First Folio. A paixão por Shakespeare

Um dos vinte exemplares do First Folio ainda em mãos privadas foi leiloado em Nova Iorque por 2,4 milhões de euros. O que torna este livro tão especial e cobiçado?

Por fora parece um livro comum, um respeitável volume de 33 cm de altura por 21 de largura, encadernado em marroquim vermelho. Na realidade, trata-se de uma rara cópia da primeira antologia das peças de William Shakespeare, publicada em Londres em 1623, conhecida entre os bibliófilos por First Folio.

O exemplar foi a leilão em Nova Iorque, com uma estimativa de 1,5-2,5 milhões de dólares, e nem o facto de ter notas rabiscadas nas margens e de algumas páginas do original terem sido substituídas por fac-similes (reproduções perfeitas, mas modernas) refreou a cobiça dos colecionadores, acabando por ser arrematado por 2,47 milhões de dólares (aproximadamente 2,42 milhões de euros).

Na nota de catálogo, a Sotheby’s destaca o First Folio como “o livro mais importante da Literatura Inglesa e, a par da King James Bible, publicada poucos anos antes, um dos dois maiores livros em língua inglesa”.

Em 1623, uma cópia não encadernada custava 15 xelins e uma cópia com encadernação em pele ficava nos 20 xelins, ou seja, uma libra. Em comparação com os valores atingidos hoje, parece uma pechincha, mas não era tão acessível assim para os seus contemporâneos: uma libra da época equivalia a cerca de 200 euros de hoje.

Não surpreende que o First Folio seja considerado uma espécie de Santo Graal dos bibliófilos e colecionadores. Não apenas pelo seu significado e valor histórico, como pela raridade. Dos 750 exemplares que se estima terem sido impressos na oficina de Edward Blount e William e Isaac Jaggard (pai e filho), apenas 233 chegaram até nós. E, destes, a larga maioria encontra-se em instituições (a British Library, por exemplo, possui cinco cópias). Só cerca de vinte exemplares, um dos quais o leiloado em Nova Iorque, se encontram ainda nas mãos de privados.

MacBeth e Júlio César podiam ter-se perdido As primeiras edições são sempre altamente procuradas e Shakespeare é um nome, obviamente, com um fortíssimo poder de atração.

Mas há outros aspetos que fazem do First Folio um objeto especial. Para começar, a gravura do Bardo na folha de rosto, assinada por Martin Droeshout. Sabemos hoje que é um dos poucos retratos fiéis do grande dramaturgo inglês. Sobre a gravura de Droeshout, à laia de elegia, escreveu o poeta Ben Johnson as seguintes linhas, também incluídas na edição de 1623:

“A figura que aqui vês posta

Foi para o gentil Shakespeare burilada,

O gravador teve um conflito

Com a natureza, para a vida ser superada:

Pudesse ele ter desenhado a perspicácia

Também em latão, tal como captou

as feições; e a gravura teria ultrapassado

Tudo o que alguma vez foi publicado:

Mas uma vez que não consegue, repara

No livro e não na cara.”

Falemos então do livro. As peças foram compiladas após a morte de Shakespeare (em finais de abril de 1616), por dois amigos seus, membros da companhia de teatro a que ele pertencia. John Heminges e Henry Condell cruzaram as diferentes versões e corrigiram os erros e inconsistências que foram encontrando nas cópias que circulavam. Mas não só. O volume de cerca de 900 páginas que resultou dessas diligências incluía 18 peças já antes publicadas em letra de forma e outras 18 inéditas. Os especialistas consideram que é precisamente graças ao First Folio que devemos o conhecimento dessas outras 18 peças inéditas, uma vez que os manuscritos originais não nos chegaram.

“Das 36 peças do First Folio, 17 foram impressas durante a vida de Shakespeare em variadas boas e más edições em quarto, uma foi impressa depois da sua morte e 18 não conheciam qualquer edição”, explica o site da British Library. “É este facto que torna o First Folio tão importante; sem ele, 18 peças de Shakespeare, incluindo Noite de Reis, Medida por Medida, MacBeth, Júlio César e A Tempestade, poderiam nunca ter sobrevivido”.

Curiosamente, na altura em que o First Folio foi impresso havia falta de papel em Londres, pelo que a matéria-prima (que era feita a partir de trapos) teve de ser importada de França.

Julga-se que a publicação conheceu um razoável sucesso, uma vez que em 1632, menos de dez anos depois, saía a segunda edição, conhecida como Second Folio.

Mais de metade dos lotes por vender O leilão da Sotheby’s em Nova Iorque teve, porém, outra estrela. A obra mais cara da noite foi uma cópia da Constituição Americana e da Carta de Direitos (Bill of Rights), um registo da ratificação pelo estado da Virgínia, datado de junho de 1788. “A ratificação estadual que garantiu o sucesso da Constituição dos Estados Unidos e inspirou a Declaração Federal de Direitos: uma cópia oficial e autenticada da forma de ratificação adotada pela Convenção de Ratificação da Virgínia, juntamente com uma Declaração de Direitos e um conjunto de vinte emendas à a Constituição proposta pela Convenção”, descreve a leiloeira.

O documento foi arrematado um pouco acima dos três milhões de dólares. Ainda assim muito aquém da estimativa mais alta, que apontava para cinco milhões.

De resto, a sessão, dedicada a livros e manuscritos raros, ficou marcada por várias desilusões. Dos 13 lotes oferecidos, sete ficaram por vender, incluindo um manuscrito iluminado do início do século XVI, conhecido por O Livro de Horas de Astor (250 mil – 350 mil dólares), uma primeira edição de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, de 1859 (250 mil-300 mil), e um manuscrito autógrafo de Bob Dylan com letras de canções célebres como ‘Subterranean homesick Blues’ , de meados da década de 1960 (600 mil – 800 mil dólares).