camonistas nem lhes pegou, ou pegou-lhes muito ao de leve, ou disse: ‘Ah, isto não importa, isto é um exagero, isto são verduras da mocidade’… Hernâni Cidade fugiu delas a sete pés. Aquilino foi o oposto. E, mais próximo do nosso tempo, Hélder Macedo desvendou sobre as cartas de Camões muitas pistas de leitura interessantíssimas.
E em termos de matéria biográfica, as cartas são muito relevantes?
Sem dúvida. Ali estão passagens da vida de um homem a descrever a sua vivência em ambientes marginalizados, num quotidiano marcado por escândalos, desacatos, convívio com meretrizes, problemas com as autoridades… À medida que são publicados novos estudos sobre as cartas de Camões, mais evidente fica a fratura entre o discurso oficial sobre a biografia do Poeta e as evidências de sua vivência numa espécie de submundo, mas que também era o mundo dele.
Dado a golpes de humor – como as Cartas deixam entender -, a zaragatas, à jogatina, surge-nos por vezes desfalcado daquela nobreza a que sempre o associam. Quererão ou estarão os Portugueses preparados para conhecer estoutro Camões? Ou prefeririam talvez que não lhe fosse apresentado?
Não tenho dúvidas que, para muitas pessoas, essoutro Camões poderá ser incómodo. Há pouco falei das cartas e lembrei-me agora de José Maria Rodrigues, o inventor do romance de Camões com a Infanta D. Maria, que chegou a congratular-se por Camões ter sido preso em 1553, porque a prisão, digamos, o teria afastado das más companhias e da má vida que as cartas documentam… Aí está um dos que não quereria conhecer um Camões inteiro. Mas eu não ando aqui para enganar ninguém, como se costuma dizer [risos].
Que Camões quer biografar?
Quero tentar biografar o indivíduo Luís Vaz de Camões, homem de génio excecional, com defeitos e virtudes, com as contradições de qualquer ser humano. Há pouco falava das camadas de sentido que acrescentámos a Camões ao longo dos séculos. Mas, para muita gente, a questão ainda é mais complexa. Camões é um busto de bronze, uma estátua num pedestal, um monumento. Quero oferecer-lhes o retrato de um homem.
Despir Camões dos calções tufados e das golas encanudadas dá trabalho?
Dá algum. É verdade que, neste pós-ditadura ainda recente, ainda há muita gente traumatizada pelo aproveitamento nacionalista do grande épico. E acho que em parte também somos todos herdeiros das lendas associadas a Camões, da visão romântica. Ou seja, como dizia Camilo há um século e meio, estamos habituados a encarar Camões ou à luz crepuscular das imagens do poeta injustiçado e miserável, ou sob os coloridos fortes e exaltantes da epopeia. Não estamos habituados a encarar Camões a uma luz natural. E quem nos mostrar Camões à luz natural, como um homem, e não como uma lenda, arrisca-se a incorrer em delito de ruim português. Isto disse Camilo, não sei se para mim [risos].
E receios, há?
Receios tem de haver sempre, ou então não seríamos humanos. Já dizia Camões que a coragem não é a ausência de medo, mas sim a capacidade de o dominarmos. Estou a lembrar-me do que outro amigo me disse, com humor: ‘Bem, pelo menos este biografado não tem a família viva’ Eu comecei e rir, mas depois pensei. ‘Não, pelo contrário. A família de Camões está viva, é enorme, milhões de pessoas de um e do outro lado do Atlântico’. E está pronta a reagir.
Em que fase está o seu trabalho?
Mentiria se dissesse que estou no início, mas estou ainda longe do fim.
Teme que, quando a sua biografia for publicada, os camonistas se acerquem dela com olhar examinador, ávidos de reparos, correcções…?
Espero sinceramente que muitos leitores, incluindo os camonistas, se acerquem dela, que a leiam, que a comentem, que me interpelem, reconhecendo nela um trabalho sério de investigação, paralelo ao deles, certamente, mas muito devedor de tudo quanto antes de mim se trabalhou e se escreveu sobre Camões. Devo dizer que, dos especialistas na obra de Camões com quem já tive a oportunidade de falar (ainda reuni com poucos, é verdade, por causa da pandemia), nenhum me recusou ajuda. Pelo contrário, quase todos me incentivaram, se prontificaram a ajudar-me, e mais do que um saudou a iniciativa com entusiasmo. Não prometo uma biografia sem falhas, mas prometo uma biografia séria, rigorosa e espessa (e não estou a falar da lombada). Aliás, devo dizer que, superado o choque inicial, a maioria das pessoas fica sinceramente feliz com este projeto. E diz que quer ler. E quer ajudar. Dou-lhe um exemplo. Numa das minhas passagens recentes por uma cidade do norte do País, para encontros com alunos em escolas, fiz amizade com uma bibliotecária muito empenhada. Ficou tão entusiasmada com o projeto da biografia que nas últimas semanas me tem enviado dezenas de recortes de artigos e ensaios sobre Camões e o século XVI que vai encontrando em periódicos mais ou menos obscuros. Como não ficar comovida com isto?