N ão é por acaso que um antigo diretor de comunicação da Casa Branca, Anthony Scaramucci, de cada vez que encontra Bill Browder, coloca a mão sobre as partes baixas, «como se estivesse a segurar algo pesado», e o elogia com o seu melhor vernáculo: «Meu, tens uns tomates do c#r#lh#!».
Desde a sua saída da Rússia, e em particular desde a morte por espancamento do seu advogado, Sergei Magnitsky, numa prisão de Moscovo, quando investigava uma fraude de 230 milhões de dólares que beneficiou os oligarcas, Browder tem-se empenhado numa guerra sem quartel nos tribunais e câmaras legislativas. Oobjetivo, bem sucedido, é aprovar a Lei Magnitsky, que prevê o congelamento de bens que se prove estarem ligados à lavagem de dinheiro, no maior número possível de países.
Isso fez do investidor um dos maiores inimigos de Vladimir Putin. Após o encontro em Helsínquia com Donald Trump na manhã de 16 de junho de 2018, questionado sobre se estaria disposto a entregar 12 agentes secretos russos, para serem julgados nos EUA na investigação relacionada com a interferência nas eleições americanas, o Presidente russo admitiu deixar entrar no seu país uma comissão americana para fazer os interrogatórios necessários. Havia uma contrapartida: os americanos, por sua vez, teriam de entregar Browder a Moscovo. Curiosamente, Donald Trump não se opôs.
A cruzada deste investidor contra a corrupção e a lavagem de dinheiro é o tema de Dinheiro Sujo (ed. Vogais), um relato que cruza os bastidores judiciais com os meandros da hierarquia russa e as atrocidades cometidas contra os opositores do regime de Putin. Bill Browder conversou com o Nascer do SOL por Zoom, a partir dos Estados Unidos, onde está a passar férias.
Na capa da edição portuguesa do seu livro, logo abaixo do seu nome, diz: ‘o inimigo n.º1 de Vladimir Putin’. É assim que se vê, ou há aqui algum exagero?
Quando eu escrevi este livro era de facto o inimigo n.º1. Mas desde então emergiram dois nomes que estão acima de mim na lista de inimigos. Um é obviamente Vladimir Zelensky; e o segundo é Alexey Navalny. Portanto eu diria que fui relegado para um sólido terceiro lugar desde que escrevi o livro.
Li na Wikipedia que o seu avô viveu na União Soviética durante vários anos e foi líder do Partido Comunista norte-americano. Conheceu-o bem?
Tinha nove anos quando o meu avô morreu, era um miúdo. Mas a influência dele na família foi enorme. Muitas outros familiares nossos eram ou comunistas ou simpatizantes da extrema-esquerda. E toda a minha vida profissional foi determinada por isso, porque decidi rebelar-me e tornar-me um capitalista.
Toda a minha carreira tem sido reagir contra o meu avô e a sua influência. Fui para Stanford, para a business school [escola de gestão] e terminei o curso em 1989, o ano em que o muro de Berlim caiu. E pensava: ‘Se o meu avô foi o maior comunista na América, eu vou ser o maior capitalista na Europa de Leste’. E desde então dediquei-me a isso.
Então o passado do seu avô teve a ver com a sua ida para a Rússia.
Teve tudo a ver. Foi a principal motivação para ir para lá.
Quando foi a Moscovo pela primeira vez?
Depois de me ter licenciado em gestão, fui para Londres. Tive vários empregos e em 1992 acabei na Saloman Brothers, um banco de investimento, na equipa para a Europa de Leste. E a primeira tarefa de que me encarregaram foi ir à Rússia para avaliar uma frota de pesca em Murmansk.
No Norte? [Murmansk é uma cidade portuária situada no círculo polar ártico].
