Na segunda-feira renunciou ao empréstimo de 40 milhões de euros do Banco do Fomento/PRR, na quinta-feira tornou-se o primeiro português a ir ao Espaço. Mário Ferreira, empresário portuense, dono da Douro Azul e da Media Capital, atendeu a chamada do Nascer do SOL para falar sobre a aventura espacial do último dia 4 de agosto mas não fugiu à polémica que marcou os últimos tempos.
Diz-se de consciência tranquila e feliz com o sonho concretizado, por que esperou 18 anos – antes de alinhar na viagem a bordo da New Shepard da empresa Blue Origin, de Jeff Bezos, tinha estado inscrito na Virgin Galactic, explica. Levou com ele, além de uma garrafa do vinho do Porto de 2003 – que ainda não tem data para abrir –, peças com o logótipo do Banco Alimentar e das suas empresas, terços de família e uma imagem de Nossa Senhora da mulher, Paula, que o esperou cá em baixo, na zona de lançamento no deserto do Texas.
No sexto voo sub-orbital tripulado da New Shepard, viajou com a engenheira egípcia Sara Sabry, a alpinista anglo-americana Vanessa O’Brien, o youtuber Coby Cotton do canal Dude Perfect e ainda o empresário Steve Young e o antigo diretor do programa norte-americano DARPA, de desenvolvimento tecnológico, Clint Kelly III. Foi o único a aproveitar a gravidade zero para desembrulhar a bandeira nacional.
Levou a primeira bandeira portuguesa ao Espaço. Andava a pensar nisso há muito tempo?
Sim. E porque as pessoas perguntam porque é que é diferente, foi feita à mão de propósito. Tive de encomendar uma bandeira mais pequena para a conseguir dobrar em quatro e caber no bolso. Tem 30 centímetros de comprimento.
Quem a fez?
As pessoas que nos fazem as bandeiras para os navios. Pedi ao comandante. Estávamos muito limitados no peso que podíamos levar. Temos um package que é selado e metido numa zona por baixo do assento e aí podíamos levar objetos até 1 quilo e 450 gramas. Depois podíamos levar algumas coisas nos bolsos que em gravidade zero pudéssemos soltar para ver o efeito. Uma levou um boneco pequenino, outro levou uma bola de futebol americano em miniatura. Eu achei que poderia dar um efeito engraçado soltar a bandeira e ver como é que ela funcionaria em gravidade zero. E assim foi: quando a largo, ela está enrolada e vai-se esticando sozinha. Fui tirando várias fotografias. Agora, como já relatei, aquilo é muito difícil porque nós não estamos agarrados a nada, estamos a flutuar. Temos de tentar equilibrar-nos, fazer algum enquadramento, olhar pela janela. Depois de repente vinha o sol e ficava tudo branco, ficámos encadeados.
A cabina está a rodar.
Sim. Daí também o motivo para se verem em algumas das fotografias que já publiquei muitas nuvens. São nuvens que vêm do Oceano Pacífico e depois quando roda vê-se tudo seco porque estamos a ver o deserto de New Mexico.
Tiveram três minutos para estar a brincar em gravidade zero?
A flutuar, não é bem a brincar, mas foi a aproveitar ao máximo. Deu um bocado mais, quase quatro minutos. Quatro minutos, se for bem treinado, dá para fazer muita coisa.
Tirou quantas fotografias?
Pus a Go Pro num sistema em que cada vez que carregava fazia cinco frames por segundo. Tirei muitas dezenas mas boas tenho uma dúzia. Depois também fiz um bocado de filme mas ainda vai demorar até vir. É uma regra americana: em atividades consideradas sensíveis e que envolvam equipamentos, a informação tem de ser previamente vista para que não existam gravações de tecnologia sensível que possa ser utilizada por estrangeiros.
O que vai fazer à bandeira?
Tenho várias opções, se quer que lhe diga ainda não decidi. Posso ficar eu com ela e guardá-la para os meus netos mas também tenho vários pedidos, vamos ver. Ainda não pensei nisso neste momento mas de certeza que vai ser estimada, é para guardar.
E o vinho do Porto que levou, quando é que vai abrir?
Tenho de acertar com a Taylor’s para se fazer um pequeno evento. Entretanto já estive a falar com um astronauta bastante simpático, Richard Garriott, que é presidente do Explorers Club em Nova Iorque. O pai dele também já tinha sido astronauta. É o primeiro caso de um pai e filho que foram ao Espaço. Perguntei-lhe o que é que ele achava porque também gosta muito de vinhos. Esteve a dar-me uma explicação que achei interessante e estou curioso, no fundo que devido à aceleração a que a garrafa foi submetida, o mais certo é que se acelere o envelhecimento.
