Aos 39 anos já soma 34 de profissão, mas mantém um ar cândido de quem está bem com a vida e por quem os anos parece que não passam. Entrou na primeira longa metragem aos cinco anos, cresceu no meio de atores e não sabe se brincou o suficiente. Aos 20 anos criou uma produtora, tendo produzido várias peças de teatro. A vida acabaria por a levar a Macau, onde abriu uma mercearia portuguesa, com os produtos típicos nacionais. O divórcio e o fim da loja trouxeram-na de regresso a Portugal, onde agora se estreia na realização de uma curta-metragem, exibida ontem e hoje no festival internacional Curtas de Vila do Conde. O argumento que a empurrou para a realização foi a carta, de 14 páginas, que o pai escreveu e lhe deixou antes de morrer. E em que lhe pedia para seguir todos os passos: desde a cerimónia fúnebre aos negócios.
É uma espécie de menina precoce da vida artística.
Sou. E da vida no geral. Fiz tudo muito cedo. Houve muita coisa que não foi feita porque saltei etapas.
As pessoas sabem que é filha de duas pessoas ligadas ao meio.
O meu pai era produtor e a minha mãe trabalhava em várias áreas mas principalmente na produção.
E depois há a célebre história de, com cinco anos, entrar numa longa-metragem.
Fico sempre um bocado atrapalhada quando dizem isso porque depois remetem sempre…
Não é por aí. O que perdeu por ter começado muito cedo?
Acho que o momento mais flagrante para mim é a adolescência, porque é a idade das descobertas, dos disparates, das primeiras experiências… Como na altura já estava a gravar os Jornalistas, por exemplo, para a SIC, como já estava a fazer séries, novelas…
Com que idade?
13, 14 anos. Então há ali um período da adolescência em que as tardes livres não eram passadas no café a beber bicas e a fumar cigarros às escondidas. Já ia para os estúdios gravar. E a responsabilidade que nos é incutida quando temos 13 anos, de saber o texto, de chegar a horas, de estar em silêncio, do que é uma hierarquia no trabalho, isso afastou-me de uma adolescência inconsequente que não cheguei a viver, não cheguei a ser. E, enquanto criança, lembro-me de ter sido muito feliz mas não sei se brinquei o suficiente. Agora, quando vejo os meus filhos a crescer e olho para eles, e começo a ver o Martim, que vai fazer 14, excitado por estar com os amigos, e das primeiras raparigas, primeiras saídas… penso: ‘Onde é que eu já estava com esta idade?’. Mas acho que ganhei outras coisas, vivi outras coisas. É como o período da minha vida em que vivi em Macau. Há coisas que se perdem na vida. Mas perde-se de um lado e ganha-se do outro.
Hoje em dia pode ser considerado trabalho infantil…
Sim. De certeza. Se recuássemos… Hoje em dia é impossível.
Mas há crianças nos filmes.
Sim, mas é controlado o número de horas que passam no set, não podem faltar mais do que x horas à escola. Mas também havia outra liberdade, na verdade.
E estava no set quantas horas? Nessa longa-metragem, por exemplo.
Nessa estava sempre porque a minha mãe trabalhava no filme e aquilo calhou nas férias de verão, não fazia outra coisa se não lá estar. E lembro-me que eram muitas horas mas eu vivia fascinada com aquilo. Passava horas a vê-los trabalhar.
Tinha aulas normais?
Sim. Por exemplo, não estive sempre a trabalhar. Mas, na adolescência, fiz algumas coisas. Umas vezes faltava às aulas e outras vezes era nas tardes livres que ia para ali gravar. Se calhar não tinha tanto tempo de estudo em casa ou perdia uma matéria aqui ou ali. Depois andava sempre a copiar os apontamentos das amigas. Havia sempre amigas com resumos ótimos.
Sempre se habituou a ouvir ‘lá vem a famosa’.
Tenho amigas que são daquelas que já são de há muitos anos que lhes era um bocado indiferente se eu fazia ou não televisão. A única coisa boa é que ganhava dinheiro ao final do mês e então convidava todas para ir jantar fora. E pagava e oferecia. Era a coisa que mais prazer me dava poder proporcionar aos outros coisas boas. E momentos divertidos. A coisa de ser popular ou famosa, conhecida, há sempre uma certa coisa de fascínio ou deslumbramento que aos olhos dos outros e a quem está nesse papel, pode ser muito enganador. É um momento, são sopros.