Exato. Fui incumbido de dar um parecer se a administração devia ou não exercer o direito de preferência ao abrigo do programa de privatizações e comprar 51% desta frota de pesca. Quando lá cheguei, avaliei os barcos em cerca de mil milhões de dólares – e os 51% da frota podiam ser legitimamente adquiridos por dois milhões e meio. Foi aí que fiquei com a ideia de que eles estavam a entregar as empresas praticamente de graça. Em seguida fui para Moscovo, para tentar perceber se isto era uma especificidade da indústria da pesca ou se era uma coisa mais generalizada. E descobri que este programa de privatizações em massa era provavelmente a maior oportunidade de investimento que alguma vez tinha existido na história dos mercados financeiros.
Tudo estava incrivelmente subavaliado e portanto podia tornar-se muito rentável, é isso?
Pelos meus cálculos, comparando com empresas semelhantes no Ocidente, estavam a negociar estas empresas com 99,5% de desconto. A minha lógica era que, desde que os russos não no-las tirassem depois, desde que não voltassem a renacionalizar, se as coisas começassem a estabilizar, então haveria um enorme retorno para quem investisse nestas ações. Isso acabou por confirmar-se.
Como era o ambiente em Moscovo no início dos anos 90? Um pouco deprimido?
Deprimido provavelmente não é a palavra certa. Era o caos total. Passaram do comunismo para o capitalismo sem transição. Os preços dispararam e as pessoas estavam entregues a si próprias. Portanto era um caos. E também, diria, profundamente desmoralizante para muitos russos, que não faziam ideia de como funcionava este novo sistema capitalista. Isso acabou por beneficiar um número muito pequeno de pessoas, os oligarcas. De resto, quase toda a gente sofreu. Foi provavelmente a situação mais injusta que testemunhei em toda a minha vida porque o russo comum via-se numa situação terrível, desesperada, mesmo.
Há uns anos entrevistei um especialista no estudo das máfias que me explicou que quando o Estado soviético colapsou, a máfia russa assumiu o controlo e manteve as coisas a funcionar, porque era a única estrutura organizada. Sentia-se que os criminosos tinham substituído o Estado e controlavam Moscovo?
Não diria que a máfia russa criou qualquer tipo de estrutura. Era mais uma ausência total de regras, uma espécie de vácuo. Os mafiosos vieram preencher esse vácuo, mas não trouxeram estabilidade a ninguém. Apenas se aproveitaram da situação. Mas a coisa mais importante que apareceu não foi a máfia, foi esta nova categoria de indivíduos chamados oligarcas. Ao princípio eram 22. Tratava-se de um grupo de homens de negócios que encontraram uma maneira de beneficiar deste programa de nacionalizações e de se apropriar dos ativos. 22 pessoas roubaram ao governo qualquer coisa como 40% da riqueza do país.
Enquanto outros estavam na miséria…
Diria que essa foi provavelmente a principal mudança naquela época. E os oligarcas acabaram por controlar o Governo, subornando membros do parlamento, para aprovarem leis que lhes fossem favoráveis, fazendo prender os seus inimigos, e por aí adiante. Era a lei da selva. Como resultado disto, a esperança de vida de um homem caiu para 58 anos. Se eu fosse um cidadão comum russo naquela época – tenho 58 anos –, estaria mesmo no fim da vida. Não havia cuidados de saúde, não havia comida… não era uma sociedade civilizada.
Como faziam então as pessoas para sobreviver?
Os professores tiveram de se tornar taxistas. As enfermeiras tornaram-se prostitutas. Os museus venderam as pinturas que tinham nas paredes. Isto desembocou numa situação em que toda a gente suspirava por algum tipo de ordem, por voltar à normalidade. Foi aí que Putin apareceu e teve a sua grande oportunidade. Disse a toda a gente: ‘Eu vou repor a ordem’. Era o que toda a gente queria, incluindo eu próprio. Nos primeiros anos Putin cumpriu, restabeleceu a ordem. E não era o ditador todo-poderoso que vemos hoje. Estava no poder mas, julgo eu, numa posição um pouco incerta. E fez o que qualquer tecnocrata faria no seu lugar. Durante os três primeiros anos da sua presidência comportou-se como um presidente normal e agiu em prol do interesse nacional. Isso acabou em 2004, quando fez uma aposta de risco, prendeu o mais rico dos oligarcas, Mikhail Khodorkovsky, e levou-o para tribunal. A seguir, disse aos outros oligarcas: ‘Também vos vou prender’.
