‘São sempre as coisas invulgares que nos fazem querer olhar uma segunda vez’

Já foi mais de 80 vezes à Índia e 40 ao Afeganistão, onde fez fotografias que correram mundo. Steve McCurry esteve em Lisboa para inaugurar a exposição ICONS. Ao Nascer do SOL falou sobre cor, pessoas, viagens e o prazer de fazer uma ‘foto completa’.

Em meados de 1979, depois de uma temporada na Índia, Steve McCurry dedicou-se a explorar a região montanhosa do Norte do Paquistão. Em Chitral, encontrou um grupo de refugiados afegãos que lhe contaram que as suas aldeias tinham sido queimadas e ficou interessado naquela história. Vestido com uma tradicional kameez, para passar despercebido, atravessou clandestinamente a fronteira, levando como bagagem pouco mais do que as suas câmaras, rolos de fotografia e um canivete suíço. As suas imagens a preto e branco dos mujahideen, os guerrilheiros que combatiam o governo pró-soviético, apareceram pela primeira vez nas páginas do New York Times de 3 de dezembro de 1979 e fizeram logo sensação. No ano seguinte, McCurry recebeu o prémio Robert Capa, que distingue trabalhos que requerem «excecional coragem e iniciativa». 

Mas seria com as suas imagens de cores vibrantes que o fotógrafo norte-americano, nascido em Filadélfia em 1950, conquistaria o coração de fãs em todo o mundo. Imagens como a de Sharbat Gula, a refugiada afegã de olhos verdes que retratou em Peshawar, Paquistão, e surgiu na capa da National Geographic de junho de 1985. Já lhe chamaram a ‘Mona Lisa do século XX’.

Essa é uma das cerca de cem fotografias patentes na exposição ICONS, patente na Cordoaria Nacional até 22 de janeiro (atenção: os bilhetes são vendidos em exclusivo através do site https://stevemccurryicons.com /lisboa ou da aplicação da Fever, a promotora do evento).

Mas há muito mais para ver, desde as imagens célebres das monções na Índia a retratos de homens santos ou monges budistas, ou instantâneos da guerra do Kuwait, em 1991. «Foi horrível, o chão estava cheio de minas e havia corpos carbonizados por todo o lado», recordou o fotógrafo durante uma visita guiada aos jornalistas. Também falou sobre um retrato de um menino da etnia hazara com um cinto de balas à volta do peito, feito numa rua de Cabul. «Fotografei-o em 92 e ainda estamos em contacto. Às vezes mando-lhe ajuda para os estudos dos filhos. Continua exatamente igual, é espantoso. Hoje vende sumo na rua».

É, de certa forma, uma coincidência feliz que esta exposição decorra na Cordoaria, a fábrica onde outrora era feitas as cordas para os navios que partiam para as Índias e para outras paragens remotas. McCurry também é um viajante incansável: só na Índia estima ter estado mais de oitenta ou noventa vezes (já perdeu a conta), e no Afeganistão umas quarenta. Fotografou no Tibete, na Birmânia, no Camboja, em Caxemira, no Japão, no Mali, no Iémen, na Etiópia… e até em Lisboa, onde já veio por diversas ocasiões. Mas na exposição não há qualquer foto feita na capital portuguesa.

«Talvez mostre esse trabalho noutra exposição», diz-nos.

Antes de mais, o que o levou a querer ser fotógrafo?
Quando estive na faculdade estudei cinema e também estudei fotografia. E cheguei a um ponto em que tinha de escolher entre ser cineasta ou fotógrafo. As circunstâncias levaram-me a optar pela fotografia. Em 1978 comprei um bilhete só de ida para a Índia e duzentos rolos de fotografia. E nunca mais parei, já lá vão mais de 40 anos.

As viagens tiveram um peso importante nessa decisão?
Sim. Queria decididamente uma profissão que me permitisse viajar. Queria conhecer o mundo e achei que a fotografia podia ser o meu passaporte.

