Já por mais de uma vez escrevi aqui sobre o empréstimo de livros e os seus inconvenientes. Quanto mais sei, mais me convenço de que dá quase invariavelmente mau resultado – ou seja, o emprestador nunca mais vê o seu livro de volta. O que me levou a formular uma espécie de 11.º mandamento: ‘Não pedirás livros emprestados’.
Recentemente percebi que o problema vem de muito longe. Na margem de um manuscrito medieval que se encontra em Barcelona, pode ler-se a seguinte maldição: «Que aquele que rouba livros, ou não devolve livros emprestados, que o livro se transforme em serpente na sua mão e o pique. Que seja atingido por paralisia e todos os seus membros rebentem. Que definhe de dor, implorando por clemência, e o seu tormento não seja aliviado até que entre em decomposição. Que os vermes corroam suas entranhas como sinal do Verme que não perece. E quando finalmente for ao julgamento final, que as chamas do inferno o consumam para sempre».
Enfim, que «definhe de dor», que «o seu tormento não seja aliviado até que entre em decomposição» e que «as chamas do inferno o consumam para sempre» parece-me exagerado. Mas, tirando os requintes de sadismo, percebo perfeitamente a ‘maldição de Barcelona’ e partilho o sentimento de indignação contra os que roubam ou não devolvem livros. Eu também fico danado.
Por isso imaginem a minha mortificação quando descobri que um dos meus filhos tinha há meses em casa um livro da biblioteca da escola. Quando lhe disse para o restituir de imediato, respondeu-me candidamente que já tinha passado tanto tempo que seria uma vergonha só o devolver agora… Acho que fui persuasivo o suficiente para o convencer a ir entregá-lo no dia seguinte.
Este episódio só veio reforçar a minha velha convicção de que os livros não se emprestam nem se pedem emprestados.
E, ainda assim, há umas poucas pessoas para quem abro uma exceção. O meu amigo Pedro Raimundo é uma delas. Ele próprio tem uma relação curiosa com os livros. Em tempos, gastava quase todo o dinheiro que ganhava a comprá-los, até ter formado uma coleção imponente. Um dia, vá-se lá saber porquê, fartou-se e vendeu a biblioteca à primeira pessoa que lhe apareceu. Não que me fizessem falta, mas tive pena de não ter podido escolhido uns quantos volumes.
De há uns anos para cá, o Pedro costuma oferecer-me um livro pelo aniversário – e, diga-se, acerta sempre. Dentro de um deles vinha um postal que tenho em cima da secretária, de um bonito quadro que representa um monge eremita sentado tranquilamente a ler um grande tomo pousado no regaço, uma pintura de Vieira Lusitano.
Há três anos, enquanto eu lia Caminhadas com Robert Walser, de Carl Seelig, pensei que era o tipo de livro de que o Pedro ia gostar. De uma das últimas vezes que ele esteve aqui em casa, emprestei-lho sem qualquer receio. Depois veio a pandemia, etc., passámos muito tempo sem nos vermos. Mas ele, claro, não se esqueceu de mo devolver. Em troca, levou Monsieur Proust, de Céleste Albaret, de que eu já tínhamos falado. Mais uma vez, não me enganei – ele gostou tanto que até o ‘subemprestou’ à mãe.
E assim iniciámos uma pequena tradição. Por causa disso, eu, que sempre fui um feroz opositor de se emprestar livros, dou muitas vezes por mim entusiasmado a pensar qual vai ser o próximo livro que vou emprestar ao meu amigo Pedro. A fasquia está elevada e eu não o quero desapontar.