Epidemiologista e professor na Universidade de Washington, Ali Mokdad é um dos responsáveis pela monitorização da covid-19 no Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (Institute for Health Metrics and Evaluation, IHME), que desde 2020 publica projeções a nível global, com relatórios regulares para cada país. Em entrevista ao i, fala do que se pode esperar do terceiro inverno da pandemia e de um cenário hoje muito diferente em que os números de casos reportados refletem pouco a realidade. Nas últimas modelações para Portugal, atualizadas em julho, estimam que 79% da população já tenha estado infetada pelo menos uma vez e que os caso atualmente detetados e reportados são apenas 10% a 15% das infeções reais. Defende que a evolução dos internamentos em cuidados intensivos serão o indicador mais fiável ao longo dos próximos meses mas, com reforço vacinal e antivirais disponíveis, antecipa um inverno melhor do que os anteriores. Sem ser obrigatórias, defende que as máscaras deverão ser usadas por pessoas em maior risco e não só por causa da covid-19, mas por a maioria estar há três anos sem ter gripe.
As últimas projeções do IHME publicadas na semana passada apontam para uma nova subida nas infeções a partir de finais de setembro. Quais são as vossas expectativas para o terceiro inverno da pandemia?
Estamos a projetar uma subida de infeções em muitos países, incluindo em Portugal. Veremos também um aumento das hospitalizações e mortalidade, mas não nos níveis que vimos no passado, o que é muito importante. A razão porque vamos ter um novo aumento de infeções no próximo inverno prende-se com o desvanecimento da imunidade, quer a conferida pelos reforços vacinais quer a conferida por infeções prévias. Neste momento o desvanecimento da imunidade que estamos a ver verifica-se sobretudo em relação à infeção, ou seja continua a haver uma maior proteção em relação a doença grave e mortalidade, aí demora mais tempo a baixar. Agora as pessoas podem infetar-se e vão infetar-se, ainda que a maioria não acabe a precisar de cuidados hospitalares. Posto isto, há dois aspetos que podem alterar este cenário. Um positivo e um negativo. O positivo é que há novas vacinas que vão começar a ser testadas e que incluem as subvariantes da Omicron BA.4 e BA.5, responsáveis pela subida de casos nos últimos meses. Estas vacinas poderão ajudar-nos a diminuir a carga de infeção e manter a proteção contra doença grave e mortalidade, porque as que temos agora foram desenhadas para o vírus de Wuhan e já estão desatualizadas dos vírus em circulação.
E o aspeto negativo?
Poder aparecer uma nova variante. Estamos a vigiar por exemplo a BA.4.6 que está a competir com as variantes BA.4 e BA.5 nos Estados Unidos. Não sabemos se é mais problemática, mas podemos a qualquer momento ter uma nova variante que escape à imunidade. Portanto, se não acontecer isto, veremos uma subida de infeções mas que não será acompanhada para um aumento da severidade. Se acontecer, o cenário pode alterar-se.
Mas em termos de disrupção na sociedade, até por questões de absentismo, é de esperar mais meses complicados? O isolamento em Portugal continua a ser de cinco dias em caso de teste positivo.
É o mesmo aqui. O problema com estas variantes que têm estado a circular é que muitos casos são assintomáticos e as pessoas acabam por não se testar e continuam a transmitir o vírus, portanto mesmo estando muita gente em casa, o vírus continua a transmitir-se e existe uma vaga de infeções.
Assim sendo, acha que seria a altura para levantar essa regra?
Penso que devemos mantê-la especialmente no inverno, que é quando é expectável uma maior carga de infeções, as pessoas estão em espaços mais fechados e portanto vai haver naturalmente um maior risco de infeção. Penso que deve haver uma sensibilização para que quando as pessoas testam positivo fazerem o auto isolamento, não irem trabalhar, usarem máscara, sabendo no entanto que muitos casos não chegam a ser detetados e por isso as infeções vão subir. E penso que também será muito importante lembrar às pessoas este inverno que devem fazer a vacina da gripe porque muitas não têm gripe há muito tempo. E manter o reforço vacinal atualizado.
Nos EUA, Anthony Fauci avisou
que ou reforçam a vacina ou
“vão ter problemas”.