Se tivesse que fazer o filme da sua vida, que imagens punha como o melhor e o pior de ter sido precoce?
Sentar-me sempre de costas para a sala dos restaurantes porque me incomodava que as pessoas olhassem para mim quando estava a comer. Na altura gostava muito de ir a centros comerciais ver montras – outros tempos, outras idades – e lembro-me que não era possível, não o fazia, não dava.
Porquê?
Porque era abordada e nem sempre estava bem. Ou porque estava a atravessar um desgosto de amor, ou porque me tinha aborrecido com a minha mãe, ou porque tinha tido uma negativa. Nem sempre estamos bem dispostos e a imagem de uma pessoa que está bem e que está disponível para fazer uma fotografia, dar um autógrafo, essa disponibilidade foi uma coisa a que me habituei mais tarde mas na altura incomodava-me, era muito cansativo, como se estivesse a viver uma segunda Margarida. Como se não desligasse o botão. E a solidão, talvez. Sobretudo enquanto não aprendi a gerir estes momentos. Há momentos de grande euforia, de adrenalina, de acabar um espetáculo de teatro, ou uma rodagem, ou um filme, de nos envolvermos com a equipa, de aquelas serem as pessoas mais importantes da vida, que achamos que são para a vida toda. E, de repente, no dia seguinte, acordas sozinha porque o projeto acabou e não estão lá essas pessoas. Essa solidão… Lembro-me de chegar à sexta-feira à noite e o meu telemóvel não tocar, as minhas amigas já não me ligavam porque como estava sempre ocupada ou a fazer coisas, já não me ligavam. A solidão foi uma coisa difícil de gerir. E depois comecei a reduzir as minhas amizades, os meus relacionamentos e o meu tempo. Para mim era muito importante a aprovação, era muito importante fazer, gostava muito de trabalhar e de trabalhar muito. Hoje gosto de trabalhar pouco, bem, em bons projetos mas já não tenho essa pressa e ansiedade. Essa provação, ansiedade, esses momentos, essas imagens mais sozinha. Mesmo os primeiros namorados, aquilo assustava o facto de eu ser uma mulher conhecida. Aprendi muito cedo a proteger-me das pessoas com quem me relacionava.
E coisas boas.
Acho hoje e sei que era o meu sentimento em miúda, de me sentir uma privilegiada de poder estar ali. Passava horas a assistir aos ensaios. Passava horas a assistir a rodagens de filmes, de curtas, peças de teatro. Achava-me uma privilegiada poder assistir àquilo porque achava fascinante. Cresci no meio de adultos e eles tratavam-me como uma deles, vinha no pacote. Ganhei a minha independência muito cedo, fui viver sozinha com 18 anos, essa emancipação, essa independência, esse espaço que encontrei na minha vida foi bom. E coisas boas acho que foi isso. Lembro-me de ir de férias com os meus avós para Quarteira, também tive aquele clássico da lancheira e das sandes de salpicão na praia. Lembro-me muito de brincar sozinha. De dançar e de cantar sozinha. Lembro-me de querer fazer projetos. Não era necessariamente produzir, realizar ou representar mas era fazer projetos, ter ideias, desenvolver ideias. E de brincar aos adultos. Gostava de brincar aos crescidos. Acho que a minha infância e adolescência foram marcadas por esta ideia de ser crescida. Hoje, que sou, acho muito aborrecido ser crescido. Pagar contas e essas coisas dos IMI, IRC, IRS e essas coisas todas que a vida nos obriga a ter que lidar. Mas na altura queria muito ser crescida e achava que essa emancipação vinha com a idade.
Em vez de querer gozar o sucesso, aos 20 anos criou uma produtora. Porquê?
