No ecrã, uma imagem de satélite mostra uma depressão a cerca de 300 km costa de Portugal, como que um remoinho que puxa uma massa de ar do norte de África. Não tem nome – ao contrário das depressões que causam as tempestades do outono e inverno, as depressões associadas a ondas de calor ainda não são batizadas. Instalou-se ali fruto das dinâmicas da atmosfera, a que tudo se resume quando se fala de bom e mau tempo, e é a razão do calor tórrido que se vive em Portugal e que agrava esta quarta-feira e quinta-feira, com praticamente todo o país sob aviso vermelho. Estamos no Centro Operacional de Meteorologia, nos bastidores operacionais do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, junto ao Aeroporto de Lisboa, de onde saem as previsões meteorológicas e, em alturas de crise, os briefings à Proteção Civil e ao Governo e os avisos à população.
Lá fora, os termómetros marcam 38ºC e há uma névoa também de poeira, trazida para o continente pela mesma conjuntura atmosférica. Isso e alguma nebulosidade alta explicam porque é que as temperaturas ontem em Lisboa não subiram ainda mais – fatores que podem mudar em horas, o que faz com que as previsões nunca sejam 100% certas.
Recebem-nos Ilda Novo, uma das meteorologistas mais antigas da casa, desde 1979 no IPMA, e Jorge Ponte, de 32 anos, há um ano no instituto. De duas gerações diferentes, Ilda Novo com 40 anos de experiência e Jorge Ponte um dos mais novos meteorologistas, falam-nos do episódio que estamos a viver com a preocupação de que não haja alarmismos, mas de que os avisos sejam levados a sério – o que na equipa existe a leitura de que não aconteceu em junho de 2017, quando, como agora, também foi acionado o aviso vermelho no dia da tragédia de Pedrógão Grande.
Hoje o cenário parece, nesse aspeto, diferente. O primeiro alerta do IPMA sobre o episódio de calor que o país tinha frente foi feito na terça-feira da semana passada, iniciando-se reuniões com a Proteção Civil. Há que perceber, explicam-nos, que as previsões têm maior fiabilidade quando são feitas a três ou quatro dias, a partir daí os modelos a que recorrem, de maior e menor precisão, mostram trajetórias que podem ser muito diferentes.
A situação atual é um bom exemplo: até dia 15, a próxima sexta-feira, os cenários convergem na leitura de que as temperaturas vão estar especialmente elevadas, mas a partir daí, sendo o cenário mais provável uma descida, há modelações que sugerem que podem manter-se elevadas e outras que indiciam uma descida maior que traria tempo fresco, duas realidades distintas. Vai depender da evolução da depressão: deslocando-se sobre o continente, por exemplo, o efeito será uma descida da temperatura, havendo a previsão de que irá evoluir para nordeste, podendo eventualmente desfazer-se.
“A longo prazo, é muito difícil fazer uma previsão. O que dizemos é que a partir de dia 15 há uma tendência para diminuir a temperatura, mas não está descartado que possa continuar assim. Neste cenário, o dia mais quente seria esta quarta-feira, podendo quinta-feira ainda ser muito quente no interior”, explica Jorge Ponte, admitindo que o famoso “efeito da borboleta” descrito pelo meteorologista Edward Lorenz – o bater das asas de uma borboleta num local distante pode provocar um cataclismo algures – é mesmo assim quando se fala das correntes de ar e fenómenos atmosféricos. Aprende-se no curso e vê-se no dia a dia. “A atmosfera é um sistema caótico”, resume Ilda Novo.
“Estamos a viver uma situação extrema, mas um pequeno fator pode levá-la para um lado ou para o outro. É como os acontecimentos da nossa vida. Se calhar, quando recuamos 20 anos, conseguimos perceber que um pequeno pormenor na nossa vida, não ter virado naquela rua ou ter conhecido aquela pessoa, podia ter feito com que a vida tivesse sido totalmente diferente”, compara Jorge Ponte.
