No regresso às aulas na Ucrânia, nesta quinta-feira, em vez de se falar das férias, alunos trocaram histórias de horror. Ainda há estabelecimentos de ensino em ruínas, sendo que boa parte das escolas nas regiões mais próximas da linha da frente nem sequer reabriram, estando ainda o Estado ucraniano a tentar construir bunkers suficientes. Obrigando muitas das 6 milhões de crianças na Ucrânia a ter aulas à distância, sempre em risco de serem interrompidas por sirenes de ataque aéreo.
São traumas profundos, que marcarão uma geração inteira. Esta guerra, onde já morreram pelo menos 379 crianças, segundo os dados oficiais da Ucrânia, “tornou-se uma espécie de novo normal para as crianças”, lamentou Catherine Russell, diretora da UNICEF, à Associated Press. “O que é muito preocupante, porque não é assim que crianças deveriam viver, a pensar que podem ser atacadas a qualquer momento”, salientou.
Aliás, todos os alunos que tiverem aulas em pessoa têm como material obrigatório uma mochila de emergência, com todos os medicamentos que necessitarem e, no caso das crianças mais pequenas, o seu brinquedo favorito. Os exercícios de simulação de bombardeamento serão rotina, treinando professores e estudantes a acorrerem ordeiramente a caves tornadas em abrigos, com carteiras e casas de banho para que as crianças possam prosseguir as suas aulas.
Normalmente o regresso às aulas seria uma grande festa na Ucrânia, o chamado de “Dia do Conhecimento”, uma antiga tradição soviética, celebrada com entusiasmo, balões e trajes típicos. Como seria de esperar, este ano o ambiente não é o mesmo, por mais que pais e professores tentem. Mesmo as brincadeiras tornaram-se diferentes.
No recreio de uma escola em Chernihiv, uma cidade a norte de Kiev, que esteve semanas sob cerco no início da guerra, o jogo da apanhada foi substituído por checkpoints militares imaginários, avançou a AP, tendo crianças passado a imitar o ruído de mísseis a cair para se entreter. Já nas cerimónias do “Dia do Conhecimento” numa escola em Borodianka, os discursos foram mais patrióticos que o costume, precedido de um minuto de silêncio pelos caídos em defesa da Ucrânia, descreveu o Guardian.
Nesta escola em Borodianka, nos subúrbios da capital, perto de Bucha, as aulas terão de ser à distância este ano, apesar das forças russas terem sido escorraçadas da região, focando-se no distante Donbass. É que, quando os invasores ocuparam Borodianka, nem sequer a escola foi poupada, tendo sido usada como base pelos russos. Estes dedicaram-se a massacrar e torturar residentes, enquanto usavam salas de aula como casas de banho, grafitavam slogans anti-ucranianos nas paredes e vandalizaram quadros, equipamento de educação física e material informático, descreveu o jornal britânico. Ironicamente, até a sala dedicada à literatura russa foi destruída pelos invasores.
Plano curricular de guerra Não é só o receio de bombardeamentos que é novidade neste ano escolar ucraniano. Foram retiradas do plano curricular todas as aulas de russo, a língua usada em casa por cerca de um terço da população, tendo o estudo de obras literárias russas e bielorrussas sido postas de lado, apostando-se em autores ucranianos ou ocidentais.
As aulas de história também foram atualizadas, incluindo um módulo sobre a guerra em curso, desmitificando conceitos como o Russkiy Mir, ou o suposto “mundo russo”, do qual o Vladimir Putin acredita que a Ucrânia faz parte, usando-o para justificar a sua invasão. Já o ensino geografia terá como foco os aliados da Ucrânia e da Rússia, sendo “explicado aos alunos ucranianos quem são os seus amigos, e quem não são”, escreveu a jornalista Svitlana Morenets, num artigo no Spectator.
Também será introduzida a nova disciplina de “Defesa da Pátria”, que incluí algum treino militar básico ou de primeiros socorros, ou sobre o que fazer quando se encontra objetos explosivos. É que “a Ucrânia acredita que está a lutar pela sua alma assim como pelas suas fronteiras”, explicou Morenets. “E a educação das crianças é vista como uma importante linha de defesa”, salientou.
Uma Guerra de propaganda nas escolas Já na Rússia, assim como nas regiões ucranianas ocupadas, o 1 de setembro também foi “Dia do Conhecimento”, marcando o regresso às aulas. Em cidades como Kherson, Melitopol ou Mariupol, os invasores têm-se mostrado decididos em tentar trazer para o seu lado a população destas regiões maioritariamente russófonas com uma forte campanha de propaganda, a que as escolas não escapam.
Daí que o Kremlin, querendo moldar uma nova geração de ucranianos, tenha passado o verão a tentar recrutar professores por toda a Rússia para os colocar no leste e sul da Ucrânia, prometendo salários incríveis como compensação, avançou o Moscow Times.
Segundo justificou o Kremlin, a ideia seria dar aos alunos destas regiões um ensino “de acordo com os padrões russos”, explicou o ministro da Educação, Sergey Kravtsov, assegurando que o ensino russo “é um dos melhores do mundo”.
Outros, apontam que enviar professores “é uma maneira da Rússia divulgar a sua propaganda, a sua narrativa, estabelecer-se nos territórios ocupados”, notou Leyla Latypova, a jornalista que avançou com a notícia do Moscow Times, à conversa com a Vox. “Isso é o que colonizadores fazem, o que impérios fazem”.
Talvez por isso os anúncios de recrutamento para postos nas regiões “libertadas”, como lhes chamaria Putin, têm sido discretos, sendo enviados através de mensagens privadas ou em grupos de professores nas redes sociais. E também não espanta que lhes estejam a ser oferecidos salários equivalentes a até quatro mil euros, quando em republicas russas mais pobres, como o Daguestão, a média salarial mal passa os trezentos euros.
Afinal, os professores recrutados não só poderiam ser colocados em regiões que enfrentam uma contraofensiva da Ucrânia, no caso de Kherson, como têm sido notório um aumento da guerrilha ucraniana, assassinando militares e colaboradores. Não é difícil imaginar que entrassem na lista de alvos a abater professores vindos da Rússia, dando aulas apenas em russo e ensinando a crianças ucranianas um currículo aprovado pelo Kremlin.
Podemos ter uma ideia do que aprenderiam os alunos ucranianos nas regiões ocupadas olhando para o que se ensina na Rússia. Segundo o media independente russo Insider, é esperado sejam discutidos nas aulas os “valores da sociedade russa” e que crianças a partir dos dez anos aprendam que patriotismo implica estar disposto a alistar-se nas forças armadas.
Já a versão do programa de história para alunos entre os 15 e os 17 anos, intitulado de “meu país”, começa explicando que “a Ucrânia e a Rússia são duas partes de um único espaço histórico, espiritual e cultural”, avançou o Politico. Ou seja, o tal Russkiy Mir de que Putin tanto fala.