Um dos núcleos desta exposição é dedicado às suas fotografias da monção. Como começou esse projeto?
Havia um fotógrafo da Magnum neo-zelandês chamado Brian Brake,  que tinha feito no início dos anos 60 um ensaio fotográfico fabuloso sobre as monções, que foi publicado na Paris-Match e na Life em 1962. Eu tinha uns onze anos quando vi essa revista em casa da minha avó, e enquanto folheava a revista pensava para mim: ‘Este sítio é mágico’. Aquela chuva toda era emocionante. ‘Um dia também tenho de ver isto’. Testemunhei duas monções. Passei seis meses a viajar na Índia, no Nepal, no Bangladeche, na Tailândia, em Singapura…

E foi aí que fez a célebre fotografia de um alfaiate com água pelo pescoço a levar a sua máquina de costura…
Estava em Porbandar [a cidade onde nasceu Gandhi]. A oficina desse alfaiate tinha sido destruída e ele resgatou a máquina de costura. Vi-o a descer a rua, havia pessoas empoleiradas nas varandas e nos telhados que olharam para ele e para mim e começaram a gritar: ‘Este estrangeiro vai-te tirar uma fotografia’. Acho que ele se apercebeu e por isso tem aquele sorriso. Eu também estava dentro de água, mas numa zona mais alta.

Deve ser muito difícil fotografar com tanta água à volta.
Extremamente difícil, não só fisicamente mas também porque um passo em falso e podes perder a máquina. É muito stressante. Eu não diria que foi especialmente divertido. Nem consigo imaginar como estas pessoas conseguem continuar com as suas vidas em casas e ruas inundadas, ir trabalhar e fazer as compras. Outra coisa é que as ruas têm estas tampas dos sistemas de saneamento, e às vezes essas tampas são arrancadas, portanto tem de se ter cuidado para não cair no buraco, porque aí não vamos perder só a máquina, podemos perder a vida.

Li em tempos que no início da sua carreira, quando era repórter de guerra, tinha dificuldade em acompanhar os acontecimentos. No momento em que chegava lá os combates já tinham terminado e toda a gente tinha ido para outro sítio qualquer. Isso levou-o a perceber que não podia ser um repórter de guerra clássico, mas ao mesmo tempo que podia fazer um tipo diferente de trabalhos. É importante para um fotógrafo perceber o seu próprio ritmo, o seu próprio compasso?
Encontrar um caminho próprio exige muito trabalho: é preciso perceber para onde ir, quando ir, como ir. E tem de se ter a certeza de que se fez a opção certa, porque há histórias que queremos contar que depois se perdem para sempre. Por isso é fundamental sermos inteligentes e cuidadosos quando escolhemos o sítio onde vamos fotografar. E depois, claro, temos de acreditar naquilo que fazemos, tem de haver paixão, isso é fundamental para que o nosso trabalho sobressaia.

Ao mesmo tempo, deve ser importante estar em sintonia com cada local. Imagino que seja completamente diferente fotografar numa cidade frenética como Bombaim ou num retiro budista, onde o tempo corre lentamente.
Sim. A Birmânia, onde agora não se pode ir por causa da guerra, foi sempre um dos meus países favoritos para trabalhar. Era tranquilo, as pessoas deixavam-se fotografar sem problemas. Cuba é outro sítio onde tenho sempre vontade de regressar. As pessoas são simpáticas, e é um ambiente visualmente rico, devido à situação política, que fez com que ficasse parado no tempo.

Por falar em Cuba: carros antigos e edifícios decrépitos oferecem temas muito mais poéticos e apelativos a um fotógrafo do que um carro atual ou um edifício novo. É mais fácil trabalhar em países pouco desenvolvidos?
Pensemos num país como a Índia. Por um lado, a Índia é muito desenvolvida, tem imensas empresas de alta tecnologia e instalações do mais moderno que existe. Mas também tem pessoas que vivem em aldeias remotas. Normalmente, é mais difícil fotografar, ou até considerar interessante, aquilo que está muito próximo de nós. É quando vemos algo novo, algo desconhecido, que temos vontade de pegar na máquina fotográfica. Um centro comercial em Lisboa ou Nova Iorque, por exemplo, não tem muito interesse…