Um super vintage?
Sim. No fundo é o que se pensa sobre a aceleração e ausência de gravidade no nosso corpo e por isso se fazem tantas experiências, até nestes voos mais curtos, para ver o impacto de submeter massas ou corpos a forças G.
Passou uma semana desde a sua viagem. Sentiu algum efeito?
A sensação nos dias seguintes é de cansaço. Isto parece um voo pequeno mas é pequeno porque a velocidade é muito intensa. Se déssemos continuidade àquela velocidade de 3600km/h íamos parar muito longe. O voo que nós fizemos é igual ao voo que o primeiro astronauta americano fez, o segundo humano a ir ao Espaço, Alan Shepard, sendo que nós ainda ficámos mais algum tempo em velocidade zero do que ele.
Digo isto porque vou lendo os comentários e o que tem sido dito e já houve várias pessoas a criticar dizer-se astronauta e outras a explicar o que a palavra quer dizer: ao fim e ao cabo, é marinheiro dos astros e aplica-se a quem sai da atmosfera e passa a Linha de Kármán, que se convencionou ser essa barreira a 100km de altitude, não tem de fazer nada de específico. A NASA distingue depois astronautas comerciais para quem compra o bilhete e astronautas profissionais aos que fazem os voos governamentais.
De uma forma ou outra, a parte difícil de ser astronauta e ir ao Espaço é a reentrada. A partir do momento em que se sai da atmosfera é tudo muito silencioso, muito tranquilo. As grandes forças são o quebrar aquela inércia do rocket que tem de disparar e passar a barreira do som e depois a reentrada na atmosfera, que neste voo foi a parte mais difícil porque ultrapassámos os 5G de força no corpo.
Consegue descrever a sensação?
É muito peso. Cada G a mais é o total da sua massa. Se o seu braço pesasse 10 quilos, a 5G pesa 50 quilos.
Foi como estava à espera?
Fiz bastante treino durante todos estes anos que esperei para ir ao Espaço. Um dos treinos foi num centro para pilotos da Força Aérea e astronautas nos Estados Unidos em que éramos colocados numa máquina especial centrifugadora que submete o corpo a um conjunto de exercícios e forças. Tinha já bastante ideia do que iria sentir. Agora a realidade é um bocadinho superior ao que foi nos treinos. Ou também pode ser de ter agora mais 10 ou 15 anos do que tinha nessa altura.
Escreveu no Facebook que esperou e treinou 18 anos. Estava inscrito há 18 anos?
Inscrevi-me há 18 anos na altura na Virgin Galactic. Durante estes anos tive a felicidade de falar e treinar com astronautas, alguns deles que estiveram meses no Espaço na Estação Espacial e Internacional. E por isso tudo tinha ideia do que ia sentir e daí talvez ter aproveitado tanto porque tive tempo para pensar e consegui fazer tudo o que queria fazer, os exercícios, as minhas fotos. Consegui aproveitar ao máximo aquilo que parece muito curto mas que àquela velocidade, se fossemos um bocado mais longe, já não voltávamos. Entrávamos em órbita.
Não teve medo?
Não tive. Não tive medo porque estudei bem a tecnologia e acreditei nela. Acho que esta tecnologia acaba por ser até já bem mais segura do que aquela para a qual estive inscrito durante tantos anos. Estivemos 40 minutos sentados dentro do rocket, sabendo que estávamos sentados em cima de um cilindro carregado de hidrogénio. Pensei ‘bem, quando for ali a cinco minutos da descolagem é que vou sentir mais alguma ansiedade’. Não foi o caso.
Confiei sempre, tendo em atenção que sabia que era exigente e que íamos passar por aquelas forças. Mas é como dizia: o que custa é sair da atmosfera e a reentrada. Depois de lá estar é tudo diferente. A ausência de gravidade permite que muito pouca energia seja necessária. Para além do silêncio, fica tudo bastante facilitado. Outra coisa que agora que falamos queria dizer é que tem havido dois mitos em torno desta viagem.
Que são?
Um é o preço. Muito convenientemente e de forma propositada, porque infelizmente a contrainformação em Portugal é assim, falou-se de forma maliciosa que este bilhete poderia ter custado 27,5 milhões de euros [o valor a que foi leiloado o primeiro bilhete da Blue Origin e reverteu para a fundação da empresa, Club for the Future]. Os portugueses acreditaram nisso e queria que os portugueses soubessem que eu não sou doido. Se conhecesse algum amigo meu, português ou estrangeiro, que gastasse 27,5 milhões para ir fazer um voo suborbital acharia que ele era completamente parvo. O que posso dizer é que o preço deste voo não tem nada que se assemelhe a esse valor.
