José Gardeazabal. Penélope: esperar sempre também cansa

“Penélope está de partida” é um livro escrito de costas para a narrativa épica de Homero. Tem um pé na epopeia clássica, outro na modernidade. Oferece-nos um muito admirável puzzle dramático a que não faltam peças que investem contra o velho figurino da passividade feminina.

Texto de Teresa Carvalho

Impecável forma física, virilidade, coragem, espírito aberto às curiosidades do mundo, astúcia, faceta de marido e pai exemplares. O lote de atributos que Ulisses, um dos heróis da guerra de Troia, se impôs à admiração de antigos e modernos não foi suficiente para prender Penélope a um espaço familiar que, rodados os anos de ausência, se tornou uma quadrícula demasiado apertada, escura – e vazia, atingida pela engrenagem da rotina dos dias domésticos, pela frieza do amor. Alguns desses atributos mais contribuem, aliás, para a partida que expressamente se anuncia no título do recente livro de poemas de José Gardeazabal, publicado pela Relógio D'Água. Diz esta Penélope de nova espécie a que bem poderia aplicar-se o epíteto “a que muito suportou”: “Ulisses// não te quis artimanhas quis-te homem”.

É certo que Penélope celebrou com Ulisses o mais famoso contrato de amor da mitologia, mas entretanto as coisas mudaram, o encanto acabou, o amor esmoreceu, o quarto – essa forma geométrica da solidão – comprimiu: “disseste-me: “para sempre”/ quem diria que sempre seria isto”. É a decepção matrimonial. O logro. Entre o prometido e o vivido abre-se um abismo de margens escuras. E algumas daquelas a que Eduardo Lourenço chamou “as evidências de Eros” não eram senão sinais do fim, agora analisados com olhar frio, desinfectado do vulgar queixume, do derrame lírico: “Sabes Ulisses/ tu e eu fizemos festas formidáveis/ víamo-nos aos dois de pé à proa/ a cena mais bonita de um filme de naufrágio/ nos nossos exercícios conjugais”. O amor expresso nestes poemas, por vezes em momentos de bem realizada contrafacção irónica, converte-se em desajuste, desejo insatisfeito, desconcerto, falha, desilusão, desapego. O herói grego, nem morto nem vivo, convertera-se entretanto numa espécie de fantasma que tanto mais lhe foge quanto mais importaria alcançá-lo. Mas nem tudo é perda e desencontro. Fica um curso de desaprendizagem de todo um modo feminino de viver e estar no mundo para poder aprender uma nova maneira de abrir espaço à sua volta e encontrar o caminho de regresso a si mesma. E aqui reside um dos méritos deste admirável livro de poemas regido, não pelo verbo cantar e pela clássica metáfora musical que lhe anda associada, mas por uma poética do contar(-se).

Os desígnios de José Gardeazabal anunciam-se no título do livro em cuja portada figura uma mulher de rosto ocultado, recortada sob um fundo “azul inventado para a nudez”, dando as costas a um género literário que há muito parece ter chegado ao fim. Carrega uma mala. E como pesam, sabemo-lo todos, as palavras que nunca se disseram, acamadas no espaço privado das falas interiores. Está de partida, a mulher de Ulisses, a quem deixa um filho criado, Telémaco, “príncipes no palácio/ deixo-te homens na sala muitos/ e a casa sozinha sozinha”. Fica também o tear, antes elemento identificativo, agora objecto com a utilidade das coisas sem préstimo, a menos que o herói decida dar-lhe uso: “deixo-te uma colcha a meio/ a ti desmanchá-la ou acabá-la”. As mãos de Penélope querem-se livres para outras tarefas: “quero montar móveis suecos/ sem parafusos/ estantes de livros muitas/ quero ser bem-vinda como um poeta/ melhorar a contabilidade e a administração”. E fica também uma lista de nomes femininos para memória futura, elaborado à maneira do célebre Catálogo das Naus, um para cada canto de uma epopeia a haver, de medida humana.