Porque veio-me parar às mãos o texto das Confissões de Adolescente, que era uma peça de grande sucesso no Brasil, esteve 10 anos a rodar e em cartaz e na altura ainda tinha aquela pressa de fazer coisas. E pensei que era uma oportunidade para poder fazer um espetáculo. Ainda estava a terminar o liceu, na altura, já estava a fazer a Ana e os 7, já tinha feito o Milagre Segundo Salomé com o Mário Barroso. Já tinha feito algumas coisas mas o que estava a fazer não era suficiente. Nunca foi suficiente. E então achei que se criasse uma produtora, podia criar os meus próprios projetos e conseguir fazer teatro e ir de encontro aos atores e encenadores com quem queria trabalhar. E tinha dinheiro, na altura, das novelas. Também tinha feito a Fúria de Viver, também foi uma novela com algum sucesso com o João Perry, São José Lapa, Rita Loureiro… E então investi na produtora e fui chamar o Domingos Oliveira que é o encenador do espetáculo. O pai das Confissões de Adolescente no Brasil, que faleceu há dois, três anos, e fui bater-lhe à porta no Rio de Janeiro e perguntei se ele não queria vir a Portugal encenar o espetáculo e assim foi.
Além de produtora, entrava nas peças.
Entrava sim, como atriz.
O que é ter uma produtora?
Em vez de comprar uma casa, resolvi agarrar no dinheiro que tinha de parte e contratar um encenador, pagar as atrizes, a cenografia do espetáculo, figurinos e essas coisas e montar um espetáculo. Na altura montei uma produtora com a minha mãe porque a minha mãe vinha da produção. E, com esse dinheiro, investi no espetáculo, paguei às pessoas e fui à procura de financiamentos privados. Na altura, como já fazia novelas e as minhas colegas que fui chamar na altura, que são minhas amigas até hoje. Inês Castel-Branco, Vera Kolodzig, Mariana Norton, Dina Félix da Costa, Joana Solnado… Lembro-me que na altura foi a Yorn, foi a Twix… E para cada montagem fui buscar um patrocinador que ajudou à montagem financeira do espetáculo e depois requer contactar as câmara municipais, enviar fax com orçamento do espetáculo, gerir as carrinhas de manutenção para ir para Vila Real, Ovar, Évora, para onde fosse. E lá andávamos sempre com as tralhas às costas. Fizemos muita estrada, muitos espetáculos. Só que uma produtora aberta tem um custo porque depois há contabilista, uma renda, computadores. Percebi rapidamente que se parasse de produzir, se tivesse um espetáculo que não estivesse em cartaz e não estivesse a fazer dinheiro, aquilo começava a entrar num buraco. A certa altura já estava com 25 anos e percebi que se calhar parava de pagar para trabalhar e antes viajava, comprava uma casa, educava um filho… Essa escolha que tinha feito tinha afunilado, se calhar, um bocado o meu percurso porque pensei que se Maomé não vem à montanha vai a montanha a Maomé e que o facto de eu estar a produzir e a fazer teatro iria trazer ou capitalizar o meu trabalho em convites para trabalhar com. Não vou mencionar nomes para não ferir suscetibilidades mas com outros encenadores da praça. Depois percebi que não. Que ainda por cima isto era visto como teatro comercial e que o preconceito ainda muito presente comprometia o teatro dito mais sério, ‘intelectual’. Percebi que isso estava a afunilar o meu percurso e a fechar portas para conseguir trabalhar noutros lugares. O facto de fazer televisão paralelamente – porque precisava de fazer televisão para pagar estes espetáculos – não era bem visto porque os realizadores também não queriam trabalhar com as atrizes que eram cara da novela de prime time da TVI ou da SIC. E paro de produzir teatro, de pagar para trabalhar e entretanto também coincide com o boom da televisão e da popularidade. Acho que o auge foi o Mundo Meu. Acho que foi o momento mais hardcore de exposição pública. Foi na altura que apareceram os papparazzi. Foi uma maluqueira. Hoje, quando penso nisso, parece que é um tempo que não era real. Mas passado esse tempo todo, e depois já tinha feito a boa, a má, a rica e a pobre, isso tudo resultou um bocado num esgotamento meu. Fiquei um bocadinho desolada, dececionada, ou esgotada. Acho que estiquei um pouco a corda.
Qual foi a sensação de passar o cheque de ordenado para as suas amigas?
Isso deu asneira, claro. Zangámo-nos todas umas com as outras [risos]. Não por causa de dinheiros mas porque foi muito difícil gerir a relação patroa. Éramos amigas, depois éramos colegas. Entre os 17 e os 20 e poucos, éramos todas miúdas, todas a começar os seus percursos profissionais. Depois umas não podiam, depois umas substituíam as outras..