A não ser que…
‘A não ser que me deem 50% da fortuna’. Repare, a mensagem não era apenas: ‘Não se metam na política’. Era: ‘Deem-me 50% das vossas fortunas’. Com isso Putin tornou-se o maior oligarca da Rússia. E o que até aí tinha sido crime desorganizado tornou-se altamente organizado. Em qualquer empresa, qualquer negócio, qualquer situação, lá estava a máfia, e o grande padrinho dessa máfia era Putin.
Recuando um pouco, como é que você lidava com o caos que encontrou na década de 90? Não lhe causava transtorno no dia-a-dia?
Tinha um motorista, um antigo polícia, que andava armado. Não andávamos de Mercedes, para não dar nas vistas, era um jipe Chevrolet Blazer e mantinha-me reservado. E só ia de casa para o escritório e do escritório para casa. Ou a algum restaurante. Depois, o caos atingia sobretudo o que tinha visibilidade. Se tivesse um restaurante, a máfia ia lá e dizia que queria ficar com 50%. Se tivesse uma joalharia ou uma loja, faziam-lhe uma visita e diziam: ‘Nós vamos dar-vos proteção’.
E se recusasse eles incendiavam a loja ou assaltavam-na. Mas o que eu fazia era praticamente invisível. Limitava-me a comprar ações, num escritório anónimo que ficava num edifício incaracterístico. Ninguém sabia quem eu era, não tinha uma loja com a porta aberta, não fazia publicidade. Mantive a cabeça baixa. Portanto durante o tempo de Yeltsin nunca fui incomodado. Nunca estive exposto a nada disso, nunca fui vítima desse tipo de crime.
Um treinador de futebol que treinou equipas em todo o mundo disse-me que o sítio onde gostou menos de trabalhar foi na Rússia. Os russos podem ser peculiares, fechados, desconfiados. Era fácil para si lidar e fazer negócios com eles?
Eu não tinha de fazer negócios com ninguém porque estava apenas a comprar e vender ações na Bolsa. Não tinha de participar em grandes jantares de vodca ou de ir à banya [sauna]. O que fazia era apenas tentar decidir que ações comprar e quais vender. Mergulhar na cultura russa não fazia parte dos meus planos. Mas devo dizer que gostei muito de lá estar. Nessa época sentia que era uma terra de oportunidades e que, se conseguisse passar do caos à ordem, seria um período incrivelmente lucrativo. Para mim, era uma espécie de grande aposta em que tudo podia acontecer. E havia outra coisa curiosa: cheguei à Rússia com 27 anos e ninguém tinha mais experiência do que eu.
Não havia nenhum senhor grisalho, com 60 anos, sábio, que fosse uma grande referência. Estávamos todos em pé de igualdade, qualquer um podia vingar. Conhece aquela expressão ‘em terra de cegos quem tem um olho é rei’? Eu, com 27 anos, era quem tinha mais experiência neste mercado louco que se estava a formar.
Quando é que as coisas começaram a descarrilar? Quando começou a ganhar ‘demasiado’ dinheiro?
Um aspeto em que eu ainda não toquei é que todas as empresas em que estava a investir eram roubadas por oligarcas. Eles levavam dinheiro como não pode imaginar.
Como o faziam?
Imaginemos que eu era o CEO da Gazprom, a maior empresa de gás e petróleo do mundo, e que os administradores pegavam numa reserva de gás natural, no valor de milhares de milhões, e a concessionavam a uma empresa subsidiária que eles detinham a 100%. Um dia anunciavam que precisavam de uma dúzia de camiões para transportar equipamento.