Já foram batidos recordes de temperatura O resultado de uma onda de calor que se prevê “significativa”, pela extensão do território afetado, intensidade e duração, só se poderá assim avaliar no fim, explicam-nos. “Temos de nos lembrar que a onda de calor de 2003 começou a 29 de julho e estendeu-se até 14 de agosto”, recorda Ilda Novo, que considera que se está a viver um evento extremo dentro do que pode ser o verão em Portugal – por vezes tórrido, por vezes ameno e por vezes fresco. Se atingirá proporções inéditas só os próximos dias o poderão dizer. Em 2003, foram 17 dias consecutivos de temperaturas muito elevadas, numa vaga que atingiu toda a Europa e foi a mais longa e mortífera de que há registos, com um excesso de 35 mil mortes na Europa, mais de 2 mil em Portugal.
No centro operacional, as previsões são ajustadas ao longo do dia e da noite e dá para perceber que já há recordes absolutos a ser batidos em algumas estações, muitos deles registados em ondas de calor nas últimas décadas, inclusive em 2003 ou, mais recentemente, no calor tórrido que se viveu no início de agosto de 2018, em que se registaram os dias com mais mortes no país alguma vez documentados em agosto, com mais de 500 óbitos no dia 5 de agosto de 2018 quando nesta altura do ano o expectável é falecerem 250 a 300 pessoas diariamente em Portugal.
Entre os recordes de calor já batidos, mostrou-nos ontem Jorge Ponte, encontrava-se a estação de Monção, que a meio da tarde desta terça-feira já tinha registado 42,7ºC, quando até aqui o recorde absoluto era de 42ºC em 1990.
Também em Viseu, pelas 14h30, a estação meteorológica tinha registado 41,6ºC, quando até o recorde absoluto era de 40,5ºC em 2016. Em Vila Real também já havia um novo máximo histórico: 40ºC registados pelas 15h20, quando o recorde anterior era de 39,6ºC, registado a 3 de agosto de 2018.
Se estes máximos podem não se ficar por aqui, é na região do Vale do Tejo e no Norte Interior que se preveem temperaturas mais elevadas nos próximos dias, sendo uma das incógnitas perceber se será superado a máxima mais alta registada até hoje no país, 47,3ºC, na Amareleja, em 2003.
Aos mostrar as cartas e os cenários, Jorge Ponte admite que as modelações para estes dias o surpreenderam. Da mesma forma que nas últimas semanas os meteorologistas britânicos se confrontaram pela primeira vez com 40ºC nas cartas, em Portugal as previsões para a zona do Vale do Tejo rebentaram num dos modelos de previsão numérica do tempo – AROME – a escala de calor, que acaba nos 46ºC, com manchas brancas a apontar para território desconhecido na zona do Vale do Tejo e Alto Alentejo. E prever 48ºC previstos para Coruche e alguns pontos à volta foi também inédito.
“Há neste episódio cartas que nos surpreendem, que nos deixam espantados, o que não quer dizer que se confirmem, mas nunca o IPMA na sua previsão automática tinha previsto 48ºC. O modelo tirou-os entretanto, mas quando o vimos ficámos de boca aberta. Neste momento o que temos de máxima são 46ºC a 47ºC para a zona de Coruche”, explica Jorge Ponte, considerando que “não é impossível” que seja mesmo batido o recorde da Amareleja de 2003, mas ontem pelo menos isso parecia pouco provável. “Neste momento temos Coruche a chegar aos 46º, como há outros sítios onde as temperaturas podem chegar a esse patamar esta quarta-feira, mas naquele dia apareciam 48ºC, como continuam a aparecer 48ºC para Pinhão, não quer dizer que isto ocorra.”
E mesmo fora dos extremos, há temperaturas que surpreendem, não sendo inéditas, como 34ºC no Cabo da Roca, que ontem chegou a estar com a temperatura mais elevada do que Lisboa, ou por exemplo 40,1ºC na estação de Praia da Rainha, em Cascais, temperaturas especialmente elevadas quando estamos a falar de zonas junto ao mar.
