“Nunca gostei de chamar fascismo ao salazarismo. É um fascismo rural, relativamente suave”

José António Saraiva quis encaixar a subida ao poder de Salazar na história do país que o criou. Descreve um ditador vindo de um Portugal conservador, em confronto constante com outro Portugal mais progressista.   

José António Saraiva, arquiteto e jornalista, antigo diretor do Expresso e depois fundador do SOL, mais uma vez voltou atrás na história, com o primeiro volume de Salazar e a sua Época, dedicado à infância do ditador e a ida de Santa Comba Dão para Lisboa. É uma narrativa que se mistura com a história dessa época, de lutas ferozes entre republicanos e monárquicos, tendências anticlericais e católicas, progressistas e conservadores, desembocando numa ditadura militar. O jovem professor da Universidade de Coimbra que então surge em cena – “penso que Salazar era monárquico, embora nunca o afirme”, menciona Saraiva – é descrito pelo arquiteto como uma figura “providencial”. O autor está bem consciente de que o seu profundo interesse por Salazar corre o risco de engrandecer a mitologia criada pelo Estado Novo em volta do ditador. “Percebo que Salazar é um homem misterioso, com um mistério que ele cultiva mas é intrínseco à sua figura”, explica. “Percebo-o muito bem porque sinto-me um bocadinho parecido, também sou um pouco distante em relação às pessoas”, admite Saraiva. Que em breve voltará a fechar-se em casa para escrever mais um livro de história, onde vai debruçar-se sobre o regicídio.

Um dos aspetos que achei mais interessantes no seu livro foi a descrição de como Salazar cresceu num período em que a juventude estudantil estava muito radicalizada à direita. Em que havia uma clivagem geracional só que, ao contrário daquilo que vemos hoje, a juventude era uma espécie de vanguarda conservadora. Até que ponto Salazar é um produto desse ambiente?
O que me levou a escrever este livro foi o facto de existirem boas biografias do Salazar, boas histórias do fim da monarquia e da Primeira República, mas eu sentir a falta de um livro que encaixasse as duas histórias, da personagem e do país. A pergunta que me faz liga-se exatamente a isso. Ou seja, percebe-se que Salazar ganha consciência política num período em que vai para a universidade, curiosamente nos mesmos dias em que é proclamada a República. Ele vive a universidade num tempo politicamente muito radicalizado. Muito radicalizado à esquerda, porque o Afonso Costa, que assume a liderança do Partido Democrático, é um marxista. E a reação dos estudantes é sempre um bocadinho uma reação ao poder. Não é tanto à esquerda ou à direita, é mais uma irreverência. Na medida em que a República é jacobina, intolerante, ataca muito os católicos, a reação vai ser conservadora. Uma massa importante de estudantes vai reunir-se em torno dos católicos e Salazar entra nessa corrente. Você pergunta: isso é determinante na sua formação? É, mas está na sequência de todo o seu percurso até então. Porque ele nasce numa família rural e a província em geral, naquela região de Viseu, é conservadora. Penso que Salazar era monárquico, embora nunca o afirme, até por receio. Ele tinha estado no seminário, saiu mas nunca deixou de ser católico. Portanto ele encontra em Coimbra um ambiente confortável, que corresponde exatamente a toda a sua educação, e vai potenciar uma pulsão naturalmente conservadora. É importante para a sua formação, mas não há nada que o mude em Coimbra, há apenas um aprofundamento.

Pergunto-me também se esse ambiente que Salazar encontra na faculdade não está ligado ao facto de Coimbra ser a única universidade do país, de se tratar de um período em que estudar era algo reservado às elites ou uns poucos melhores alunos das classes populares, como era Salazar. Se não era um ambiente conservador por ser elitista. Não havia uma questão de classe associada?
Talvez. O que me diz é verdade. Mas as pessoas do campo em geral também eram conservadoras. Acho muita graça a uma certa reverência que existe no Vimieiro em relação aos senhores, que ainda são um bocadinho o prolongamento dos senhores feudais. Não existe por parte daquela gente uma animosidade, pelo contrário existe uma certa consciência de que são os protetores. Não há antagonismo, há uma aproximação humilde mas na expectativa de uma ajuda. Curiosamente, quando Salazar vai para Coimbra estudar, o que lhe dizem-lhe: ‘A minha madrinha pode ajudar-te’. A filha do senhor da terra, que entretanto se instalara em Coimbra, pode ajudar o menino pobre que vai para a universidade. Há uma certa aliança, em posição de desigualdade.