Temos já muitos dados a mostrar que quem fez o reforço vacinal está mais protegido de doença grave; que ter quatro doses da vacina é melhor do que ter três e que ter três é melhor do que ter duas. Neste momento nos nossos hospitais isso é evidente: as pessoas que vão parar a uma urgência ou que morrem com covid-19 geralmente não estavam vacinadas.
Em Portugal antecipou-se esta semana o regresso às aulas sem medidas específicas, sem máscaras por exemplo, o que parece ser a linha seguida nos países europeus que já concretizaram alguma coisa dos seus planos para o inverno. Concorda?
Sim, é o mesmo que está a ser pensado nos EUA. Quando abrirem as escolas, queremos fazê-lo sem máscaras. Não estou preocupado com as escolas. As medidas que temos em cada momento devem ter em conta as variantes que estão a circular e, com as atuais variantes, não vejo motivos para medidas mais apertadas e concordo que não haja máscaras e que as escolas abram normalmente. Mas deixe-me dizer uma coisa em relação às crianças e que tem muito a ver com a comunicação dirigida ao público em geral e a comunicação que devemos fazer em relação a situações específicas. Se uma criança, seja qualquer for a idade, vive com alguém que é um doente imunossuprimido, alguém muito idoso, deverá ter cuidados especiais na escola. Nesses casos podemos aconselhar que utilize uma máscara para não levar a infeção para casa. Cada um deve olhar para o seu risco e das pessoas que tem à volta. Eu pessoalmente não tenho receio, não sou uma pessoa de elevado risco, mas se a minha mãe vivesse comigo continuaria a usar máscara sempre que saísse de casa e quando vou dar aulas na universidade, mesmo que já não seja obrigatório fazê-lo.
A OMS manteve em julho a pandemia de covid-19 como uma emergência de saúde pública de preocupação internacional. Podemos já falar de uma doença endémica?
Sim, é uma doença endémica, está em todo o lado e vai estar connosco muito tempo. Tal como a gripe, vamos continuar a precisar de vacinas todos os anos e de atualizar as vacinas como estamos a fazer agora. Continuam a morrer muitas pessoas com covid-19 mas penso que as pessoas já passaram para uma nova etapa de lidar com esta doença. Viajo regularmente de avião e ninguém usa máscara, no aeroporto ninguém usa máscara. As pessoas continuam a perguntar mas quando é que isto acaba? “Já fiz uma vacina, já estive infetado, já estive infetado duas ou três vezes”. Penso que estamos numa altura em que precisamos de ser muito claros em termos de mensagens de saúde pública. As vacinas não nos protegem de infeção, protegem-nos de hospitalização e morte. Se tivermos uma variante que escape a esta proteção, precisaremos de voltar a usar máscaras e voltar a apertar medidas, mas não é essa a situação atual.
A ideia de que se iria a atingir uma imunidade de grupo, durante muito tempo repetida pelos decisores, contribuiu para o sentimento de algo que ainda não foi alcançado e para o cansaço que se foi instalando?
Não creio que o principal problema tenha sido essa ideia de imunidade de grupo. A certa altura esperava-se que existisse imunidade de grupo porque é o que acontece com outras infeções. Não aconteceu porque este vírus sofreu mutações muito rapidamente e isso continuará a acontecer. Penso que o que causou mais danos foi quando o CDC, como aconteceu noutras partes do mundo, vendeu a vacina como se fosse prevenir infeções. Isso foi um erro na minha opinião. Devíamos ter dito desde o início que a vacina previne hospitalização e mortes. Que no fundo é o que já sabíamos da gripe: podemos tomar a vacina que apanhamos gripe na mesma, mas diminui o risco de doença grave, que é o que se pretende.
E vê a raiz desse erro no facto de as farmacêuticas não terem sequer testado as vacinas para o risco
de infeção.
Não foram testadas diretamente para isso e o que não poderíamos saber à partida era a velocidade de diminuição de imunidade. Neste momento sabemos que a imunidade dura três, quatro meses. Se fiz o reforço há cinco meses, não estou imune, estou suscetível à infeção. Não aponto o problema aos ensaios clínicos, mas à comunicação desta incerteza. O que a certa altura se tornou claro é que não iria ser como o sarampo ou pólio em que a vacina previne infeção. Outro problema foram orientações contraditórias, usem máscaras, não usem máscaras. Houve momentos em que se confundiu o público. Acho que aprendemos essas lições sobre comunicação numa situação de crise da maneira mais difícil. Agora as pessoas estão cansadas, estamos nisto há quase três anos e por isso temos de ser pragmáticos e voltar às nossas vidas normais, porque a certa altura, estando vacinados, começamos a ter mais prejuízos das medidas contra a covid-19 do que da covid-19 propriamente dita.