Estava a pensar na locomotiva a vapor que aparece numa das suas fotografias emblemáticas, em frente ao Taj Mahal. Se fosse um comboio moderno, a imagem perderia parte do encanto.
São sempre as coisas pouco vulgares que nos atraem, que nos fazem querer olhar uma segunda vez. Essa fotografia do Taj é um pedaço de história. É como ver alguém seguir pela estrada fora numa carruagem puxada por cavalos. Não é algo que se veja no dia-a-dia na Europa ou nos Estados Unidos, embora tenhamos viajado assim ao longo de milhares de anos. Sentimos que estamos a recuar no tempo. Gosto de visitar países que talvez sejam menos desenvolvidos, mas por isso mesmo mantêm o seu caráter, a sua cultura. Aqui todos nos vestimos da mesma maneira – uma camisa e umas calças – enquanto nalguns povos isso faz parte da sua identidade única e até da personalidade de cada um. É espantoso ver como se ornamentam, em comparação com a uniformidade das roupas nos países desenvolvidos. 

Uma vez, no Norte do Paquistão, perto de Skardu, estava a tirar uma fotografia a uma mulher lá ao fundo, com uma bela paisagem atrás, e ela atirou-nos uma pedra. Felizmente não nos acertou mas ficámos avisados. Costuma trabalhar em países onde as pessoas não gostam de ser fotografadas. Teve reações parecidas?
Tive um par de incidentes desse género, ao início. Tentei aprender com isso e evitar aborrecer as pessoas. Às vezes cometemos erros. Achamos que temos permissão para fotografar mas se calhar não temos. Mas podemos sempre sorrir e tentar perceber, pelo olhar da pessoa, se ela se importa ou não de estar a ser fotografada. Nunca quis perturbar, deixar uma má impressão ou chatear as pessoas, por isso sou muito cuidadoso.

Como aborda estas pessoas que fotografa? Explica-lhes quem é e pede-lhes para posarem para si?
Sou basicamente uma pessoa tímida. Ir ter com uma pessoa no meio da rua e dizer-lhe que a vou fotografar não é uma coisa normal. É uma situação um pouco estranha e acaba por dar muito trabalho até se sentirem à vontade. Acho que é preciso ter coragem, ser respeitador, educado, e fazer com que as pessoas confiem em nós. Um pouco de humor ajuda e ter alguma confiança também.

E depois de tirar as fotografias fica com as pessoas, conhece as famílias, ficam amigos?
Às vezes temos tempo, estamos na aldeia e vivemos com as pessoas, outras vezes estamos a andar na estrada, cruzamo-nos, apresentamo-nos, e depois cada um segue para o seu lado. Depende da situação. Outras vezes ficamos com a morada, mantemo-nos em contacto e vemo-nos noutras visitas que eu faça, mas em muitos sítios não têm sequer uma morada, não têm email.

É mais fácil estabelecer uma ligação com as crianças?
As crianças são mais difíceis. Se estiver com um adulto, pode conversar, um miúdo vai fazer sempre o que não deve. Com um adulto pode-se chegar a acordo para fazer um retrato, com uma criança não se consegue falar, correm daqui para ali. Por exemplo, ando há anos a pedir à minha filha para olhar para a lente. Ela nunca olha. Nunca, nunca olha. Assim que eu baixo a máquina, ela olha para mim. Está a gozar. É extremamente difícil fotografar crianças. Mas se ficarmos a observá-las o tempo suficiente conseguimos tirar uma boa fotografia. Mas adoro miúdos. Temos é de os apanhar quando estão a fazer alguma coisa. É impossível que fiquem quietos, como um cão ou um gato, tem de se apanhar enquanto fazem as coisas do dia-a-dia, quando estão na escola ou nas brincadeiras.

Às vezes pedem-lhe dinheiro?
Claro. Cada um terá a sua opinião, mas acho que deve ser visto caso a caso. Há situações em que dar dinheiro pode ser uma coisa boa, noutras pode ser uma coisa má – por exemplo, se acharmos que aqueles miúdos deviam estar na escola em vez de andar a mendigar. Mas não se deve generalizar.

Ser americano pode constituir uma desvantagem para um fotógrafo nalguns países?
Nem por isso. Não posso dizer que alguma vez tenha tido problemas. Pelo menos nunca tive essa sensação de ser um alvo ou de as pessoas me odiarem por ser americano. Às vezes, se estivermos em sítios mais afastados, nem fazem a distinção se é japonês, francês ou americano – é apenas um estrangeiro. Não, não acho que seja uma desvantagem.