Muitas vezes a instauração da República é apontada como uma rutura total com o passado, tal como o 28 de Maio. Mas no seu livro, apesar de enunciar a intenção de instaurar uma ditadura militar no 28 de Maio como algo original, ao mesmo tempo nota-se uma continuidade. Os conflitos são os mesmos, as mesmas fraturas entre sidonistas e republicanos, entre um norte conservador e um sul menos conservador, entre o rural e urbano. Até que ponto é que o 28 de Maio não é simplesmente a continuação disso?
Eu ia um bocadinho atrás. Você mencionou algo que diria que é um dos aspetos mais importantes do livro. Diz-se que a República é o início de um período novo, eu acho que é exatamente o oposto. A República é a continuação de um período velho. Na minha perspetiva, é a continuação da monarquia com os mesmos problemas, agravados. Porque é uma rutura muito violenta, introduz um regime muito agressivo, sobretudo quanto à Igreja Católica. Portanto, não resolve nenhum dos problemas que vinham da monarquia constitucional, há conflitos terríveis mas sem grandes mudanças a nível estrutural ou superestrutural, como diriam os marxistas. Depois a ditadura militar, como você diz, também não resolve nenhum problema. E até agrava um problema crónico do país, que é o problema financeiro. O que é que produz efetivamente a mudança? É a chegada ao poder de Salazar. Esse é que é o grande corte, uma ordem nova. Acrescentaria que, entre o regicídio e a ditadura militar, Portugal vive aquilo a que chamo de guerra civil larvar, não declarada. Se vir os acontecimentos dessa época, os conflitos, a ditadura do Pimenta de Castro, o Sidónio Pais, a noite sangrenta, são acontecimentos violentos que se prolongam pela ditadura militar e que penso que poderiam ter explodido se Salazar não tem subido ao poder nessa altura Aquelas tensões com republicanos, radicais ou não, de um lado, e conservadores do outro, refletiam-se nas próprias Forças Armadas e poderiam ter resultado, como em Espanha, numa guerra civil. Não acontece porque aparece esse homem, que tem uma tenacidade enorme, julga-se investido de uma missão providencial e fez o feito notável que é o equilíbrio das contas. Por isso, é reconhecido em todo o país como o salvador, o ‘mago das finanças’, que pode pôr calma nisto. Dá que pensar como é que um civil chega ao poder num tempo dominado por militares. Isso ainda hoje faz confusão a muita gente.

Bernardino Machado [o Presidente derrubado pelo golpe de 28 de Maio], no exílio em Paris, escreveu que a ditadura militar não é mais que um pretexto para a tomada do país pelos conservadores. Não é isso que permite a Salazar chegar ao poder, por funcionar entre o conservadorismo elitista como que se cruzou em Coimbra e com o paroquialismo rural em que cresceu? Acabando por ser a continuação do conflito anterior, simplesmente com uma vitória total de um dos lados. 
O 28 de Maio, essencialmente, não é republicano nem monárquico. Diria que nem progressista nem conservador, embora tendencialmente conservador. É sobretudo um movimento contra o Partido Democrático, que como sabe é o herdeiro do Partido Republicano Português, que faz toda a propaganda da República e sob ao poder no 5 de Outubro. É um partido que depois se divide em vários subpartidos e fica dominado por um homem com excecionais qualidades políticas, impiedoso e frio, que é Afonso Costa. 

O Lenine português, chama-lhe no seu livro. 
Exatamente. Aliás, eles são mais ou menos da mesma idade e vivem a mesma época. O Partido Democrático, pela sua omnipresença, tinha-se tornado um partido praticamente inamovível. A direita estava muito dividida, não tinha uma liderança única. Portanto instalou-se em setores republicanos e não-republicanos um ódio ao Partido Democrático e a ideia de que o país não avançava se este não fosse varrido do poder. Curiosamente, o próprio Afonso Costa na ditadura sidonista vai para Paris e não volta para Portugal. E quando volta, em 1923, é para dizer que não consegue formar Governo e volta para Paris. Ou seja, há de facto um país que está bloqueado. Cria-se uma ideia muito generalizada de que é preciso uma revolução para varrer os democráticos e o 28 de maio é essencialmente isso. É uma revolução antidemocrática no sentido de correr com o Partido Democrático. 