E sabiam os ordenados umas das outras?
Não, isso ganhávamos todas à bilheteira. Todas o mesmo. É ganhávamos muito bem porque era um espetáculo que vendia muitos bilhetes.
Fala de um aspeto engraçado. No que é comercial e não é. Joga bem nas duas bandeiras, o que acha dessa guerra?
Acho que é só escusada. Há espaço e lugar para todos. Isto é uma coisa que é muitas vezes dita mas que não é colocada em prática.
Não é estúpido as pessoas ficarem chateadas com o sucesso? O Almodôvar é comercial?
Verdade. Mas isso se calhar tem a ver com a nossa identidade, com o caráter português, com uma pequenez do próprio país. Mas não acho que só tenha a ver com o sucesso. De uma maneira geral, assistimos a esse olhar reprovador, mesquinho, pequenino ou invejoso por parte de pequenos espaços da vida. Não têm que ser grandes sucessos. E é só tolo por parte de alguém pensar que uma miúda de 19 anos está a fazer um primeiro sucesso. E os sucessos de bilheteira são escassos e raros. Acredito piamente que há lugar para todos porque acredito na pluralidade. Este tema, mesmo de fazer novelas ou teatro e das coisas serem comerciais ou não serem comerciais, acho que hoje em dia está um pouco ultrapassado. Continua presente na sociedade mas acho que já é aceite que os atores que fazem televisão possam também fazer projetos ditos nobres.
Depois dessa fase desiste disto tudo…
Sim.
Onde ficou a escola?
Acabei o 12.º ano e depois estava muito entusiasmada a trabalhar e pensei que concorria no próximo ano ao Conservatório. E fui saltando porque estava sempre a fazer coisas. Tenho muita pena de não ter concorrido ao conservatório, mas fui fazendo formações paralelamente. Mas tenho pena de não ter tido a minha turma. Hoje tenho outras na vida que gosto muito. Mas entretanto acabei o 12.º ano, continuei a trabalhar e depois, para aí aos 25 anos, comecei a ficar um pouco saturada. Já tinha contrato de exclusividade na altura com a TVI, era bem paga, mas senti um pouco que já tinha esgotado a fórmula, o que era um bocadinho não só enganar os outros como a mim própria. Estava esgotada, já não sabia mais reinventar-me. Como não estava a conseguir, aos meus olhos, e trabalhei com o João Botelho pelo caminho, com o Mário Barroso pelo caminho, é verdade que fui fazendo coisas mas como tinha uma grande ansiedade de trabalhar com todos… Não me bastava trabalhar com um, tinha que trabalhar com todos. É como em teatro, tinha feito Romeu e Julieta na Cornucópia assinada pelo Pires mas também não chegava, queria trabalhar com todos. E esta ansiedade, este lugar, entrei um bocado em espiral e quis outros caminhos. E depois coincidiu com um momento pessoal importante que estava a viver. Tinha acabado de casar, tinha tido o meu primeiro filho, a caminho do segundo e de repente achei mais seguro um outro caminho e romper com as amarras e com as convenções e com aquele momento artístico que vivia e fui para Macau abrir uma mercearia e vender sardinhas. As minhas amigas acharam que eu era maluca.
Foi para Macau abrir uma mercearia portuguesa onde vendia sardinhas.