E a Gazprom dizia que estava com um problema de tesouraria. Aí entrava o irmão do CEO e dizia: ‘Tudo bem, eu dou cem mil dólares para comprarem os camiões. Em troca quero 52% da subsidiária’. E assim, por cem mil dólares, ficavam com 52% de uma empresa que valia milhares de milhões. Isto é só um exemplo de muitos possíveis dos esquemas que usam para roubar as empresas.
E eu comecei a queixar-me publicamente. Investigávamos como roubavam o dinheiro e depois eu partilhava essa investigação com o New York Times ou o Wall Street Journal e eles publicavam artigos sobre isso. No princípio da presidência de Putin, quando ele ainda agia como um líder normal, resultou. Mas depois de mandar prender Khodorkovsky, tornou-se o beneficiário de 50% destes esquemas. E isso levou a que eu fosse expulso do país em novembro de 2005.
No seu livro diz que Putin fez tudo por dinheiro. Mas avançou para uma guerra que lhe está a custar milhares de milhões de euros.
Um ponto prévio que as pessoas no Ocidente têm de perceber é que não há uma única pessoa na Rússia que vá trabalhar para a função pública para servir o país, seja o funcionário mais baixo, seja um magistrado, seja o Presidente. Toda a gente que vai para a função pública é para ganhar dinheiro. Isso é uma regra sem exceção – e qualquer pessoa na Rússia lho confirmará. E quanto mais se sobe na hierarquia, mais dinheiro se ganha. Quem quer enriquecer não abre um fundo de investimento privado ou uma empresa de biotecnologia.
Vai para o Estado?
Sim, vai para a Academia do Ministério do Administração Interna para se tornar polícia ou militar. Todas estas pessoas, incluindo Putin, acumularam fortunas. O problema é que só olham para o dia de hoje. ‘Quanto é que vou conseguir roubar este ano?’. Até porque ninguém sabe se vai estar vivo no ano que vem. Ou se vai ser preso. Foi o que aconteceu ao longo destes 22 anos, em que estimo que Putin e as pessoas à sua volta roubaram um trilião de dólares. Mil milhares de milhões.
E fizeram-no impunemente?
Ao fim de algum tempo as pessoas começaram a ficar furiosas, porque esse trilião de dólares devia servir para construir escolas e hospitais, para tapar buracos nas estradas e outros serviços que o Estado devia prestar. Putin é muito astuto e percebeu que se as coisas continuassem assim podia acabar por ter uma Praça Tahrir, como aconteceu no Cairo [movimento que acabou com a deposição do ‘faraó’ Mubarak] ou uma Euromaidan, como aconteceu em Kiev. E não podia simplesmente pegar nos seus 200 mil milhões e meter-se num iate em direção ao pôr-do-sol, porque seria processado. Se saísse do poder, também ficava sem o dinheiro. Por isso, para ele, é uma questão de sobrevivência.
A primeira prioridade tinha sido o dinheiro, mas agora só queria manter-se vivo. E o que é que um ditador faz para desviar a raiva de si para outro alvo? Começa uma guerra. A guerra da Ucrânia foi essencialmente desencadeada pelo receio desesperado de Putin de perder o poder e ser detido. E está a resultar. Ao fim de seis meses o seu poder está consolidado, está com uma taxa de aprovação de 83%. Mais: pôde usar esta circunstância para varrer todos os meios de comunicação independentes, as críticas, as redes sociais, tudo. A sua situação agora está segura.