E antidemocrática no sentido mais amplo do termo também, diria. 
Mas não só. Porque depois no seio da ditadura há duas correntes. Uma corrente democrática, que acha que a ditadura é um pequeno interregno para voltar às velhas instituições, reformadas, eventualmente, com outros partidos, mas com o regresso do parlamentarismo. E há outra corrente que vai ganhar progressivamente terreno, que é protagonizada por Salazar, para a qual a República acabou, o parlamentarismo terminou e é preciso iniciar um tempo verdadeiramente novo. É preciso dizer que isto não é um fenómeno exclusivamente português, dá-se depois na Itália, mais tarde na Alemanha, na própria Espanha. Muito generalizadamente, na Europa há a ideia de que o liberalismo tinha chegado ao fim. Que era um tempo esgotado, que o parlamentarismo era um regime que potenciava constantes lutas e dividia o país. Que os partidos não eram emanações da nação, eram emanações de fações permanentemente em luta enfraquecendo a nação. Cria-se a ideia de que é preciso encontrar um regime que ultrapasse os bloqueamentos que o parlamentarismo revelara. Portanto, é desta segunda corrente que Salazar parte. Você diz-me que ele é um representante de certas elites? Não sei, acho difícil dizer isso. Acho que ele sobretudo era um homem inspirado pela Igreja, pelas encíclicas, sobretudo a encíclica do Papa Leão XIII, que procura responder ao marxismo e à luta de classes com uma colaboração entre as classes, a génese do corporativismo. Também é um pacifista, um homem que tem horror às guerras e revoluções, e isso vai verificar-se em toda a sua vida, até à Guerra Colonial, mas isso será muito mais tarde. É obcecado com a ordem, acha que sem isso não se constrói coisa nenhuma e portanto eu vejo mais Salazar como uma emanação do espírito católico do que como um representante desta ou aquela elite. Até porque ele quando chega ao poder assusta verdadeiramente alguma alta burguesia, porque corta a direito, em nome de um suposto interesse nacional, obcecado com as contas certas. E é esse um dos seus grandes trunfos.

Mencionou que este fenómeno não era exclusivo de Portugal. Quando lia o seu livro recordei-me de outro, de Nicos Poulantzas, que define a ditadura militar como uma manobra quase defensiva, uma reação de classes dominantes ao receio de uma tomada de poder pelos dominados. E durante a República havia um país em ebulição, com uma base social muito radicalizada à esquerda. Até que ponto é que essa ditadura militar que surge, que depois resulta no regime de Salazar, é resultado dos receios dos receios das elites? O que é que o Partido Democrático fez que pudesse preocupá-las? Houve alguma tentativa de algo semelhante a uma reforma agrária, apoios às classes baixas… Que política económica é que assustava os senhores?
Essa é uma análise muito marxista, que acho que não se aplica muito, pelo menos eu não a partilho. Fazendo uma radiografia muito telegráfica daquela época, o que é que víamos? Por um lado, a Igreja e certas elites conservadoras que se agarravam a ela. Depois tinha o Partido Democrático que ocupava o espaço central, que era, se quiser, o partido da pequena e média burguesia. E depois tinha, aí sim, muito radicalizado à esquerda, os anarquistas e os comunistas. O Partido Democrático era burguês na aceção mais correta do termo, não era o partido do povo, embora tivesse gente da arraia-miúda. Mas aquilo que se designa por proletariado estava liderado quer pelos anarquistas, que são dominantes na época, quer pelos bolcheviques que começavam a surgir. Portanto, a reação militar acho mesmo que é uma reação contra aquilo a que eles chamam de desordem. Não tem tanto a ver com uma questão de classe. Tem mais a ver com um partido que é incapaz de manter a ordem. E os militares, como sabemos, são muito ciosos da ordem, disciplina, hierarquia e pátria. Consideravam-se a única força verdadeiramente nacional, a salvação da pátria, que se ia conseguir correndo com os políticos.

Mas até hoje em dia, quando ouvimos movimentos ou partidos afirmarem-se antipolíticos, contra a “classe política”, geralmente é reflexo de tendências autoritárias ou daquilo a que agora chamamos extrema-direita. Enquanto à esquerda se ouvem mais apelos contra as classes dominantes, elites, etc. Afirmar-se contra os políticos paradoxalmente é em si mesmo um fenómeno político. Tenho mesmo grandes dúvidas quanto à sua visão do 28 de Maio como algo pela pátria, de forma vaga, e não como uma reação conservadora contra velhos adversários. 
Essa sua ideia à primeira vista está certa. Mas é algo localizado e conjuntural. Porque se olhar para outra geografia, para a União Soviética, por exemplo, que era de esquerda, existe exatamente o mesmo movimento. A favor do partido único e contra todos os outros políticos. Portanto não é qualquer coisa que tenha a ver com esquerda ou direita. Acho que tem a ver com poder forte ou fraco. Você tocou num ponto muito interessante, é uma coisa em que tenho refletido, se a democracia é mais um património da esquerda ou da direita. É a esquerda que partilha mais intrinsecamente e intensamente a ideia de democracia? Ou é a direita? E o que observamos ao longo da história é que isso depende da conjuntura. No tempo da monarquia são os republicanos que querem a democracia. Porquê? Porque são quem está na mó debaixo. Mas logo que vem a República, você vê os monárquicos a exigirem a democracia, porque agora são eles estão na mó debaixo. Você hoje ouve muito a direita a falar de liberdade. Porquê? Porque acham que em determinados países e conjunturas há um domínio ideológico, até nas instituições, um certo ar do tempo, na comunicação social, por forças mais à esquerda. Por isso eles clamam pela liberdade. A democracia e a liberdade são coisas invocadas sempre por quem está na mó de baixo. Os católicos durante a República clamam muito pela sua liberdade de atuação, porque sentem que há um poder que os oprime. A liberdade e a aversão aos políticos tem mais a ver com a conjuntura do que com esquerda ou direita, conservadores ou progressistas. 

