Na sessão de autógrafos na Feira do Livro de Lisboa, em que assinei a trilogia Estado Novo: a História Como Nunca Foi Contada e os dois volumes de Salazar e a sua Época, um leitor disse-me que a jornalista Helena Matos tinha contestado a minha versão segundo a qual não houve nenhuma cadeira envolvida na queda que Salazar deu em Agosto de 1968 e que estaria na origem do seu afastamento do poder.
Sei que muita gente duvidou do que escrevi. Afinal, durante 50 anos repetiu-se a história de que Salazar tinha caído no Forte do Estoril de uma cadeira de lona que se escangalhou ou rasgou. Joaquim Silva Pinto, que foi ministro de Marcello Caetano, disse-me: «A sua versão é muito convincente. Mas custa a crer, pois muita gente do regime me falou sempre da queda de uma cadeira…».
É verdade. Nunca ninguém (ou quase ninguém) pôs em causa esta versão e ela fez o seu caminho. O problema é que, se houve muita gente a falar do caso, as fontes em que todos se basearam eram as mesmas. Não houve outras.
Só duas pessoas, o calista Augusto Hilário e o barbeiro Manuel Marques disseram que presenciaram a queda. E uma terceira pessoa – a governanta Maria de Jesus – disse que ouviu um estrondo, foi a correr e viu Salazar a levantar-se do chão.
Ora, analisemos os seus testemunhos. O calista afirmou que a cadeira onde Salazar estava sentado se desequilibrou e Salazar caiu para trás – ajudando-o depois a levantar-se e voltar a sentar-se. O barbeiro diz que não havia cadeira nenhuma: que Salazar se atirou para trás pensando que lá estava um assento que tinha mudado de sítio e caiu desamparado.
Como é óbvio, um dos dois está a mentir. Não só as duas versões são incompatíveis, como se sabe que o calista e o barbeiro nunca iam ao Forte de Santo António no mesmo dia.
A versão do barbeiro foi considerada pouco credível e a do calista foi a oficialmente adotada. Mas há um pormenor nela que escapou a toda a gente. Salazar afirmou depois que a cadeira se desmanchara e ele caíra. Ora, o calista afirma que ajudou Salazar a voltar a sentar-se – depreendendo-se que a cadeira estava intacta.
Vejamos agora a versão de Maria de Jesus. Disse que, quando chegou ao local, já Salazar estava a levantar-se. E não fala da presença do calista. Ora, se este ajudara Salazar a erguer-se, como afirmou, a governanta tinha de falar dele. Mas há mais. O calista adiantara ter perguntado a Salazar se queria que lhe fosse buscar um copo de água. Ora, se a governanta estivesse presente, seria naturalmente esta a ir buscar a água.
As versões de Maria de Jesus e do calista também não colam, portanto.
Confrontando os três relatos, verificamos que não só não coincidem como são contraditórios entre si. E porquê? Porque todos mentiram: o calista, o barbeiro e Maria de Jesus. Um tempo depois, questionada sobre a cadeira, esta dirá que já não existe porque a deitou ao mar. Além disto ser inverosímil, uma empregada do forte, que pediu o anonimato, revelará que não havia naquela zona nenhuma cadeira de lona. Havia uma sólida cadeira de madeira em que Salazar habitualmente se sentava para ler os jornais e que nunca cairia para trás.
Os indícios são tantos e tão fortes que o que me espanta é que a versão da queda da cadeira tenha resistido ao tempo e à análise de tantos historiadores.
Até porque havia outros testemunhos relevantes que lançavam sobre ela dúvidas. O cirurgião Vasconcellos Marques, que operou Salazar, afirmaria que o enorme hematoma subdural lateral não era compatível com a queda de uma cadeira. E, depois de o meu livro ser publicado, ligou-me uma senhora, Teresa Burnay, cujo pai era amigo pessoal do cirurgião, o qual frequentava amiúde a sua casa, dizendo-me que nunca ouviu o médico falar em queda de uma cadeira mas sim de uma «queda na banheira».
Que a queda da cadeira é um mito, não tenho a mínima dúvida. Nunca estive tão certo de uma verdade como estou neste caso. Essa queda nunca aconteceu.
A dúvida pode estar no que então se passou. Por que mentiu Maria de Jesus e levou os outros a inventar histórias? A resposta parece evidente: porque o que se passou não podia ser contado.
Num tempo marcado pelo pudor, não seria aceitável noticiar que o austero presidente do Conselho tivesse sido vítima de uma queda quando estava a tomar banho (ou a sair do banho) – o que implicava ser ajudado a sair da banheira, nu, pela governanta ou outra pessoa. Era impensável a imprensa dizer isto. Então, Maria de Jesus inventou aquela cena da cadeira para proteger Salazar, como fez sempre. Mas como a mentira foi mal combinada, cada uma das ‘testemunhas’ apresentou a sua versão.
O barbeiro disse que não havia cadeira; o calista garantiu que ajudou Salazar a voltar a sentar-se na cadeira; a governanta afirmou que Salazar se levantou sozinho… e que depois atirou a cadeira ao mar.
Como é que uma história com tantas contradições resistiu durante tanto tempo?