Não acordei um dia com esta ideia. Pensava que não estava a fazer o caminho que gostaria de estar a fazer e pensei ‘já que é para andar aqui a virar frangos, vou virá-los como deve ser’. E pensei abrir uma churrasqueira primeiro. O primeiro modelo de negócio que comecei a estudar na altura era uma churrasqueira. E, depois, cheguei à conclusão que aquilo com os desperdícios e o abate e o senhor da brasa, não me ia entender com os frangos e desisti dessa ideia. Ser produtora não era solução, então tinha que ter um negócio paralelo que me permitisse viver para poder depois fazer outros projetos que só trabalhasse de quando em quando e pudesse dar de comer aos miúdos. Comecei a estudar esta ideia, na altura estava casada ainda e então, numa viagem que fizemos à Ásia, fomos parar a Macau e chegámos à conclusão que não havia nenhuma mercearia portuguesa em Macau e então pensámos que era o negócio mais indicado. E na altura achei que faria todo o sentido atravessar o mundo para ter um negócio paralelo. Fazia sentido viajar, ter tempo para parar, para ler, para escrever, para ver filmes, para ir viver outras realidades, para fugir um pouco do país. O país estava um pouco chato na altura. Tínhamos perdido o Ministério da Cultura que passou a secretaria de Estado, estávamos em plena crise de 2008/2009 que depois culminou em 2011 em grande ‘catástrofe’. Estive um ano a preparar essa loja, a preparar logótipo, a preparar os fornecedores, fiz uma viagem por Portugal incrível, conheci Portugal de Norte a Sul – e acho que essa foi a melhor parte do negócio – de Trás-os-Montes ao Algarve, viajei, recorri a todas as capelinhas para encontrar os fornecedores. Ali em Barcelos as zonas dos artesãos, as cestarias de Trás-os-Montes, as tapeçarias alentejanas, o doce de figo ou de laranja no Algarve, no Minho os bordados, as filigranas em Viana. Andei a correr o país todo à procura dos fornecedores. E foi uma viagem engraçada em família e que resultou depois num projeto em Macau. Durante esse ano fechei os espetáculos e os projetos que ainda tinha pendentes. Fui para Macau abrir a mercearia portuguesa.
Ia lá e vinha cá.
Exatamente. Tinha a ideia que ia andar aqui para trás e para a frente. Primeiro, foi um ano em que os subsídios de cinema ficaram congelados, ninguém filmava. O Ivo tinha as Cartas da Guerra penduradas. Os subsídios em teatro foram cortados em 30%, começou tudo a fazer monólogos e a televisão também tinha cortado. Na verdade, em três anos, não tive grandes oportunidades profissionais que tivessem surgido depois desta ideia de Macau e da distância e de ter sido mãe. Tudo isso me afastou do mercado de trabalho e acho que foi a melhor coisa que me aconteceu.
Não acha que as pessoas pensaram que enlouqueceu de vez?
Acho que sim, acho que houve muitas que pensaram que eu tinha desistido. Mas, na verdade, na minha cabeça, eu tinha desistido. Acho que o facto de ter sido reduzida à minha insignificância num território onde ninguém me conhecia, onde eu não falava a língua… cresci sempre a ser conhecida e, pela primeira vez, voltei a ter a experiência do que era não ser conhecida, não ser abordada, não ser famosa.
Voltou a ser pessoa.
Sim, voltei a ser pessoa. Mas foi bom. Houve um período duro financeiro e pessoal. Solitário. Houve um grande caminho. Sou melhor pessoa, mulher, mãe e filha porque passei esse caminho.
Quem eram os seus clientes?
Maioritariamente estrangeiros. Os portugueses quando chegavam, queriam sempre alguma coisa que eu não tinha. ‘Tem atum?’, ‘Tenho’. ‘Mas eu queria queijo’. Isso não tinha. Os portugueses queriam sempre o que não havia. Tive bons clientes portugueses mas poucos. Maioritariamente clientes de Hong Kong, muitos japoneses, de Singapura alguns e de Taiwan vários. E depois alguns chineses.
Era mais empresária ou o Ivo?
Era eu.
A sua vida era tratar disso. Dava-se com quem lá?
Os primeiros anos foram difíceis, estive um pouco sozinha. Foram um bocadinho solitários. E trabalhava muitas horas atrás do balcão. E não tinha muitos amigos. Também tinha acabado de ser mãe.
Tinha empregados?
Na loja se eu tivesse empregados, iria reduzir a minha margem de lucro e já que quis ter o negócio, era melhor que lá estivesse eu e não outra pessoa. E depois porque qualquer lojista há de concordar comigo, quando nós estamos na loja sabemos vender melhor do que ninguém. E depois, como sempre gostei de interpretar personagens, vestia o avental e era outra pessoa. E, sim, contava histórias, muitas delas eram inventadas na minha cabeça, tentando não fugir muito à realidade. Sempre gostei de contar histórias e sempre gostei de ouvir histórias. E as pessoas que chegavam também tinham histórias para contar, ouvi de tudo e mais alguma coisa.
Até que se farta.