Quando menciona que os monárquicos clamavam por democracia, no seu livro explica que era porque houvesse uma expansão do direito de voto, que não votassem apenas os proprietários, por terem mais apoio em zonas rurais e isso os beneficiaria eleitoralmente.
Sim, mas também por que eram reprimidos efetivamente. Mas sim, a República, que sempre tinha prometido o voto universal, quando chega ao poder restringe o voto, é só para homens com mais de 21 anos. Os desocupados não têm direito de voto, portanto restringe o voto àquilo que era um pouco a sua massa. Porque achavam que se o voto fosse para as mulheres, analfabetos, para o povo rural, menos tocado pelas ideias republicanas, havia o perigo do regresso à monarquia.

Contudo, olhando para o contexto português, apesar dessas oscilações, vemos um certo contínuo, de luta de progressistas contra conservadores. Entre liberais e miguelistas, que depois se transforma para republicanos contra monárquicos, que depois já é entre republicanos e apologistas de uma ditadura militar, sejam sidonistas ou estilo 28 de Maio…
Há uma coisa que é verdade, o país está mais ou menos dividido ao meio desde muito cedo. E são dois blocos que têm presenças muito diferentes na sociedade. Um é miguelista, o outro é cartista ou setembrista. Um vai ser salazarista, o outro oposição democrática. Um é republicano o outro é monárquico. Durante toda a história de Portugal temos essa oposição entre dois grandes blocos, que muitas vezes nem são homogéneos. Lembro-me, por exemplo, no tempo do Cavaco Silva, que ele consegue 50% dos votos. E é um homem que, apesar de hoje dizer que não se afirma de direita nem de esquerda, aparece como expressão da direita, claramente. Hoje temos a direita muito rarefeita, mas se formos juntar se calhar temos perto desse valor e à esquerda a mesma coisa. Temos o Partido Socialista que agora cresceu muito e outras forças, que juntos dão os outros 50%. De facto na nossa história temos esses dois grandes impulsos. Simplificando, se quiser, um mais conservador, outro mais desenvolvimentista ou progressista. Salazar, que é de quem falamos, situa-se claramente no campo conservador de direita. Podemos chamar-lhe – nunca quis chamar fascismo ao salazarismo, porque acho que tem outras características – um ‘fascismo rural’, relativamente suave, de brandos costumes. Mas muito entranhado naquilo que vinha, cá está, do tal país conservador, que vem de trás, e que Salazar consegue corporizar, liderar. E meter no bolso forças que, à partida, até teriam mais poder que ele. Isso é que é engraçado.

Olhando para esse percurso, até que ponto é que esse país que parece mais tranquilo sob controlo de Salazar não se trata apenas do resultado de um dos lados vencer e da ditadura militar correr com as lideranças todas do outro lado para Paris ou para o degredo? Pacificando o país ao destruir a toda a oposição.
Acho que isso está basicamente correto. Embora nos leve à seguinte pergunta: nessas duas metades que vemos sempre em conflito, qual era aquela que nessa época se adequava mais com o ambiente geral do país? Porque o que vemos, apesar de tudo, é que ao contrário do que acontece em praticamente todos os países da Europa, seja em Itália, na Alemanha, na Rússia, em Espanha, a nossa ditadura, a ditadura salazarista, impõe-se de uma forma relativamente tranquila. É evidente que há uma censura à imprensa, há a escola que propagandeia os valores do regime, há uma polícia política muito entranhada na população, através dos informadores. Tudo isso é verdade. Mas também é verdade que é uma ditadura que se impõe de uma forma relativamente suave. Por exemplo, durante os anos do salazarismo, morrem cinquenta militantes do Partido Comunista nas prisões, um por ano. E morrem entre 80 e cem pessoas de esquerda.

