O verão não vai ser de descanso para Marta Temido nem para o Ministério da Saúde. Mais uma vez, as insuficiências do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foram postas a nu e os vários casos de hospitais sem condições para assegurar o serviço de urgências, nomeadamente em Obstetrícia e Ginecologia, voltaram a colocar pressão sobre a ministra, depois dos dois anos em que foi a pandemia a não dar tréguas.
Na semana passada, quando o alarmismo em torno desta crise nas urgências hospitalares começava a ganhar mais expressividade, Marta Temido encontrava-se de férias e, ao que o Nascer do SOL apurou, o primeiro-ministro não tardou em interromper o descanso da ministra, chamou-a de volta a Lisboa, para tomar as rédeas da situação e dar a cara na conferência de imprensa após o Conselho de Ministros em que a situação foi analisada. O Nascer do SOL tentou uma reação dos gabinetes de António Costa e Marta Temido, mas não obteve resposta.
Em pleno dia de Santo António, em Lisboa, Marta Temido desdobrou-se num conjunto de reuniões de emergência com a Ordem dos Médicos, com diretores clínicos de vários hospitais da região de Lisboa e com representantes dos vários sindicatos. Depois de horas de conversas, a ministra por fim apareceu à cena para uma curta conferência de imprensa, anunciando que o Governo iria avançar com um plano de contingência para o verão, sem indicar medidas efetivas.
A falta de maiores detalhes não convenceu o setor da saúde que se pronunciou por mais investimento no SNS e pela contratação de mais profissionais.
Nas poucas explicações que prestou, Marta Temido admitiu que estes constrangimentos não são de agora, mas estão «numa fase mais aguda» depois de dois anos de pandemia e do adiar de um conjunto de medidas que o Executivo queria ter aplicado anteriormente à crise política que precipitou o país para eleições legislativas em janeiro.
Além disso, acabou a insinuar que o caos instalado em algumas unidades hospitalares do país se devia ao facto de muito médicos já se encontrarem de férias: «Esta situação não é nova, repete-se sistematicamente em determinadas alturas do ano». O que não deixa de ser irónico, uma vez que a própria ministra se encontrava em gozo das suas.
Do lado dos sindicatos, passou a ideia de que a ministra não estava assim tão ciente de que não se trata de um problema pontual, provocado por folgas ou férias dos médicos, mas sim pela falta de médicos nas escalas de serviço.
De resto, António Costa descreveu que a situação se deve a uma «conjugação de problemas». Um deles é a covid-19, que «afetou vários médicos», enquanto outro se relaciona com a «acumulação de feriados». Mas não deixou de frisar que «há problemas estruturais que precisam de ter resposta», contrariando a tese de que se trataria de um cenário apenas pontual.
Depois das declarações do chefe de Governo na sede do PS, Temido acabou por detalhar na quarta-feira o plano de contingência do Governo: a criação de uma comissão de acompanhamento para identificar os recursos disponíveis em cada hospital e aferir a possibilidade de celebrar acordos com o privado, além de possíveis alterações na remuneração dos profissionais.
No Luxemburgo, também o ministro das Finanças, Fernando Medina, afastou que as dificuldades que se vivem nas urgências em vários hospitais portugueses sejam o resultado de restrições financeiras.
«O que está a acontecer relativamente no nosso Serviço Nacional de Saúde não decorre de nenhum condicionamento financeiro que tenha sido imposto», vincou, recordando o «reforço significativo» de 700 milhões de euros para o SNS, previsto no Orçamento do Estado para 2022.
No Parlamento, esta sexta-feira, depois de ouvir o rol de críticas dos deputados da esquerda à direita, a ministra da Saúde acabou por reconhecer que «há problemas estruturais» no SNS, mas não se alongou na discussão.
Feridas abertas no PS
Além da contestação pública que tem vindo a degradar a sua imagem depois da popularidade conquistada com a pandemia, Marta Temido tem sido alvo de muitas críticas dentro do PS pela forma como tem gerido esta crise, especialmente da ala mais reformista do partido que defende uma maior articulação entre público e privado e acusa o Governo estar a gerir o SNS ‘com os pés’.
Exemplo disso foram as declarações de Maria de Belém que, na CNN Portugal, não escondeu que estava «à espera de bastante mais» do Executivo de Costa.
Para a antiga ministra da Saúde do Governo Guterres, este é «um problema de fundo» que não se justifica com os «feriados de junho» ou com as férias dos profissionais de Saúde, como tentou argumentar o Governo.
A ex-governante reconheceu, aliás, que «gostava de ver uma envolvência maior e um reconhecimento maior» por parte da ministra da Saúde na valorização dos recursos humanos do setor da Saúde.
Além disso, notou que uma ministra que acabou com as Parcerias Público-Privadas (PPP) na Saúde ao querer trazê-las agora de novo terá de negociar numa situação de fragilidade. «O Ministério da Saúde não pode nunca estar numa situação de fragilidade», sublinhou, evidenciando ainda que o setor privado está melhor dotado em equipamento e outros instrumentos de que o setor público se vê delapidado por falta de investimento.
Recuando a 2019, a proposta para a Nova Lei de Bases da Saúde preparada por Maria de Belém não acabava com as PPP. Mas a aprovação da nova Lei de Bases da Saúde, em substituição da antiga lei de 1990, que será provavelmente a maior marca que este Governo e a ministra Marta Temido deixam no setor, acabaria por determinar a predominância da gestão pública.
Na mesma linha de Maria de Belém, o antigo ministro da saúde socialista Adalberto Campos Fernandes, esta semana, também saiu em defesa das PPP: «A resposta pública tem de ser articulada com a resposta privada, o Estado pode, e deve, contratualizar serviços para a população no setor privado e setor social. É inadmissível que os cidadãos sejam penalizados por um SNS condicionado», lamentou o ex-ministro da saúde no primeiro Governo de António Costa.
Apesar da crise no SNS não se resolver com uma mudança de protagonista, Marta Temido já ouviu um pedido de demissão vindo do seu próprio partido, o PS. Em declarações na CNN, o deputado socialista Sérgio Sousa Pinto foi explícito: «O país já não tem confiança na atual titular da Saúde. Já não se acredita que ela possa vir a ser, depois de tudo aquilo que vivemos, protagonista de qualquer esforço reformista».
Questionado diretamente sobre se a ministra da Saúde deveria tomar a iniciativa e demitir-se, Sousa Pinto ironizou: «Para manter as coisas como até aqui, a ministra pode permanecer…».