Até que me farto. Lembro-me de entrar um dia na loja, olhar para as prateleiras e começar a pensar, a fazer contas. Porque se vive com contas na cabeça. Era eu que abria a loja ao meio dia, fechava depois para aí às 19h. Os miúdos entretanto já estavam na escola, tinham babysitter em casa. Esta coisa de abrir loja, fechar loja, gerir… Depois tinha, claro, algum staff, que trabalhava à hora. A coisa mais difícil é a gestão dos recursos humanos e eu não tenho muito jeito para dar ordens. Tenho muito pudor, não tenho muito jeito. Nem consigo bem chamar empregados, são colaboradores. Entretanto começo a entrar na mercearia e a ficar um bocado deprimida. Talvez por não representar. Ainda vim a Portugal fazer um espetáculo do Lorca, por acaso com o Pires, no São Luís mas estive cá exatamente um mês e meio.
As crianças ficaram para trás?
Vieram cá ter comigo depois, com o pai. Durante esses três anos foi o único projeto que fiz em Portugal, aproveitámos e fizemos cá férias. Trabalhava muito para poder depois também ter alguém que me substituísse em loja para depois poder ir à Tailândia, Malásia, Vietname… claro que era uma lógica de mochila às costas em low budget mas que na Ásia é possível fazer viagens incríveis assim. E com os miúdos. Acho que foi uma experiência de vida também para eles muito diferente. Inscrevi-me na faculdade na tirar ciências políticas, na UAb. É uma universidade online. Inscrevi-me para tirar ciências políticas, estava muito inquieta com a vida no geral, queria estudar. Entro na faculdade a achar que ia mudar a minha vida outra vez.
Depois veio fazer vários trabalhos a Portugal e fecha o capítulo Macau.
Também naturalmente, com o divórcio os negócios deixaram de fazer sentido, porque havia um lado familiar que empoderava este projeto ou que tornavam viável e fazível e que davam sentido este projeto. Vendemos a Mercearia Portuguesa, entretanto também vendi a minha quota da Futura Clássica que era um outro projeto que tinha com mais três sócios. Entretanto, termino as parcerias que tinha. Andei aí a tentar saber qual era o projeto protesto e, nessa altura, o Rui Vilhena chama-me para fazer o projeto da Corda Bamba e o Edgar Medina chama-me para fazer a Causa Própria que depois entre adiamentos e covids acabamos por filmar mais tarde e que estreou este ano na RTP. Entretanto reestruturei a minha vida toda.
Como se preparou para o papel de juíza e de uma dona de casa de alterne?
A casa de alterne coincidiu com um período da minha vida – tenho dores muito agudas na cervical desde os tempos que pratiquei ginástica de competição – e lembro-me que começava a gravar na segunda-feira e no sábado de ligar à Patrícia Cerqueira, porque estava há quase dois meses praticamente de cama e de lhe dizer que não conseguia porque estava com uma dor profunda. Acordava às 3h/4h da manhã e tinha que me enfiar num banho de imersão, de banhos quentes nas costas, fui ao homeopata, ao massagista, fui a todas as técnicas e mais algumas mais e tentei despedir-me do projeto antes de ele começar. Ela disse-me porque é que ‘Vera não está em dor’, ou seja, porque é que não traz isso para a personagem? Disse que só conseguia andar muito direita e que não aguentava esticões. Tentei convencê-la de várias formas, mas ela achou que isso podia servir a personagem e, na verdade, acho que a nossa bagagem de vida, e que não tem só a ver com a maturidade, acrescenta isso às nossas personagens. Não que tenha necessariamente de ser mãe para interpretar uma boa mãe, mas o facto de ser mãe traz uma bagagem. Seja o que for o que tenhamos vivido – bom ou mau – isso traz uma bagagem para as personagens que interpretamos, quer queiramos, quer não.
Chegou a ir casas de alterne?
Antes disto tínhamos feito uma preparação, tínhamos tido tête-à-tête com algumas acompanhantes de luxo, tinha visto algumas referências a alguns filmes que, pelo menos, tivesse algum ar de glamour. Li o primeiro episódio todo, a sinopse das personagens todas e comecei à procura do que essa mulher podia simbolizar, representar, o que é podia ser uma mulher no meio dos homens e o que é que é uma referência de uma mulher que se afirma ou que bate o pé num mundo de homens.
Inspirou-se em atrizes?
Em pessoas reais. Mas queres que diga o nome?
Pode dizer….