Com muitos outros torturados pelo meio. 
Sim, mas estou a falar dos que morreram na prisão. Houve torturados, sem dúvida. O meu pai e o meu irmão estiveram presos, portanto eu tenho essa história bem ciente na minha família. Mas quando comparamos com a violência em determinados países, ainda hoje, olhe para a Rússia… Por exemplo, o que se morreu aqui durante quarenta ou cinquenta anos morria-se em Itália numa noite. Há de facto uma ditadura de brandos costumes, é um termo que a esquerda contesta muito, mas historicamente é incontestável. 

Eu apontaria que as ditaduras mais eficientes são as que conseguem reprimir a oposição com o mínimo de sangue. E lá que a ditadura salazarista era eficiente era. Mas isso não implica que o seu peso sobre a sociedade não seja igualmente pernicioso. 
O salazarismo, como qualquer ditadura, é mau pelo simples facto de ser uma ditadura. Para um jornalista e e escritor como eu, um dos valores mais fortes é a liberdade. Isso é incontestável. Depois há outro plano, que é olhar para os resultados. É engraçado que Salazar ao princípio – e penso que isso está escrito no livro – olhava para o regime soviético como um regime muito eficiente. Ele diz que não há dúvida que é altamente eficiente na industrialização, na realização de certos objetivos sociais, etc. Dava o regime russo como exemplo, embora estivesse nos antípodas do que ele pensava. O salazarismo na sua primeira fase também vai ser altamente eficiente. Quer dizer, toda a Lisboa moderna que temos hoje é dessa época. É o regime que moderniza as instituições e o país. Enquanto arquiteto, eu ainda hoje penso como foi possível o Duarte Pacheco [ministro das Obras Públicas e Comunicações] num período tão curto fazer tanto. Olhamos para as realizações do Duarte Pacheco e é algo absolutamente louco. É o Hospital de Santa Maria, o Instituto Superior Técnico, o Aeroporto de Lisboa, as gares marítimas, o Instituto Nacional de Estatística, a Casa da Moeda, praticamente todos os grandes edifícios que marcam Lisboa são dessa época. E tudo isso é coroado com a Exposição do Mundo Português, em 1940, que é a cereja no topo do bolo, a glorificação do império. Salazar, que a princípio é acusado de dar pouca importância ao império, progressivamente vai usar isso como instrumento de propaganda. E a Exposição do Mundo Português é o clímax do Portugal imperial. Portanto, essa fase inicial do salazarismo, com repressão, obviamente, é uma fase de grande atividade construtiva e modernização. De uma forma até incompreensível, na medida em que o Salazar era um conservador, é estranho. E há quem diga, mas não tenho elementos para o confirmar, que quando o Duarte Pacheco morre havia alguma fricção entre esse gosto desenvolvimentista dele e o conservadorismo do Salazar. 

Ou seja, é um regime que não é totalmente homogéneo, que acomoda várias fações dentro da direita.
Há uma história que eu acho muito ilustrativa. Há ali umas pinturas do Almada Negreiros na gare marítima que o Duarte Pacheco diz que são fantásticas, extraordinárias e dá o seu aval. Mas depois quando o António Ferro [o grande propagandista do salazarismo, fascinado com o fascismo italiano] as vai ver acha aquilo horrível, assustador… Mesmo no próprio regime, nesse período desenvolvimentista há uma fricção. Nessa altura acho que Salazar tem um impacto positivo na construção de um país moderno. Depois há a II Guerra, que contribuiu muito para construir o mito salazarista, ao manter o país afastado da guerra, que é exatamente o contrário do que os republicanos fizeram, ao mandar os soldados para a carnificina da Flandres. E temos a fase seguinte, terrível, que é a guerra colonial, a partir da década de 1960. Deixe-me acrescentar que há uma ideia de que o salazarismo é antidesenvolvimentista. E de certa forma é, acho que ele estruturalmente e conceptualmente é. Mas Portugal vai crescer mais ou menos ao nível da Europa durante esse período, às vezes até um bocadinho acima. 