Chegou a falar-se sobre as máscaras, como acontece nos países asiáticos, poderem tornar-se mais comuns no Ocidente. Não antecipa essa mudança comportamental?
Acho que vamos ver mais pessoas a usar máscara no inverno e mesmo que não se torne comum, eu pessoalmente não dou apertos de mão como costumava fazer. Alguma coisa mudou. Em locais como aviões por exemplo vou usar máscara este inverno, não por causa da covid-19 mas porque sei que não tive gripe nos últimos três anos. Usar uma máscara, evitar apertos de mãos são medidas que podemos adotar não apenas para a covid-19 mas para outras doenças respiratórias e acho que sobretudo as pessoas de mais idade passarão a ter mais cuidado.
Como estava a dizer, os casos vão subir. Que tipo de planos em avanço são necessários para evitar que o receio ou a surpresa influencie decisões mais tarde?
Acho que ao contrário do que tivemos noutras alturas os casos vão aumentar mas as pessoas não vão ter medo. Vemos já uma mudança significativa: as pessoas testam-se em casa e muitas vezes já nem reportam que estão positivas, portanto temos uma maior subnotificação de casos. As pessoas e os decisores políticos vão preocupar-se quando houver um aumento dos internamentos e maior pressão sobre os hospitais, sendo necessário perceber que neste momento mesmo os dados de movimento hospitalar resultam muitas vezes de pessoas que são internadas estando infetadas mas não por causa da covid-19. Os verdadeiros indicadores da gravidade desta doença serão a mortalidade e a ocupação de unidades de cuidados intensivos, portanto em termos de preparação penso que o mais sensato é preparar os sistemas para lidar com esse stresse e prevenir o que pode ser prevenido.
Como?
Diria que há quatro coisas que os países precisam de fazer para reduzir mortalidade e hospitalizações. Por um lado, garantir que existem reservas de antivirais (Paxlovid), para que quando as pessoas são diagnosticadas poderem fazer a medicação e evitar-se hospitalizações e mortes. Para esta estratégia ser eficaz, os países devem incentivar a população a continuar a testar-se quando tem sintomas ou quando têm diagnósticos de risco. Além disto, encorajar as pessoas a serem vacinadas ou fazerem o reforço, manter um sistema de vigilância adequado, capaz de detetar novas variantes e o aumento de casos, e aconselhar as pessoas em maior risco a usar máscaras de boa qualidade. Se fizermos tudo isto, e a menos que surja uma nova variante diferente das atuais, medidas mais gerais como reintroduzir máscaras para toda a população, distanciamento, fechar serão sempre o último recurso.
Confinamentos estarão fora
da equação no terceiro inverno
da covid-19?
Acho que nenhum político no mundo pode suportar um novo confinamento, com a economia como está, com a inflação que estamos a ver, com a crise nas cadeias de abastecimento, atrasos nas entregas de tudo e mais alguma coisa. Penso que por cima de tudo isto nenhum político irá querer acrescentar um confinamento.
E sabendo-se o que se sabe hoje,
foram um erro?
Não, os confinamentos salvaram muitas vidas, assim como todas as medidas não farmacológicas, sobretudo numa altura em que não tínhamos vacinas. Vamos publicar um artigo na Lancet com as nossas estimativas e o que concluímos foi que os confinamentos foram muito importantes sobretudo em 2020.
Pode quantificar?
O artigo está a ser revisto neste momento, deverá ser publicado em breve. Agora neste momento penso que a questão dos confinamentos não se coloca. Já praticamente toda a gente teve covid-19, é muito pouco provável encontrar alguém em países como Portugal que não esteja vacinado e/ou que não tenha estado já infetado, mesmo que não tenha tido um teste positivo.
Que projeções fazem para Portugal neste momento?
Neste momento estimamos que, em meados de julho, 79% da população portuguesa já tivesse estado infetada pelo menos uma vez desde o início da pandemia. Se se somar a isso que a maioria da população está vacinada, a esmagadora maioria da população tem algum tipo de proteção contra a doença. Neste momento estimamos que 75% da população terá imunidade contra a BA.5. Vai começar a baixar rapidamente, mas neste momento, 75% da população estará protegida ou pela vacina ou por uma infeção relativamente recente.