Alterações Climáticas? Para os meteorologistas, mais do que atribuir uma vaga de calor em concreto às alterações climáticas, o que as séries mostram é que tendem a ser mais frequentes e extremas. E nesse sentido, preocupam. “Não podemos explicar esta onda de calor com alterações climáticas. Não sabemos, se não houvesse alterações climáticas, se não poderia estar a acontecer também. Recordes sempre foram batidos. A questão é que está a acontecer este tipo de fenómenos mais frequentemente”, diz Jorge Ponte, sublinhando que há sinais importantes a ter em conta: 90% dos recordes de temperatura têm sido batidos em relação a calor e não ao frio. Por outro lado, o défice de precipitação acentua-se, com a chuva mais concentrada.
“Há zonas no Algarve onde não cai uma pinga de água durante seis meses e chove intensamente num curto período, água que os terrenos não têm capacidade de absorver”. Se são novos padrões, que parecem apontar para um “aprisionamento” de situações instáveis, Ilda Novo concorda, sublinhando que tudo isto tem de ser lido numa grande escala de tempo e não em cada evento. Certo é que exigirá uma adaptação crescente, pelo impacto na saúde humana, na agricultura e nos animais, diz.
No imediato, uma preocupação é não banalizar os alertas, dizem. Jorge Ponte responde à ideia de que o IPMA é mais conservador, por exemplo, do que páginas de divulgação meteorológica, que publicam avisos com mais antecedência: “Não desvalorizo o trabalho dos meteorologistas amadores, mas nós temos outra responsabilidade, portanto temos de ter mais certeza e esperar mais pelo momento certo. Um aviso vermelho implica a mobilização de muitos meios e uma gestão que tem impactos em várias áreas, pelo que tem de seguir critérios”. Foi o que levou a que só ontem o aviso vermelho fosse alargado a mais distritos, cobrindo hoje praticamente todo o território. Como é que se informam os decisores perante a incerteza? “Temos de dizer os cenários mais prováveis e ser hábeis na comunicação. Comunicar essa incerteza é uma das partes desafiantes, que é o que muitas vezes as pessoas não compreendem”, diz. Para Ilda Novo, esse é um trabalho que se vai consolidando, também depois dos incêndios de Pedrógão Grande.
“Somos poucos” No dia a dia e para lá de momentos de crise, o que também se sente nesta casa do tempo, responsável pelas previsões do mar e da atmosfera, é que faltam recursos, mesmo que hoje a tecnologia esteja muito mais avançada do que quando as cartas eram em papel, as informações chegavam por uma linha especial e nem havia computadores, o cenário que Ilda Novo encontrou em 1979.
Hoje está muito à distância de um clique, mas faltam pessoas. “Somos um país pequeno mas temos uma área muito vasta de céu e de mar, somos um dos maiores países nesse aspeto, com uma das maiores áreas marítimas, e depois não conseguimos lidar com esta imensidão. Somos poucos e com poucos recursos económicos. Portugal e o IPMA ainda mais, porque embora tenhamos uma importância estratégica, não tem havido esse investimento e essa prioridade”, lamenta a meteorologista veterana, que trabalha na ligação do IPMA com a Proteção Civil, lembrando que em 2019 entraram novos meteorologistas mas há 13 anos que não abriam concursos.
“Já tínhamos dificuldades em 2009 e agudizaram-se”, diz Ilda Novo, sublinhando a necessidade de apostar os quadros da administração pública. “Com os recursos que temos, fazemos o melhor”, diz Jorge Ponte. O trabalho chama. Enquanto está de turno, uma outra colega trata das informações relacionadas com o estado do mar. São 11 elementos na equipa do centro operacional, que se vão revezando, 24 horas por dia, todos os dias do ano, faça bom ou mau tempo.