Depois de ser expulso da Rússia em 2005 liquidou as empresas e vendeu as ações. Podia simplesmente ter recolhido os dividendos, mas não, iniciou uma cruzada contra Putin e os oligarcas. Enquanto lia o seu livro dei por mim muitas vezes a pensar: ‘Este tipo podia ter uma vida fantástica em Londres, ir esquiar para Aspen no Inverno, passar tempo com a família, mas em vez disso está sempre metido em processos, advogados, tribunais’. Nunca lhe passou pela cabeça deixar isso tudo e simplesmente gozar a vida?
Podia ter feito essa escolha entre 2000 e o homicídio de Sergei Magnitsky, o meu advogado. Aí ainda podia ter-me retirado. Mas depois de o Sergei ser assassinado, não havia alternativa, tinha de continuar e lutar contra estas pessoas. Era um homem de 37 anos, tinha a vida toda pela frente, e foi assassinado por minha causa, por ser meu advogado. Ainda hoje o fardo da culpa é tão pesado que não podia simplesmente desistir. Claro que podia ter uma vida muito mais fácil se esquecesse tudo, mas não seria capaz de viver comigo próprio se ficasse de braços cruzados.
Sergei Magnitsky: preso e linchado. Boris Nemtsov: abatido a tiro na ponte Bolshoy Moskvoretsky. Nikolai Gorukhov: gravemente ferido numa queda misteriosa de uma altura de 15 metros. Vladimir Kara-Murza: provavelmente envenenado. Como se explica que, apesar deste historial de ameaças, detenções, envenenamentos e homicídios, ainda haja pessoas na Rússia dispostas a correr o risco e a enfrentar o regime de Putin?
Os russos são feitos de outra cepa. É outra ordem de magnitude que não temos no Ocidente. Tudo na Rússia é extremo. Veja o exemplo do Vladimir Kara-Murza. Foi envenenado duas vezes. Quando foi o lançamento do meu livro, convidei-o, porque ele divide a vida entre Washington e a Rússia. E respondeu-me: ‘Lá estarei, mas primeiro tenho de ir a Moscovo’. Isto já depois da invasão da Ucrânia. E eu disse-lhe: ‘Não podes ir a Moscovo. É uma loucura. Vais ser preso’.
Conseguiu convencê-lo?
Não. Ele respondeu-me: ‘Como é que eu posso esperar que o povo russo enfrente Putin se eu próprio tenho medo de ir à minha cidade?’. Foi a Moscovo, a partir de lá deu uma entrevista à CNN em que chamou assassino a Putin e uma hora depois foi detido. Arrisca-se a dez anos de prisão por ter chamado guerra à guerra e outros seis anos por pertencer a uma ‘organização indesejável’. Jantei com ele três dias antes de ir para Moscovo, supliquei-lhe que não fosse. Mas a vontade dele era inabalável. O nível de coragem entre alguns russos – não muitos – é da ordem de grandeza da de Nelson Mandela. Já não se encontram pessoas destas no Ocidente. Talvez houvesse durante a Segunda Guerra Mundial entre os soldados, mas tornámo-nos complacentes. Já não sabemos o que é este tipo de coragem.
Uma das suas frentes de batalha foi a Lei Magnitsky [em homenagem ao advogado Sergei Magnitsky], que já levou ao congelamento de centenas de milhões de dólares de oligarcas, e não só, associados à lavagem de dinheiro. Imaginemos que eu sou um oligarca e tenho uma conta nos EUA, um iate e um apartamento em Central Park. O que acaba por acontecer a esse dinheiro, a esse apartamento e a esse iate? Nunca mais ninguém lhes toca? Até quando?
Quando eu comecei a fazer lóbi a favor da Lei Magnitsky nunca pensei no que aconteceria ao dinheiro. Não coloquei essa questão. Só queria que os responsáveis pelo branqueamento não o tivessem. Mas agora olhamos para a guerra na Ucrânia e para a destruição que está a provocar. O custo da reconstrução vai ser gigantesco. Quem o vai pagar? Queremos ser nós no Ocidente a suportá-lo? A resposta provavelmente é não. Por isso agora estamos com uma grande iniciativa para redirecionar estes bens congelados para reparações à Ucrânia.