Depois posso sofrer retaliações. Têm um certo ar piroso, meio brejeiras mas que, ao mesmo tempo, há um lado que me fascina na forma de falar, de colocar a voz, de andar, de mexer nas mãos e então de procurar o que é que move uma mulher a coordenar uma casa de alterne. Como é que uma mulher se coloca nessa lugar e de saber ao que vão qualquer uma daquelas acompanhantes de luxo? Por que não protegê-las e defendê-las? De repente percebi que estava num conflito moral comigo própria, porque estava a ser moralista perante a personagem e eu que sempre me quis colocar atrás das personagens e deixá-las que elas existissem por si só e não tenho que ser moralista sobre o juízo de valor que estou a fazer sobre essa mulher e que a forma de as proteger se calhar é esta.
Quando foi ao Elefante Branco alguma vez alguém a assediou?
Não, não. Até porque fomos levadas para uma sala fechada com elas. Nunca fui lá como voyeur. Se calhar por algum pudor da minha parte nunca fui.
Não é estranho ir interpretar uma personagem e nunca ter entrado numa casa para perceber?
Também para interpretar uma rapariga a ser violada não precisei de ter sido violada na minha vida. E não ia interpretar uma acompanhante de luxo, era apenas a patroa delas. Mas há formação que é partilhada connosco, à qual tive acesso e depois um bocado aquilo que ficcionei. Em relação à Causa Própria queria fazer uma mulher humana.
Como se preparou?
Este dilema moral entre o certo e o errado, o que é a Justiça em si? E não estou a falar da Justiça de um caso de tribunal. Estou a falar do que é justo, do que é correto. Acho que o processo que vivi pessoalmente dos lutos vários nos últimos três anos – ainda bem que este projeto se atrasou porque acho que fiz melhor hoje do que teria feito há três anos – e esse lado solitário desta mulher, nesta luta da justiça e da seriedade e da defesa dos filhos perante os outros e perante a lei. Tive muito tempo para pensar sobre ela. Às vezes, a trabalhar na personagem passo muito tempo a pensar só neles.
E passou muito tempo no Campus de Justiça?
Passei. Aí foi ótimo, foi incrível. Conheci uma juíza maravilhosa que me ajudou imenso – não posso mesmo partilhar o nome, por uma questão de confidencialidade – mas era um power, ao ponto de pensar que, se fosse alguma vez juíza na minha vida gostava de ser como ela. Mas acompanhei vários casos e, acima de tudo, ajudou a desmistificar um bocado o que era o ambiente em tribunal, ajudou-me a perceber o que era o modus operandi dentro de um tribunal. Claro que cada juiz é um juiz e cada caso é um caso e vi e vivi coisas diferentes. Também tive um advogado que me acompanhou e os guiões passaram por procuradores e juízes, isto é, houve a opinião de vários lados. E depois o Rui Cardoso Martins – que assina a Causa Própria, juntamente com Edgar Mediana – esteve anos e anos a acompanhar casos que nunca mais acabam. Acho que o lado mais bonito ou interessante que esta profissão tem é que quando nos confrontamos com estes dilemas morais e com estas questões que são maiores que nós: o que é a justiça, esta questão de alterne, da noite, da prostituição, da legalização ou não da prostituição. Todas estas questões que estão em cima da mesa de quando em quando, mas que nunca nos perdemos a pensar sobre elas e que, às vezes, os personagens nos trazem para essas discussões.
Agora está em vésperas de estrear a Sua primeira realização…
É verdade.
Nunca quis apostar na encenação e como é que se atira de cabeça para a realização?
Porque a encenação não sei porquê, se calhar porque cresci mais próxima do teatro sempre achei que não estava preparada para encenar porque era demasiado. Vi vários espetáculos a serem construídos de raiz e achei que nunca estava preparada para encenar, ao contrário da realização, que já me tinham passado duas ou três ideias pela cabeça. Esta surgiu-me naturalmente, não sei se é um ato de coragem, se é um momento pessoal e profissional que atravesso. Não sei como é que se dá a decisão final, sei que quando recebi esta carta que me foi deixada para ler, posteriormente à morte do meu pai, eram 14 páginas e entre ter lido a carta e ter pensado que a ia transformar numa curta-metragem não sei se passaram horas ou se foi uma questão de dias. Bem, horas não foram porque era demasiado prematuro, mas foi uma questão de dias até lá chegar. Depois tive dois anos a pensar na ideia, mas curiosamente – curiosamente não, mas estes acasos da vida – faz três anos que o meu pai morreu, no dia em que o filme está a passar em Vila do Conde.
