Numa conferência sobre a economia portuguesa organizada pela CNN Portugal, em Lisboa, António Costa acenou com novas medidas extraordinárias de apoio nas próximas semanas, garantindo que o Governo está a gerir “com tranquilidade” este momento de incerteza de elevada inflação. Essas medidas extraordinárias não irão, contudo, implicar qualquer revisão orçamental.
O primeiro-ministro recusa completamente a ideia de que o Orçamento do Estado para 2022 tenha de sofrer alterações, ainda mais depois de ter sido promulgado na sexta-feira para estar em vigor apenas meio ano. Achar que o Orçamento do Estado possa ter de ser retificado é sinal da “doença nacional que é o ceticismo”, considera António Costa.
A frase recebeu logo troco: “É ceticismo, mas também uma espécie de otimisto”, atirou Pacheco Pereira, que também participava na conferência, antes de ser imediatamente interrompido por Costa em tom de brincadeira: “Você nem sabe o que é o otimismo, desculpe lá. Até fica doente”.
Esta troca não passou despecerbida. José Adelino Maltez entendeu que se tratava de uma “piada” em referência à expressão “otimista irritante” que o Presidente da República utilizou para o descrever. “António Costa ficou marcado por essa frase e acha que tem de andar sempre em torno dela. Por isso, disse aquilo que é costume de povos como o nosso que se vê frustrado”, afirma o politólogo em declarações ao i.
“É natural que o povo português padeça de algum ceticismo porque não somos marcados pelo otimista irritante”, continua, considerando que é “típico dos grandes estadistas fazer exercícios de psicologia social”.
“Quando alguém manda em Portugal de uma forma duradoura, há esta tendência de descrever o povo sobre o qual mandam porque se consideram diferentes do temperamento do povo que governam”, ajuíza Adelino Maltez. Por outras palavras, os políticos que governam funcionam como uma “consciência nacional do povo”.
Portugal não é parco em exemplos disso, diz o investigador de ciência política. “Dava para fazer uma antologia com este tipo de frases. Salazar fazia muitos exercícios de psicologia do povo português e, agora, António Costa também caiu nessa tentação.”
Aos olhos de Adelino Maltez, o “ceticismo” que Costa atribuiu ao povo português também passou por uma certa “irritação” com as declarações de Pacheco Pereira durante a conferência.
“Parafraseando, Pacheco Pereira disse que sempre fomos pobres e continuamos pobres. E Costa tentava através dos números dizer que não, que graças à sua governação já não somos pobres”, resume. Além da promessa de um aumento, que apelidou de “histórico”, das pensões já no próximo ano, Costa tentou subir a moral ao máximo apontando que “o salário médio nos últimos seis anos subiu 22%” e que agora era preciso manter esse mesmo ritmo de crescimento salarial.
Segundo o politólogo, também há uma tendência dos governantes para esta retórica do “eu contribuí para o enriquecimento e retirei o empobrecimento coletivo”, que muitas vezes “introduz uma diferença entre o discurso político otimista e a realidade”.
“Todos os povos com muita história têm esta tentação de comparar-se com o passado glorioso ao depararem-se com a frustração do dia à dia, sobretudo estas gerações que acreditaram que a integração europeia e a economia livre dariam excelentes condições para que, por exemplo, tivéssemos um Serviço Nacional da Saúde que nos garantisse um Estado social com justiça social. Só que depois estas coisas falham e entram em choque com a realidade, o que nos leva a ser céticos”, sustenta.
Para o politólogo este tipo de retórica também ilustra uma incompetência da governação. “António Costa percebe que as pessoas não se entusiasmam com aquilo que ele propõe e dá estas chicotadas psicológicas. Depois anda em concorrência motivacional com Marcelo Rebelo de Sousa, só que não é com motivações que se come ou que se trata dos problemas no setor da saúde”, critica.
Por seu lado, Alberto Gonçalves considera que “a última coisa de que alguém pode acusar os portugueses, e em particular António Costa, é de sofrerem de ceticismo”. “Se os portugueses sofressem de ceticismo, António Costa dificilmente seria primeiro-ministro”, insiste.
Na perspetiva do sociólogo, a doença nacional é outra: “Os portugueses sofrem é de excesso de crendice ou de falta de ceticismo, pois acreditam em tudo o que lhes despejam em cima, ou melhor dizendo, acreditam nas promessas e garantias de António Costa”.