Pegando na parte do ‘mago das finanças’, que é o período em que se este livro se foca. Descreve que Salazar ganhou essa fama por ser aquele que não tem medo de fazer sacrifícios, creio que é essa a expressão que usa. Quando li isso, a pergunta que me ia na cabeça era: quem é que fez esses sacrifícios? Quem sofreu estes sacrifícios pelos quais Salazar ficou tão famoso? Que impactos sociais é que isso teve? Hoje em dia quando vemos uma política austeritária – que era o caso da política de Salazar, no sentido mais moderno do termo – vemos o desemprego a crescer, cortes sociais, sofrimento, muito descontentamento… Isso sucede-se com Salazar? 
É interessante que, da mesma maneira que nós vemos a constante oposição em Portugal entre progressistas e conservadores, ou esquerda e direita, também temos os que defendem os sacrifícios e os que defendem as facilidades. Ainda hoje o nosso primeiro-ministro vem acenar com facilidades e com o aumento brutal do salário médio, e os quatro dias de trabalho, por aí fora. Basicamente há uma parte do país, que geralmente se identifica com os setores mais à direita, que defende o apertar do cinto. E os setores mais à esquerda que querem exatamente o contrário, defendem uma melhor distribuição. Ora, no outro dia li uma frase do Oliveira Martins [historiador do séc. XIX] que deviam ouvir hoje muitos políticos. Que sem pesados sacrifícios nunca sairemos da cepa torta. O Salazar podia dizer isto. Há de facto uma linha de pensamento que considera que são precisos sacrifícios. É uma coisa cíclica, aparecem os dos sacrifícios, ou da austeridade, como você diz, depois vêm os da facilidade, depois vêm outra vez os da austeridade. E andamos nisto desde há séculos, nesta dança. Você pergunta, quem é que pagava? A ideia que tenho da reforma fiscal que ele faz, etc., é que pagavam todos. Ele ganha um grande respeito mesmo a nível popular porque dá ideia de um homem que corta a direito sem olhar a quem. Há muitas medidas que ele impõe que são mais dirigidas contra quem tem posses, quem tem algo de seu, como o imposto sucessório, mesmo o imposto profissional, o imposto sobre rendimentos. E de facto há um alarme nessa época. Há uma frase que o António Ferro cita. ‘Este homem põe-nos de tanga, leva-nos à miséria’. Mostra frieza, o Salazar tem uma frase horrível: ‘Intelectualmente sou um homem de gelo’. Mas isso faz-lhe ganhar mais respeito, tanto pelas classes mais populares como pela burguesia e alta burguesia. Certas declarações de empresários, muitos críticos ao salazarismo e à questão fiscal, por outro lado dizem: ‘Tudo bem, mas foi este homem que nos criou as condições de calma, paz e tranquilidade que nos permitiram fazer os nossos negócios’. Saiu-se dessa espécie de guerra civil e de revoltas permanentes, que não servia a ninguém. Repare, mesmo em relação à Igreja, que é o setor de onde ele vem, a única força em que se pode verdadeiramente apoiar, porque não tem um partido, é um homem só, ele diz aos católicos para não esperarem facilidades. E que têm de ser os primeiros a cumprir com as suas obrigações, que não vai haver favores. Há um isolamento, Salazar quando entra no Ministério das Finanças mete-se num casulo. Cada vez recebe menos pessoas, trabalha com um ou dois funcionários só. Dá-lhe distância em relação aos grupos sociais.