Vai ser em que dia?
15 de julho, ele morreu a 16. Passa a uma sessão a 15 e outra a 16. Faz três anos que li pela primeira vez esta carta.
Só leu essa carta depois de ele morrer?
Ele só me perguntou se estava no computador o documento da vida. Mas pediu ‘não abras, não abras’, não é para agora. E tu percebes ‘ok, isto é para abrir mais tarde’. E houve um dia em que me atrevi a abrir o documento e li a primeira fase ‘ah! Já percebi’. Fechei o documento e só voltei a ler depois. E depois é um passo a passo, é uma espécie de day-after. E agora minha filha chegámos aqui. E era com as coordenadas, indicações todas precisas de como era o funeral, servir um catering para aproximadamente 200 pessoas com croquetes e vinho branco, com missa ou sem missa como eu entendesse, a cremação assim e assado, tentou deixar o funeral pago. Então entre as diretrizes todas em relação ao ato do funeral e com tudo em relação à vida: o cartão do ACP, o cartão da FNAC, da Bertrand, os cartões multibanco, a password das Finanças. E um bocadinho sobre a vida dele, um bocadinho sobre a doença e o processo da doença, um bocadinho sobre mim – o que representava, o que significava para a vida dele.
Isso nas 14 páginas?
Tudo nas 14 páginas, mas depois há coisas que são mais divertidas do que outras. Ele foi produtor de cinema, passaram-lhe muitos guiões pelas mãos, ele escreve como se fosse um argumento de um filme: com princípio, meio e fim, com passo a passo, com uma discrição pormenorizada de tudo. Sempre que lia a carta transportava-me para imagens, visualmente cada palavra que lia transportava-me para uma imagem. As imagens começaram a assombrar-me ou a assaltarem-me a cabeça porque de repetente eram muitas. Na conclusão final era uma carta de amor, aquilo que não foi dito em vida foi deixado escrito. Aquilo podia ter sido uma conversa ‘faz assim ou faz assado’. Eventualmente para evitar uma discussão deixou por escrito aquilo que podia ter sido uma conversa e, além de ser uma carta de amor, é um ato de altruísmo. Este gajo em vez de fazer uma viagem, mas também não tinha saúde para tanto, a preocupação dele foi deixar tudo organizado e preparado para que isso não fosse um peso e tornar a minha vida mais leve.
Entra como personagem?
Não estava para entrar no filme. Inicialmente só queria fazer este filme e sobre a carta que ele me tinha deixado. Depois em discussão com um amigo muito próximo perguntou-me como é que ia criar empatia entre estas duas personagens se não estivesse presente no filme. E entre a vergonha e o pudor que tinha e a falta de jeito que tinha de pensar, mas também não ia chamar outra pessoa para fazer de mim própria. Disse ‘está bem’ e voltei a pensar no argumento e estávamos numa fase de corte e costura e porque inicialmente ainda pensei em usar alguns escritos que o meu pai tinha deixado sobre o próprio processo de partida, depois acabei por ficar só na carta e a carta ser a estrela do filme. Volto a sentar-me com o Edgar, em outubro/novembro, e se for de costas, ou aparecer as minhas mãos ou a silhueta de perfil e as coisas ganharam outra forma de estar a filmar muito bem. Mas tinha este grande pudor em me estar a filmar, mas percebi a importância e encontrei esta fórmula de serem dois tempos paralelos. O tempo em que acompanhamos a personagem P.
A personagem P é o seu pai?
É. Nunca foi capaz de lhe chamar pai e também nunca fui capaz de chamar Pedro e também nunca fui capaz de chamar homem. P era um diminutivo que só alguns tratavam assim e ficou P. E o filme inicialmente até se chamava 14 páginas, mas como falávamos em P, perguntaram se queria as 14 páginas ou P. Que seja P.
Então entra como filha?
Entro como filha, num tempo paralelo. A ação decorre entre dois tempos: momento da filha e momento do pai e as vozes off vão-se cruzando, a leitura da carta vai-se cruzando entre ele e ela.