Tal como Adelino Maltez, Alberto Gonçalvez também argumenta que a realidade confirma que as promessas do primeiro-ministro não passam de “ilusões”. “No entanto, os portugueses não parecem realizar um grande escrutínio à governação de António Costa e talvez por isso foi premiado a 30 de janeiro com uma maioria absoluta”, recorda.
Por oposição, diz que “os portugueses acabam por confiar demasiado naquilo que vem de cima”. Para exemplificar, relembra como foi gerida a pandemia. “Na questão da covid-19, Portugal foi provavelmente o único país do Ocidente em que não houve uma reação pública e notória de contestação às medidas de combate à pandemia, como as restrições e os confinamentos”.
As explicações que encontra para este “conformismo” português prendem-se com os níveis de pobreza. “Há um problema de pobreza que se mistura com um certo atraso que essa pobreza implica e nos faz ser um bocadinho resignados, obedientes, reverentes a quem manda”, defende.
Na perspetiva de Alberto Gonçalves, esse é um problema endémico que está para durar e que tem na sua base “um afastamento físico entre quem manda e quem obedece”. “Isso faz com que as pessoas olhem para o poder com uma certa reverência e com crendice”. Apesar de admitir que o povo português, por vezes, possa “resmungar”, reitera que as pessoas “depositam demasiada confiança em quem manda”.
Sobre a faceta “otimista” de Costa, o sociólogo recupera outras declarações do primeiro-ministro. Na semana passada, o chefe de Governo garantiu que “parte dos problemas” do Serviço Nacional de Saúde (SNS) estariam resolvidos na segunda-feira. Reconhecendo que o SNS tem “problemas estruturais, que são exponenciados pela acumulação de feriados e pontes”, Costa salientou que os últimos dois anos foram de “grande stress” para os profissionais de saúde devido à pandemia de covid-19 e considerou natural que muitos tenham decidido “legitimamente” férias neste período.
“Temos de ter melhores condições de remuneração e atratividade das carreiras e uma gestão mais eficiente”, afirmou, não deixando de salientar que uma das medidas previstas no Orçamento do Estado é precisamente a “maior autonomia dos hospitais na contratação de profissionais”.
Contudo, “segunda-feira já lá vai e que eu saiba nenhum dos problemas no SNS está resolvido”, atira Alberto Gonçalves. Na realidade, responsáveis de algumas unidades hospitalares, como do Hospital de Setúbal, assumiram esta semana que terão de encerrar temporariamente as urgências de Obstetrícia e Genecologia durante os meses de verão.
“Não creio que António Costa seja especialmente otimista ou pessimista, mas pode afirmar este tipo de coisas porque não é escrutinado. Apenas está a difundir propaganda e essa propaganda consiste em exaltar as proezas do Governo e convencer o povo de que vai ficar tudo bem”, sublinha o sociólogo.
Já no caso da pandemia, a lógica pareceu-lhe ser outra: “Nessa altura parecia que o interesse do Governo era instigar o medo ou o pessimismo”. Mas, “independemente do otimismo ou do pessimismo, António Costa pode dizer aquilo que entende que favorece o Governo ou a si pessoalmente, porque depois não há um escrutínio que o avalie ou que o confronte com aquilo que vai dizendo”, reitera.
Sobre os constrangimentos no setor da saúde, José Adelino Maltez não deixa de achar curioso que “num momento em que há uma espécie de inverno demográfico em Portugal, de falta de crianças e de novas gerações, os pais não tenham sítio onde dar à luz um filho”. “Deve ser uma das coisas que mais deve incomodar António Costa. Não há nada pior para um Governo do que dizer que uma maternidade fechou”, calcula.
Para o politólogo, a situação é capaz de se prolongar durante meses, apesar das medidas anunciadas pela ministra da Saúde, Marta Temido, designadamente um plano de contigência que contempla a criação de equipas para reorganizar as redes de urgências.
“Acreditam no Deus da contingência”, ironiza Adelino Maltez. “Temos médicos, temos hospitais, temos dinheiro, mas depois não temos a organização do trabalho. Isto não é culpa da guerra na Ucrânia, muito menos do Pedro Passos Coelho. Este não é um problema de ceticismo, é um problema de vigarice organizacional”, reprova.