Sem dados que garantam que Ulisses morreu, sem notícia que assegure que ainda vive, Penélope está cansada de esperar, de tecer e destecer, de aristocráticos códigos de honra, de teias de enganos e lides domésticas, de sonhar com o reencontro e o calor familiar, de ruminar saudades. Cansada de ser ícone de fidelidade, a arrancar à crítica livros inteiros, eterna viúva adiada apenas pela imaginação. Cansada de ser modelo de dedicação ao lar e exemplo entre as mulheres, cansada em fim da sua própria virtude, “tão saliente como/ um galo na testa”. Quer ser, ela mesma, voz crítica e possibilidade de literatura, que neste livro começa onde acaba a epopeia de Homero. A mulher do herói forte, “o dos mil artifícios”, fartou-se de ser apenas partenair: “Sou metade da mulher do mágico à espera do truque/ dizes-me; ninguém/ e eu pisco-te o olho: ninguém”. Na cartola de Ulisses não há coelhos para sacar. Apenas lances embaraçosos, ecos de arrastada ausência, cicatrizes, facadas num matrimónio cedo suspendido pela guerra: há a cama da feiticeira Circe, há a de Calipso, conhecedora exímia da gramática dos prazeres, há Nausícaa e aquele coup-de-foudre… E sonhos esvaziados como balões furados, penúrias que parecem instalar-se com a força do “fatum”. Ulisses é o próprio coelho tirado da cartola da tradição cultural e literária, não para abater mas para transformar.

Vai-se fazendo tarde, cada vez mais tarde. O corpo em apelo assinala a hora. E ao contrário de Ulisses, Penélope, com uma aguda consciência do tempo e das metamorfoses, não tem uma bolsa inesgotável de recursos de salvação. Tem-se a si mesma e ao seu querer, à sua vontade de emancipação: “ainda tenho um pé na epopeia/ por pouco tempo/ duas malas na mão/ ou seja estou de mãos livres/ até aqui tecia tecia e nada acontecia/ agora aqui em breve desapareço/ sem raiva nem ruído/ por ti não espero mais nem em literatura/ (deixo a porta aberta para entrares)/ já recebi todos os presentes/ fui todos os adjetivos/ viajaste-me/ por muito tempo/ acho-me demasiado cheia das coisas de dentro/ já conversei tudo com a mobília/ tecida e entretida tornei-me/ pouco a pouco uma história/ odisseia se vista de fora/ é bom que fábulas assim cheguem ao fim”.

Libertada das névoas mitológicas, não vive à distância do intocável. Mulher de carnalidade concreta, Penélope rejeita o seu lugar destacado no cânone literário para assumir o papel de mulher inquiridora e guia de viagem aos seus infernos quotidianos, à sua caixa escura: “ah! O amor o amor o amor o amor o amor/ o amor é cansativo o amor é uma espera/ o amor fez de mim cinema de animação/ forçou-me a usar as mãos para tecer/ enganar e entreter/ o amor faz-me frio faz-me fome o amor”. Fala na primeira e feminina pessoa, o que terá constituído para José Gardeazabal um desafio, cumprido com surpreendente solidez verbal. 41 poemas de rigorosa elaboração, sucedendo-se na ausência de um título, em ponderada sequência, tentados pela contenção, o ludismo, o lance de irónica amargura, compõem um poema dramático onde a surpresa espreita a cada ângulo, satisfazendo ou desfazendo, à vez, as expectativas do leitor. E termina no ponto exacto.

Há escritores assim: qualquer que seja o campo literário escolhido, as declinações praticadas, transportam consigo uma aura de segurança e uma capacidade de nos instalar em zonas onde não há lugar para o conformismo. À cultura da amnésia contrapõe este livro a memória literária e o valor de uma herança cultural aqui despedaçada pela força do verbo e do novo. Se a Odisseia é o grande poema dos que estão afastados e querem voltar a reunir-se, da fidelidade conjugal e familiar, este é o poema da ruptura, da força do não. E no entanto a reunião não é uma impossibilidade.

 

 

Dois poemas do livro:

 

Contam-me que os guerreiros regressam pelo descanso e pelas carícias

cansei- me de ser o teu descanso

quanto às carícias

a roupa vestida salva-me de mim mesma

entre a minha carne e os teus perigos

foste escolhendo sozinho

fazendo do sangue a tua cor

fizeste-me fada quiseste-te atlante

deste-me um lírio e um canivete

as más notícias para mim foram sempre flores

 

de longe tornaste-te voyeur

em viagem a vista é a melhor amiga da imaginação

chamo-te distante apequenas-te

de pé num navio as mãos nas orelhas

não me ofereces a atenção das sereias

és enorme e erras

o teu mapa é o meu calendário

sozinha pareço-me demasiado comigo

sonhei com o anonimato

a literatura oral agarrou-se a mim

com ambições de epopeia

em pensamento fui despida por desconhecidos que não disseram

olá

coisas que não quis chegaram-me mascaradas a meio da noite

já não creio em disfarces

já não espero por cicatrizes