Para um leigo, fora dos corredores e dos labirintos da Justiça, há uma intrigante novela à volta do juiz Ivo Rosa, cujo desfecho é tão imprevisível como o de vários casos mediáticos que se arrastam, há anos, num complexo tabuleiro de recursos, adiamentos, e, não raramente, de prescrições, por esgotamento de prazos.
Qualquer palpite arrisca, por isso, ser liminarmente desmentido pela realidade. Se um ‘pilha galinhas’ comparecer em tribunal, é quase garantido que não sai da sala de audiências sem ouvir a sentença, que poderá muito bem saldar-se por uma temporada atrás de grades.
Se o arguido for alguém com ‘nome na praça’ e dispuser de meios bastantes – mesmo que de proveniência misteriosa –, já a ‘música’ é outra, e poderá, até, enxovalhar o trabalho de procuradores e de juízes, sem que nada lhe aconteça, bloqueando, alegremente, a Justiça, através de expedientes de secretaria.
Ora, coube em sorte, que fossem parar às mãos do juiz Ivo Rosa alguns dos processos mais mediáticos – desde a Operação Marquês ao chamado Universo BES – envolvendo, à cabeça, um ex-primeiro-ministro e um ex-banqueiro ‘todo-poderoso’, acusados e suspeitos de um extenso rol de malfeitorias.
O mesmo juiz, tem-se distinguido, aliás, por ter merecido, até hoje, um invulgar sortido de acórdãos do Tribunal da Relação, que o ‘mimam’ de uma forma pouco usual, revogando e desautorizando decisões que tomou.
Se estiverem certas as contas feitas pela imprensa, aquele magistrado já colecionou, pelo menos, 12 derrotas no Tribunal da Relação, desde 2017.
Perante o somatório de acórdãos desfavoráveis, nos quais Ivo Rosa aparece zurzido impiedosamente, poderia supor-se que estaria em ‘maus lençóis’. Nada disso.
Houve, até, um inspetor do Conselho Superior da Magistratura (CSM) que avaliou o seu trabalho, em julho de 2021, com a nota de ‘muito bom’, justificando-a com o facto de «nenhuma referência negativa» ter sido «detetada nas apreciações de recurso do Tribunal da Relação – que, na esmagadora maioria dos casos, confirmaram as decisões relatadas pelo inspecionado ou só por si subscritas». Confuso?…
Vem a propósito recordar, que, no seguimento da controversa atuação do mesmo magistrado, na fase instrutória da Operação Marquês – ao isentar José Sócrates e outros arguidos da maioria dos crimes de que estavam acusados –, chegou a circular uma petição pública, em abril de 2021, que recolheu milhares de assinaturas, na qual se pedia o seu «afastamento de toda a magistratura», face «à sua parcialidade e consecutivos erros judiciais lesivos ao Estado e à Nação Portuguesa».
A petição, embora tenha ficado ‘em águas de bacalhau’ foi bem reveladora, à época, da adesão e do desconforto dos peticionários.
Apesar deste currículo, Ivo Rosa passou de ‘usurpador’ de poderes de um tribunal superior a «graduado» para «promoção ou nomeação» na Relação de Lisboa, embora esse passo esteja suspenso, a aguardar a conclusão do inquérito disciplinar em curso, também no CSM, para apurar se houve «interferência ilegítima na atividade jurisdicional de outro magistrado» (leia-se Carlos Alexandre, o outro juiz com quem Ivo Rosa mantém, há muito, uma ‘guerra’ pouco ‘surda’…).
Moral da história: um magistrado pode alimentar um conflito de competências com colegas ou proferir sentenças, várias vezes revogadas por tribunais superiores, sem que esse facto comprometa a avaliação feita pelos seus pares. Estranho?…
Para quem não circule na ‘alta roda’ da Justiça, a promoção de um juiz nestas condições e com tais antecedentes legitimará, no mínimo, naturais perplexidades.
Ora, a Justiça portuguesa já estava de rastos com a exasperante lentidão dos tribunais, algo que favorece, sobremaneira, quem dispõe de ‘cabedais’ para pagar os honorários de advogados de elite, abusando da parafernália de recursos permitida pela natureza excessivamente garantística do sistema.
Isso mesmo foi reconhecido, há um ano, pelo novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, ao denunciar, frontalmente, que «existe toda uma via incidental que pode ser explorada pelas partes, dentro do generoso catálogo propiciado pelos códigos de processo civil e penal».
E que «o sentimento de descrença no aparelho de Justiça resulta da expectativa frustrada dos cidadãos na resolução rápida de processos criminais de grande envergadura em que, geralmente, são visadas figuras da sociedade com notoriedade pública».
Pouco ou nada mudou desde então. As ‘portas giratórias’ continuam bem lubrificadas, facilitando o trânsito de magistrados entre mordomias e sinecuras, enquanto se assiste, por exemplo, a deambulações político-académicas de Sócrates pelo Brasil, sem ‘dar cavaco’, apesar da medida de coação a que está sujeito.
Dir-se-á que é a Justiça a funcionar. Sem escrutínio…