Nota-se no José António um certo fascínio com a figura de Salazar. Até menciona que é um livro que começou a ser escrito há 40 anos, há aqui um interesse contínuo. Quando no livro menciona o Salazar constantemente como alguém muito frugal, tímido, o elogio do sacrifício, dá a ideia que pelo menos no início ele não se queria agarrar ao poder… Quando estava a escrever, não temeu que essa descrição de Salazar, que era como ele gostava de se ver a si mesmo, como o regime o vendia, de alguma maneira servisse para essa ‘mitologização’ da figura de Salazar?
Como é que eu comecei a interessar-me pelo Salazar? Eu nasci ainda no salazarismo, ainda fui vítima da ditadura de Salazar, nos primeiros tempos em que comecei a escrever, ainda tive alguns artigos censurados. Depois vivo aqueles tempos loucos do marcelismo e depois o 25 de Abril. Aí escrevi um artigo chamado ‘Extrema-esquerda e a terceira república’, no jornal República. No dia seguinte liga o diretor da Bertrand, a dizer que leu, achou interessante e gostava que eu escrevesse um livro sobre isto. A determinada altura achei que o tema não dava para muito mais do que eu tinha escrito no artigo. Comecei a pensar de onde é que vinha esta extrema-esquerda, que raízes é que tem. E fui para trás do 25 de Abril, mergulhei no marcelismo. A determinada altura começo a pensar como é que se dá a sucessão do Marcelo Caetano, que país é que ele herda e vou ao Salazar. Vejo a transição de um país parado, congelado quase, que o Marcelo Caetano tenta atualizar mas acontece com qualquer coisa que você tira do congelador, apodrece rapidamente, desagrega-se e desemboca no 25 de Abril. É assim que chego a Salazar. E percebo que é um homem misterioso, com um mistério que ele cultiva mas é intrínseco à sua figura. É algo que eu percebo muito bem porque sinto-me um bocadinho parecido, também sou um pouco distante em relação às pessoas, não gosto das multidões nem das confusões, gosto imenso de me isolar, procuro ter um raciocínio frio em relação a determinados fenómenos, não sou uma pessoa impulsiva. Há uma identificação através de algumas características de personalidade. Esse aspeto pessoal atrai-me. Não direi fascínio, porque há muitas diferenças. Eu sou estruturalmente democrata e Salazar era estruturalmente antidemocrata. Como diretor de jornal sempre defendi uma grande descentralização, Salazar era uma pessoa obsessivamente centralizadora. Pergunta-me se não me preocupa esse interesse… Às vezes penso nisso, se a imagem desapaixonada que eu procuro dar do Salazar não terá o efeito de contribuir um bocadinho para o próprio mito. Ao desmontar certas coisas que considero erradas do antifascismo, não faz sentido pintar aquele regime de cores negras e terríveis, sem perceberem aquele outro lado que lhe tenho falado, que faz com que Salazar cavalgue o poder e tenha um impacto positivo nos primeiros anos. É um risco que acho que correm todos os historiadores que se atiram à história de uma forma desapaixonada e sem preconceitos ideológicos, ir um bocadinho às raízes e perceber pela sua cabeça as figuras, a sua época e papel na história. As conclusões a que chegam nunca são as simplificações que depois a história faz. Tento ver um Salazar mais complexo. Por um lado ditador, por outro um homem que trouxe a ordem, evitou a guerra e valorizou as instituições, algumas delas negativas, como a censura. Ele de facto tem um desdém profundo pela democracia. Dizia, curiosamente, que a democracia era um regime que não resolvia problema nenhum, mas fazia uma ressalva, que a democracia só funciona na Inglaterra e sobretudo nos Estados Unidos. Como quem diz que os latinos nunca se adaptarão à democracia, que isto será sempre o caos. 

Que conveniente.
Daí as perseguições políticas, a proibição dos partidos. E depois, essencialmente a incapacidade de resolver a Guerra Colonial. Que eu por um lado percebo. Ele recebeu essa herança dos seus antepassados, um império que glorificou, e depois não quis ser o coveiro dele. Mas meteu o país num beco em que só podia acabar da forma em que acabou. 
Perguntava-lhe isto porque, sobretudo no início do livro, quando há a descrição da subida ao poder de Salazar, daquele ministro das Finanças que ninguém conhecia, fala dele como um jovem humilde, discreto… Eu estava a ler e só me apetecia repetir o que o padre Matteo, colega de Salazar em Coimbra na ‘república dos grilos’ lhe disse: ‘A mim não me enganas, por trás dessa frieza há uma ambição insaciável. És um vulcão de ambições’. De facto acho que essa imagem do Salazar humilde serviu como fachada, para esconder um homem que fez tudo para se manter no poder durante décadas. Ninguém fica no poder tanto tempo se não for ambicioso e muito menos humilde do que quer parecer. 
É muito engraçado que faça essa pergunta. Eu acho que as duas coisas que você disse são verdade. Dada a personalidade de Salazar a vinda para Lisboa, a luta política, tudo isso o horrorizava. Ele tem cartas que parecem muito genuínas quando é eleito deputado, logo no tempo da República, que são horríveis. Ele diz que sente que já começou a mergulhar na lama, a política vai fazer de mim um infeliz. São cartas a uma amiga, uma pianista amadora de Coimbra, e você fica convencido que é genuíno. Corresponde à sua personalidade, que é ensimesmada, tímida, era um menino magrinho, frágil, que não jogava futebol e estava sempre um bocadinho à margem. Isto casa com esta pessoa, que fez o seu cursozito em Coimbra e cuja ambição é ser professor. Penso que isso é verdade. Mas, simultaneamente com isto, convivia um vulcão de ambições, um homem desejoso de poder. E acho que há um momento chave, que é quando ele é convidado para uma reforma das Finanças, a cuja comissão preside, desenha a reforma e esta é rejeitada liminarmente pelo então ministro das Finanças, Sinel de Cordes, que era um conservador assumido, monárquico, etc. Porque é que é um momento chave? Porque Salazar tinha acedido vir para Lisboa, cria diplomas que considera essenciais e aquilo tudo vai para o cesto dos papéis. Ele fica profundamente ferido com isso, por questão pessoais, porque é muito orgulhoso, por razões profissionais, porque achava que punha em causa a sua capacidade e até pelo modo como é tratado, foi escorraçado como um pobre diabo. Aí ele muda. Em plena ditadura militar ele convence-se de que tem a solução certa para o país e que se tiver uma oportunidade não a vai deixar escapar. Há um novo Salazar que nasce nessa altura, que tem um misto de vingança, convicção de que tem as ideias certas e desejo de as pôr em prática. Aí escreve uma série de artigos de jornal que significa pôr-se na praça pública e demonstra ambição. Quando começa a governar, então aí não tenho dúvidas, ele convence-se que é o homem providencial, que qualquer que venha depois dele só vai estragar o trabalho que ele fez. Mais para diante na vida, ele habitua-se a governar e já não sabe fazer outra coisa. A verdade é essa. Ele acostumou-se de tal forma ao poder que, apesar de dizer constantemente que o poder o fazia infeliz, que queria era voltar para terra, para Santa Comba Dão, tratar da sua quinta, deixou de conseguir imaginar-se fora do poder. 

