No dia em que foram entregues as Medalhas Fields, o mais importante galardão da Matemática, foi apresentado em Lisboa o que virá a ser um prémio anual para distinguir os professores que são capazes de passar o bichinho da disciplina aos alunos, aberto a docentes do básico e do secundário. Num almoço no Grémio Literário, organizado pelas duas entidades por detrás da iniciativa – a Associação Álvaro Gonçalves e a Sociedade Portuguesa de Matemática – falou-se dos números primos que valeram uma das medalhas deste ano, de como a indústria está a ser cada vez mais atrativa para os matemáticos – o que tenderá a contribuir para agravar o problema da falta de docentes nas escolas se as carreiras não forem mais atrativas – mas também de como aumentar o gosto e os resultados na disciplina e vencer, nas palavras do antigo Presidente Ramalho Eanes, que será um dos jurados, “um fantasma que não existe”.
Não existe há muito tempo para Ramalho Eanes, que confessou ao i ainda ter tido explicações antes de entrar para a Academia Militar, mas que depressa percebeu que fazia parte do dia-a-dia, como hoje acredita que será um conhecimento central no futuro e nos debates éticos do pós-humanismo. “É indispensável”, frisa.
E não existia para Álvaro Batista Gonçalves, empresário mirandês que deixou na família, que agora cria uma associação em seu nome, o gosto pelos números. O filho Fernando Gonçalves apresentou a associação que quer pôr Miranda do Douro na vanguarda da promoção da disciplina. “Embora não tivesse muitos estudos, conseguia fazer uma conta de uma ponta à outra da mesa de cabeça”, ilustrou ao i o engenheiro, que, entusiasmado pelos netos de Álvaro Gonçalves, se compromete a fazer crescer no concelho do distrito de Bragança um projeto “sólido” de promoção da disciplina que, na altura de ver as notas, era a que “fazia brilhar” os olhos do pai. “A ideia deles foi ajudar os meninos de Miranda e honrar o nosso avô”, explicou, mostrando os planos para a implementação da associação nos próximos anos, com assessoria científica da Sociedade Portuguesa de Matemática.
O pontapé de saída é a instituição do prémio nacional para o melhor professor de Matemática a lecionar em Portugal, cuja primeira edição vai arrancar no final de setembro com a abertura das candidaturas.
Poderá candidatar-se qualquer docente do ensino básico ou secundário. Para isso, terá de apresentar um ensaio sobre as intervenções pedagógicas e impacto no ensino da disciplina e, seguindo o modelo de outros galardões lá fora, cartas de apoio à candidatura, no que pretendem que seja um projeto que envolva as comunidades locais na distinção dos melhores professores do país.
O prémio terá um valor pecuniário de 5 mil euros e uma distinção simbólica, que é também um dos objetivos do galardão, explicou João Araújo, presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, sublinhando que, na figura de cada professor galardoado, se pretenderá distinguir a “função” do professor que consegue trazer os alunos, melhores e piores, para o gosto pela disciplina, mas também os desafios e dificuldades que enfrentam para o fazer.
Num momento de escassez de professores, João Araújo alertou que atualmente estão a formar-se 200 novos professores de matemática por ano mas só estão nos mestrados integrados que dão hoje habilitação para a docência 60 professores, pelo que no futuro serão ainda menos. E, entre os bons exemplos, recordou os 200 professores que durante a pandemia se disponibilizaram para dar aulas à distância a jovens que estavam sem a disciplina de matemática na escola.
“Precisamos de escola”, defendeu o matemático, que começou a sua intervenção lembrando uma das histórias emblemáticas da disciplina. Nos anos 30, o departamento de Matemática da Universidade de Göttingen era um dos mais conceituados do mundo – ao ponto de Einstein dizer que em Princeton não conseguia trabalhar como na Alemanha porque lhe faltavam os colegas de Göttingen. Desmantelado com o saneamento de judeus levado a cabo por Adolf Hitler, nunca mais se ergueu.
“Construir uma escola é muito difícil. É muito fácil destrui-la”, disse, defendendo que em Portugal “falta escola” em muitas áreas, desde logo no desporto onde, usando conceitos da matemática, a “conjetura” de que é por o país ser pequeno que não se vai mais longe não se demonstra matematicamente. Portugal tem a mesma população da Suécia, exemplificou, mas apenas uma fração das medalhas (Suécia 503 medalhas, Portugal 28). Outro exemplo apontado pelo professor da Universidade Nova de Lisboa foi o desempenho da Universidade Stanford, com 16 mil alunos, nos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020, onde conquistaram 26 medalhas para os EUA – quase tantas como as 28 medalhas conquistadas pelos atletas portugueses nos últimos 100 anos. “Hoje nasce a Ana. Pode ser a melhor do mundo em qualquer coisa, mas Portugal não está a ser capaz de a levar para o topo”, resumiu.
João Araújo defendeu que uma aproximação dos estudantes à matemática e melhoria dos resultados é mesmo uma questão de “soberania nacional”, por ser uma área de saber necessária em questões como a inteligência artificial e cibersegurança. “Premiar é homenagear a função dos professores que o conseguem fazer”, concluiu o presidente da SPM.
O júri do prémio vai contar com Ramalho Eanes, os ex-ministros Marçal Grilo e Nuno Crato e Maria Cotez de Lobão, da Fundação Gaudium Magnum, que vão trabalhar nos próximos meses nos critérios de avaliação das candidaturas, que se pretende que tenham em conta não só o percurso pedagógico dos professores mas também o impacto nos resultados. A entrega do primeiro galardão está prevista para abril 2023.
Quanto à Associação Álvaro Gonçalves, que quer criar uma incubadora de promoção do ensino da matemática em Miranda do Douro, o objetivo passa por lançar entre este ano e o próximo “círculos de matemática e jogos matemáticos” para os estudantes do concelho, um programa de explicações e cursos de verão, campos de férias dedicados à matemática no concelho. Pretendem também iniciar formação na área da programação e querem entrar pelo campo da robótica e inteligência artificial.
Retiros de matemáticos em Portugal No futuro, explicou Fernando Gonçalves, o plano passa por alargar a acção a outras disciplinas e iniciar atividade de “venture capital”, financiamento de start-ups, no interior do país. A ideia de criar um “centro de excelência de matemática” em Miranda do Douro está também no horizonte, a partir do repto lançado pela SPM, que quer avançar em Portugal a ideia do país como destino para “retiros” para matemáticos – espaços onde investigadores de todo o mundo possam ter períodos de estudo e reflexão em torno de alguns dos problemas matemáticos em aberto, como aqueles cujas soluções valem aos seus solucionadores as medalhas Fields. Para já há dois locais “fechados” para receber os primeiros grupos ainda este ano, adiantou João Araújo, dando nota de parcerias com o Centro de Alto Rendimento do Pocinho, em Vila Nova de Foz Côa, e com o Convento da Arrábida, da Fundação Oriente.