Os políticos canadianos com quem trabalhei para aprovar a Lei Magnitsky apresentaram uma lei de redireccionamento dos bens congelados que já foi aprovada. Isso também está a ser estudado pelo Congresso dos EUA e no Reino Unido. E o mesmo com os 350 mil milhões das reservas do Banco Central Russo. Dito isto, é muito mais fácil ir atrás do dinheiro do Governo russo do que dos oligarcas, que vão contratar os melhores advogados do mundo e dizer: ‘O dinheiro não é meu, é do meu sobrinho, do meu primo…’. Vai ser uma longa litigância, mas espero que esse dinheiro acabe por ir para a reconstrução da Ucrânia.
Houve uma altura em que recebeu uma ameaça que era para ser levada a sério e receou ser raptado. Atualmente já pode viver descontraído?
De modo nenhum. Veja o que aconteceu a Salman Rushdie. Tenho de ter muito, muito cuidado com onde vou, quem contrato, que medidas de segurança observo. Faço muitas intervenções públicas, mas certifico-me sempre de que são tomadas medidas adequadas para garantir a minha segurança, quem são os meus guarda-costas, etc. E não posso viajar para a maior parte dos países, porque posso ser preso e extraditado para a Rússia. Como sabe, fui preso em Espanha.
Em Madrid.
Sim, a Rússia tinha emitido um mandado para a Interpol e a polícia espanhola executou-o. A Rússia já emitiu oito mandados de captura internacionais contra mim. Estar na minha pele ainda é uma situação muito angustiante.
Mesmo assim, você tem dinheiro, conhecimentos a alto nível, pode contratar advogados caros. Não é a mesma coisa que ser um Zé-ninguém.
Era mesmo aí que eu queria chegar. Consegui sair dessa situação muito feia em Madrid porque pus uma fotografia da detenção no Twitter, onde tenho centenas de milhares de seguidores. Em Washington e Nova Iorque todos os jornalistas sabem quem eu sou, todos os políticos do mundo me conhecem. Mas um opositor na Rússia sem recursos está completamente à mercê deste regime – além de que a Rússia continua a ser membro da Interpol e muitos países continuam a cumprir os mandados de detenção emitidos por Moscovo. Há um dissidente russo na Bulgária que o governo Búlgaro concordou em entregar. Obviamente vai ser vítima de maus-tratos. O mundo continua a ser conivente com esta perversidade.
Sendo a sua mulher russa, como lida com o descrédito generalizado dos russos no Ocidente.
Lida da mesma forma que as pessoas que trabalham comigo, como o Vladimir Kara-Murza. Como russo, numa situação destas, só há uma opção: opor-se com todas as suas forças ao regime criminoso de Putin.
Tem tido informações sobre como estão a correr as coisas na Rússia? Ainda há poucos dias vi uma fotografia surpreendente de uma espécie de festival de surf no rio Neva, em S. Petersburgo, em que as pessoas estavam vestidas com roupas coloridas e pareciam muito animadas.
Penso que os russos estão a tentar desesperadamente projetar uma imagem de normalidade. Mas se olharmos para os números, a situação é muito preocupante. As pessoas não podem aceder ao Facebook, ao Twitter ou à Netflix. Não podem apanhar um avião a não ser que seja para a Turquia, Israel ou os Emirados Árabes Unidos. Não conseguem obter vistos para a maioria dos países. Todos os bens que se habituaram a consumir já não estão disponíveis.
O nível de vida tem vindo a cair e a economia está na iminência de uma depressão. Não se pode tirar o dinheiro do banco. Isto não é de modo algum uma situação normal, por muito que puxemos pela imaginação. A maioria dos russos sofrem com as sanções e não têm dinheiro para sair. Estão encurralados neste regime totalitário. Não me parece que haja motivos para estarem alegres.