Um dos mais perversos efeitos cumulativos da guerra é a forma como, à medida que o tempo vai passando e aquele estado de coisas degradantes consegue produzir habituação, suspender a sensação de escândalo e fazer da infâmia a regra, os homens deixam de pensar em termos de vitória, já não subsiste grande esperança de se livrarem de vez do mal a que estão sujeitos, e, então, sobreviver é tudo. Mas essa degradação da existência leva a que, aos poucos, a própria vida das pessoas comece a tornar-se matéria abstrata, como contas que são feitas à margem de programas ideológicos, quase irreais, como se estas apenas existissem em estatísticas áridas e fossem uma invenção da propaganda demagógica, em lugar de seres vivos e concretos, feitos de carne e sangue. Um dos aspetos mais grotescos da invasão militar da Ucrânia pelas forças russas tem sido o persistente esforço do Kremlin para, não só conquistar o território do país vizinho, mas integrar à força os seus cidadãos, obrigados a fugir à destruição provocada pela guerra. De acordo com as autoridades ucranianas e norte-americanas, a Rússia tem estado a promover um esforço de deportação forçada de centenas de milhares de pessoas, incluindo crianças. Em julho, o secretário de Estado americano, Antony J. Blinken, estimou que as autoridades russas “interrogaram, detiveram e deportaram à força” entre 900 mil e 1,6 milhão de cidadãos ucranianos, incluindo 260 mil crianças. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky descreveu as deportações como “um dos crimes de guerra mais hediondos da Rússia”.
Ontem, num sinal de intensificação desta estratégia para engolir o país vizinho, Vladimir Putin assinou dois decretos concedendo aos ucranianos benefícios financeiros e o direito a integrarem a força de trabalho na Rússia. Assim, o presidente russo deu aos cidadãos ucranianos o direito de permanecer e trabalhar na Rússia sem limite de tempo e sem necessidade de uma autorização especial, desde que cumpram certos requisitos, incluindo o terem de passar num teste de drogas. O segundo decreto, vem estabelecer um subsídio de inserção mensal que ronda 170 euros para aqueles que foram obrigados a deixar a Ucrânia a partir de 18 de fevereiro, uma semana antes do início da invasão russa. Também oferece pensões mensais para pessoas com deficiência e para grávidas. Estas medidas são apenas as mais recentes no esforço de promover a anexação dos territórios ocupados no leste e sul da Ucrânia, depois de, em 2014, Moscovo ter retaliado contra os sinais da população ucraniana de pretender quebrar o vínculo com o antigo mestre soviético e aproximar-se da União Europeia e do modelo liberal e democrático do bloco ocidental.
Desde que iniciou a invasão, o Kremlin tem oferecido passaportes russos aos cidadãos ucranianos que vivem nas zonas ocupadas, pedindo às pessoas que usem o rublo como moeda e redirecionando a internet por meio de servidores russos. As autoridades que respondem ao Kremlin nestes territórios preparam-se agora para realizar referendos cujo resultado está à partida definido de forma a forjar o consentimento popular para os esforços de anexação dos territórios conquistados nos últimos três meses. Se Kiev denuncia as deportações como um crime de guerra, Moscovo admite que cerca de um milhão e meio de ucranianos estão agora na Rússia, mas insiste que foram deportados para sua própria segurança.
Entretanto, depois de na quinta-feira passada Putin ter decidido aumentar drasticamente o esforço de recrutamento das forças armadas russas, fontes dos serviços de informação norte-americano e britânico, bem como analistas militares independentes, garantiam ontem que a medida não deverá alterar substancialmente o cenário de impasse que se verifica atualmente. Estima-se que a Rússia tenha sofrido cerca de 80 mil baixas na Ucrânia, entre mortos e feridos, desde que Putin ordenou a invasão em fevereiro, e a sua ordem no sentido de aumentar o número de ativos das forças russas de 137 mil para 1,15 milhões a partir de janeiro é um horizonte muito improvável de ser alcançado a curto ou sequer a médio prazo, e, por essa razão, não deverá alterar o balanço de forças na guerra frente à Ucrânia. Uma vez que Putin não quer, para já, expandir o recrutamento nacional, por receio de perder o atual apoio com que conta por parte da população russa na sua “operação especial” no país vizinho, tem sido obrigado a compensar as perdas sofridas recorrendo a soldados com uma série de incentivos financeiros.