A cor desempenha um papel importantíssimo na sua fotografia. Mas começou por fotografar a preto e branco.
A cor faz parte da vida, a vida não é a preto e branco. Não se pode contar a história de um mosteiro tibetano, por exemplo, sem aquele cor-de-laranja vivo. Vemos a cores, vivemos a cores e devemos mostrar as coisas como elas são.

Nunca pede a alguém para usar um certo xaile vermelho ou para se encostar a uma parede azul que fique bem na imagem?
Quando estive no Tibete havia um mosteiro onde passava muita gente, com uma parede que fazia um belo fundo para as fotografias. Instalei ali o meu ‘estúdio’ e fiquei a fotografar as pessoas enquanto passavam. Mas não lhes pedi para irem para lado nenhum, elas já estavam lá. Eu só fotografo as pessoas, não lhes peço para se vestirem de maneira diferente ou para usarem trajes tradicionais. Têm de usar as roupas que usam normalmente.

Vemos muitas vezes magia a acontecer naquele retângulo das fotografias. Também sente essa magia quando está a disparar o obturador?
Sim. Quando vemos certas imagens através do viewfinder [a pequena ‘janela’ da máquina fotográfica por onde se espreita] temos um sentimento profundo de satisfação, de alegria por estarmos a fazer uma ‘foto completa’. A vida é tão aleatória que conseguir combinar os diferentes elementos numa composição apelativa é artisticamente muito recompensador.

E donde vem essa magia? É sorte, técnica, estar no sítio certo?
É uma combinação de muitas coisas. Tem que ver com desenvolver um olhar penetrante, mas também advém da experiência, de dominar a luz, de perceber como as cores se relacionam. Ao fim de praticarmos dezenas de milhares de vezes – dez, cem, duzentas, quatrocentas mil –, percebemos o que resulta e o que não resulta, que erros cometemos e como corrigi-los. É como um músico que, com a prática, acaba por conseguir tocar já sem pensar. Mas adquirir essa capacidade requer milhares de horas de prática.

E com isso a magia torna-se mais frequente?
Tornamo-nos mais proficientes.

No início da conversa falei sobre ritmo. Um fotógrafo tem de ser rápido para captar o momento. Mas outras vezes tem de ser paciente.
Exato. Umas vezes rápido, umas vezes lento, outras vezes bum-bum-bum. As coisas podem acontecer muito depressa. Uma pessoa pode dizer: ‘Excelente, tire-me uma fotografia à vontade’. E quinze segundos depois vai-se embora. ‘Adorei, foi divertido, obrigado por me fotografar. Agora tenho de ir para o trabalho’. E desapareceu. Quinze segundos. Outras vezes podem dizer-me: ‘Venha a minha casa, convido-o para almoçar’. É sempre diferente, está sempre a mudar, como um caleidoscópio, e isso faz parte da diversão.

Não existe nesta exposição nenhuma fotografia feita em Portugal, pois não?
Não. Fotografei muito nas ruas de Lisboa. Talvez mostre esse trabalho noutra exposição.

Man Ray, em 1941, durante a guerra, veio a Lisboa apanhar um vapor para Nova Iorque, e fez cá uma fotografia de uma peixeira que ele próprio considerava uma das suas melhores. Mas roubaram-lhe a máquina e ele perdeu a fotografia. Já lhe aconteceu alguma coisa parecida?
Talvez. Penso que já toda a gente passou por isso. Temos de seguir em frente, não podemos ficar a cismar nisso, essas coisas más podem acontecer a qualquer um. Não podemos deixar que sejam um fator negativo nas nossas vidas, porque não adianta nada, não é produtivo. Devemos tentar libertar-nos de todos os pensamentos negativos. Se uma coisa dessas aconteceu, devemos aprender com ela, mas não ficar obcecados. Caso contrário ficaríamos deprimidos. Deixarmo-nos enredar por isso não vai resolver nada.

Tem saudades de fotografar com película kodachrome?
Não. Foi incrível no seu tempo, como andar de cavalo também devia ser.

Era certamente mais romântico…
Mas se você hoje quiser ir ao Porto, pega no seu carro ou apanha um autocarro ou um comboio. Não vai de cavalo, como se fazia há 150 anos. Não, não tenho saudades, gosto muito de trabalhar com o digital.