Aproveito para lhe perguntar quanto a essa tal chegada do Salazar ao poder. Fá-lo numa época dominada pelos militares, que certamente não tinham grande vontade de perder a sua preponderância. 
Falo disso, no segundo volume, de facto é impressionante como um civil, que nem sequer tinha feito a tropa, consegue ir triturando sucessivamente os militares até chegar a presidente do Conselho de Ministros. Estamos na ditadura militar, 1928 a 1932. Vemos que ele vai suscitando sucessivos braços de ferro com o primeiro-ministro, e o Óscar Carmona, quando a situação chega ao limite, em desespero opta por Salazar e corre com o militar que é primeiro-ministro. Isto verifica-se com três militares seguidos: Vicente de Freitas, Ivens Ferraz e Passos e Sousa. E o último militar – isto é uma coisa que nunca foi dita – faz um acordo com Salazar no sentido de estar apenas temporariamente no poder e, antes de sair, passa-lhe o poder para as mãos. Isto explica uma coisa muito engraçada, que é que Salazar, enquanto ainda é ministro das Finanças, começa a redigir a Constituição. Ora, só fazia sentido ele fazê-lo se tivesse uma promessa de ser primeiro-ministro a seguir. Se fosse um ministro das Finanças transitório estava a fazer uma Constituição para outra pessoa. Essa escalada do poder, sempre com apoio de Carmona, é extraordinária. Ainda mais porque, quando Carmona morre, Salazar diz: ‘Acho que ele nunca gostou de mim’. Ou seja, são dois homens que não gostam um do outro, mas que se apoiam mutuamente num período crítico, porque sabem que é o outro que o pode sustentar no poder. 

Sei que o seu próximo livro será sobre o período da monarquia, até ao regicídio. O que podemos esperar? 
O novo livro nasce deste, de alguma maneira. Como percebe, os meus livros normalmente vão andando para trás. Este em princípio chamar-se-á O Homem que Mandou Matar Dom Carlos. Começa no regicídio, depois faz uma grande retrospetiva por toda a vida do Dom Carlos, desde o nascimento no Palácio da Ajuda, ao casamento com a Dona Amélia e todo o martírio que é o seu reinado, que é terrível. De facto é um homem com um destino político desgraçado, tudo lhe acontece. E depois acaba exatamente com a questão de quem foi o homem que ordenou a morte do Rei. Posso adiantar que hoje estou absolutamente convicto que foi o Afonso Costa. Como lhe chamou, um ‘Lenine à portuguesa’. O Afonso Costa primeiro prepara o assassínio do Dom Carlos através de discursos muito inflamados no Parlamento e depois participa nas reuniões em que se decide na morte de Dom Carlos. Isso está confirmado. Penso que ele pertence à Carbonária, embora nunca se tenha sabido quem era o quinto homem da Carbonária, mas estou convencido que era o Afonso Costa. E depois há muitos mais elementos, como a pistola que mata o Dom Carlos, que era propriedade do Afonso Costa.

A sério? Como se estabelece isso? 
Porque apareceu e fez-se a análise da bala e da pistola. 

E estava registada em nome do Afonso Costa?
Exatamente. Curiosamente, ele depois vai fazer discursos durante a República desculpabilizantes do ato que ele próprio tinha instigado ou ordenado. Vai reabilitar os regicidas e chega a dizer que um povo tão honrado como o português matou o seu Rei que era um tirano. 

Então espera-nos uma espécie de CSI regicídio.
Sim, mais ou menos, pode dizer-se isso, num aggiornamento da terminologia [risos].