E está a ser reportada apenas uma fração pequena dos casos.
Sim, calculamos que na maioria dos países estão a ser detetados apenas 10% a 15% dos casos. Contabilizar os casos pode dar uma ideia da tendência mas não reflete a realidade. Estamos a falar de por cada caso reportado termos mais sete ou oito que não o são. E isto acontece ou porque as pessoas estão assintomáticas ou até têm sintomas e um teste positivo e não o reportam. Neste momento os números em que acreditamos são essencialmente os das unidades de cuidados intensivos e da mortalidade.
A China continua a seguir a estratégia covid zero. Percebe o dilema de reabrir a sociedade quando tiveram tão poucas infeções?
Escrevi um artigo sobre isso e de facto têm dois problemas, um é não terem tido praticamente infeções, por isso a população praticamente não tem imunidade. O segundo problema é que usaram uma vacina má, que não é tão eficaz na prevenção de doença grave como as que foram usadas nos outros países. Se abrissem seriam inundados de infeções. Agora depois há outras questões políticas: o Presidente Xi quer ser reeleito [o 20º Congresso do Partido Comunista da China vai ter lugar no outono]. Entretanto continuam a fazer confinamentos atrás de confinamentos. Não vão poder continuar a fazê-los, porque tem enormes custos em termos económicos, a testagem massiva tem deixado os profissionais de saúde exaustos, há enormes problemas de saúde mental.
Às vezes ainda se ouve aquela reação: o que sabem que não sabemos.
Sabem que a vacina deles não é eficaz e que não têm imunidade na população.
A monkeypox foi declarada uma emergência internacional de saúde pública. Antecipa que venha a causar mais problemas nos próximos meses?
Não, acho que esta repercussão toda tem a ver com o facto de ter aparecido depois da covid-19. Se não tivesse existido a covid-19, não estaríamos a falar de monkeypox como temos estado. Toda a gente passou a questionar-se sobre qual será a próxima pandemia. O principal motivo de preocupação são as semelhanças entre a epidemia de monkeypox e a epidemia de VIH, que começou na comunidade gay em São Francisco e espalhou-se para a população em geral. Mas o vírus da sida é mais infeccioso, é mais letal e por isso é uma situação a vigiar mas não estou muito preocupado. E os casos que estão a ser reportados resultam da atenção enorme que se está a dar e Portugal é um bom exemplo. Quando detetaram o primeiro caso, e aconteceu o mesmo cá, demorou um pouco até os médicos perceberem que era monkeypox porque ninguém estava à espera. Quando se percebeu o que era, já estava a espalhar-se mas neste momento já temos a vigilância a funcionar e os sintomas são logo detetados. E a vacina que temos e que está a ser dada a contactos de risco é altamente eficaz, por isso não espero que a situação se complique. Teremos surtos, mas não espero que venha a atingir uma grande dimensão.
Estaremos mais preparados para a próxima pandemia?
Para a minha geração honestamente já passámos por outras situações, fosse o SARS, o H1N1, houve muita atenção dos media, muita discussão e nada aconteceu depois disso. Infelizmente não aprendemos as nossas lições nem estamos disponíveis para investir ou pôr recursos de lado. Não estou otimista que haja grandes alterações em termos de preparação a nível global. Sejamos realistas: como é que se pode pedir a um país, por exemplo como o Líbano, que nem tem dinheiro suficiente para pagar aos seus profissionais de saúde, para investir dinheiro para se preparar para uma próxima pandemia e robustecer os seus sistemas de vigilância? Não há recursos que sobrem. E depois aos países com mais recursos coloca-se a questão de apoiar os que têm menos. Vão enviar recursos que vão ficar num armazém? Neste momento o que me preocupa mais não é a próxima pandemia ou o próximo vírus mas o impacto que as alterações climáticas vão ter na saúde e a disrupção que isso vai causar em termos mundiais. Veem os impactos com as ondas de calor na Europa, mas temos vários locais onde se agrava a falta de água, onde se agrava a insegurança alimentar e diminui a área cultivável, o que força novas vagas de migrações. Isso é o que me preocupa mais neste momento: o impacto das alterações climáticas em questões básicas de produção alimentar, nas migrações e até na emergência de doenças e novos problema de saúde pública a nível global porque há mais pessoas fracas e com fome.