O bilhete custou 300 mil euros, o outro valor de que se fala?
Também não. Não posso dizer o valor porque é confidencial, mas posso dizer que não é nada que se assemelhe a esses valores. Assinamos uma claúsula de confidencialidade com a empresa. O Jeff Bezos é um dos homens mais ricos do mundo. Não precisa do dinheiro destes voos para ficar mais rico. O objetivo dele é que o que nós pagamos por estes voos seja uma contribuição que é totalmente reinvestida no desenvolvimento de rockets para o bem da humanidade e que este tipo de tecnologia, para além do Espaço, possa num futuro próximo servir para fazer viagens intercontinentais sem qualquer tipo de emissões. E este foi o outro mito.
A pegada ecológica da viagem.
Sim, que o voo teria uma pegada de 75 toneladas de CO2. Não pediram desculpa mas depois o Público fez um contraditório [fact-check] a dizer que afinal teve emissões zero de CO2. Os propulsores são alimentados com hidrogénio líquido e oxigénio líquido. A queima de hidrogénio com oxigénio dá vapor de água, que em cima do deserto, onde fomos lançados, não tem impacto negativo nem efeitos de estufa.
Houve alguém que decidiu dizer que por cada assento era 75 toneladas, mas é exatamente o oposto. Esta tecnologia e todo este negócio desta firma é para fazer o contrário, para que se possa ter máquinas que não emitam CO2.
Renunciou ao empréstimo do Banco de Fomento dias antes desta viagem. Está relacionado ou, de outra forma, quis ir mais leve?
Não há relação absolutamente nenhuma. Tenho ideia que a maioria dos portugueses percebeu, talvez alguns não tenham percebido porque a contrainformação foi mais uma vez muito desagradável, mas é o que é e o país que temos. Não há nenhuma relação a não a ser a coincidência e proximidade de datas. Foi anunciado, sem nós sabermos, a data de aprovação de um conjunto de candidaturas, onde estava uma das nossas.
Uma empresa que se candidate ao PRR e seja aprovada é porque tem mérito para o fazer e capacidade. O facto de haver uma pré-aprovação não significa que se avance e nenhuma das candidaturas aprovadas tem ainda contratos assinados. Depois é preciso ir para a fase negocial.
Quando comecei a ver o tipo de insultos por determinadas pessoas com responsabilidade, olhámos para aquilo e pensámos: será que não percebem que é importante empresas com viabilidade serem estimuladas a financiar-se? Todas as empresas precisam de financiamento para crescer, poucas serão as que não precisam. Olhando para as condições deste financiamento em concreto, que eram bastante pesadas, dissemos que não.
Para termos este tipo de condições, entre as quais qualquer ativo que eu alienasse durante este período em que assinasse o contrato teria de servir para amortizar àquele capital, pensei: porque é que vou estar a fazer isto e a chatear-me? Acelero a alienação de um ou dois ativos e faço o aumento de capital. E foi o que fiz.
Catarina Martins respondeu ‘se não precisava, porque é que pediu?’.
Ela sabe, não é uma pessoa ignorante. Quando dissemos que abdicávamos na carta que enviámos ao Banco de Fomento deixámos lá bem claro o seguinte: que nos desvinculávamos e que optámos por uma alternativa de fazer o aumento de capital com capitais próprios acelerando a venda de ativos. Isso está lá explicado. Seguimos em frente e custa-lhes encaixar isso. Felizmente a nossa empresa tem capacidade para fazer o que fez. Gostaria que todos os portugueses tivessem essa mesma capacidade.
Está de consciência tranquila com todo este processo?
Nem é uma questão que se coloque, como é óbvio. Estamos tão tranquilos e tão à vontade que o que digo é que este é um país que às vezes nem merece os poucos empresários de sucesso que tem. Não é o país ligado ao povo, mas o país político, ignorantes que não merecem os empresários que têm.
Depois de 18 anos a sonhar com o Espaço, qual é o próximo plano?
Estou ainda a digerir. Estou feliz por ter concretizado este sonho, como empresário, como pessoa, como pai de família. Sempre lancei objetivos difíceis e sempre lutei por eles. Este agora deixou-me satisfeito e vou saboreá-lo durante algum tempo. Neste momento estou a trabalhar porque temos muito que fazer. Temos navios em várias localizações, estamos a ver como a operação está a correr e é isso, estamos a trabalhar, que é a trabalhar que se ganha dinheiro.