O regime de Kim Jong-un, desesperado para negociar algum alívio nas duras sanções de que a Coreia do Norte é alvo, não parece nada satisfeito por ter saído da agenda mediática internacional.
Como tal, decidiu pregar um valente susto aos seus vizinhos, esta terça-feira, disparando um míssil balístico sobre o Japão, pela primeira vez em cinco anos, tendo este voado mais de 4500 km. Uma distância suficiente para que atingisse o território norte-americano de Guam, se tivesse seguido outra trajetória antes de se despenhar sobre o oceano Pacífico.
Lá que foi um susto foi. A população do norte do Japão, incluindo na ilha de Hokkaido e na cidade de Aomori, acordaram com o som de sirenes. E receberam um sms do Governo onde se lia: “A Coreia do Norte parece ter lançado um míssil. Por favor vão para dentro de edifícios ou do metro”, avançou um correspondente do Guardian. Tendo os transportes públicos sido suspensos em Hokkaido e Aomori, soando também alertas noutros pontos do Japão.
Apesar do míssil norte-coreano ter sobrevoado o país a mais de mil quilómetros de altitude, mais alto até do que a Estação Espacial Internacional, não é de estranhar o pânico da população, que ainda recebeu mensagens a avisar para o risco da queda de destroços. Claro que, tratando-se do Japão, também se viram exemplos de uma calma quase inacreditável. Como um vídeo que se tornou viral nas redes sociais, de cidadãos a saírem tranquila e ordeiramente do metro de Tóquio enquanto soavam sirenes.
A mensagem que Pyongyang procurava transmitir é óbvia. “Não se esqueçam de nós, queremos que se continuem a focar em nós”, é a leitura que faz Paul French, autor do livro Coreia do Norte: Estado de paranoia, escrito após ter o raro privilégio de visitar os bastidores da Coreia do Norte, fazendo-se passar por potencial investidor.
Ultimamente, este regime eremita tem estado estranhamente silencioso. Algo que French pensa poder estar relacionado com a pandemia. A ideia é que a covid-19 tenha chegado com algum atraso à Coreia do Norte – não havia propriamente um grande número de turistas ou visitantes a aterrar no aeroporto de Pyongyang e a propagar o vírus – e talvez ainda esteja a alastrar, num país onde se sabe pouco do que se passa. E onde a subnutrição e a falta de acesso a medicamentos torna qualquer doença ainda pior.
“Não sabemos quão mau foi a covid-19 na Coreia do Norte”, salienta este autor britânico, que mantém contacto próximo com exilados no Reino Unido, lar de uma das maiores comunidades norte-coreanas fora da Coreia do Sul ou da China.
“Exilados norte-coreanos têm-me dito que lá muita gente não tem aparecido no trabalho, que se fala de uma estranha doença, alguns edificios são subitamente fechados”, explica French. “Mas não há nenhum confinamento comparável ao que vimos em Xangai ou noutras cidades”.
Também não foram divulgadas imagens de grandes campanhas de vacinação. “E obviamente este é um país onde poderiam simplesmente pôr toda a gente em fila indiana para ser vacinada, se tivessem doses e quisessem saber”, lembra. Claro que, “Se visse que ia perder um certo número de pessoas, o regime iria simplesmente deixá-lo acontecer”, diz o autor britânico. “É impossível saber com certeza”.
Chamar a atenção O certo é que há muito tempo que Kim Jong-un não faz manchetes. Não por falta de tentativas, atenção. Ainda a semana passada conduziu quatro rondas de testes de mísseis balísticos de curto alcance, mas não conseguiu despertar grandes atenções.
O mundo continua focado em assuntos como o conflito na Ucrânia, na crise energética e alimentar que isso gerou, no aumento do custo de vida. A última vez que Pyongyang conseguiu alguma atenção mediática foi quando se soube que ia começar a vender munições aos russos, sendo visto como sinal de fragilidade da máquina de guerra do Kremlin.
Para o regime dos Kim, que sempre usou as suas ameaças e o seu programa nuclear como moeda de troca para conseguir mais alguma da ajuda humanitária que depende, é um problema enorme. Não só a Administração de Joe Biden não lhes tem ligado nenhuma, como “com a situação na Ucrânia, e outras crises também, o dinheiro que a ONU e o Programa Alimentar Mundial consegue reunir para a Coreia do Norte diminuiu. E já vinha a diminuir há uns anos”, avalia French. Que não estranharia uma escalada nos testes de mísseis da Coreia do Norte, talvez até testes nucleares.
“Vem aí o inverno”, aponta o autor britânico. “Normalmente, outubro é quando começa a ficar muito frio na Coreia do Norte e começamos a ver problemas com o abastecimento de comida e medicamentos, bem como escassez de energia”, explica. “É certo como um relógio. Esta é a altura em que começamos a ver algumas ameaças e exigências de Pyongyang, de que querem mais ajuda”.
Até agora, a reação de Washington ao míssil disparado sobre o Japão foi realçar o seu compromisso em defender este seu aliado. Conduzindo exercícios conjuntos com caças americanos e japoneses sobre o mar do Japão, avançou a Nikkei, em simultâneo com exercícios com forças sul-coreanas. Contudo, quem sabe que negociações poderão decorrer nos bastidores?
“É interessante que a Administração Biden até agora não teve de pensar na Coreia do Norte, de todo”, nota French. “A Administração Clinton teve de pensar nisso, a de Bush também. A Administração Obama tinha a chamada ‘paciência estratégica’. E Trump, claro, teve aqueles encontros bizarros com Kim Jong-u. Mas Biden não teve de dizer nada sobre a Coreia do Norte”.
Isso é estranho para o regime, aos olhos do qual há uma certa codependência com os EUA. Ou seja, por um lado vêm-nos como estando constantemente a minar a dinastia Kim, por outro servem como base da sua legitimidade. Quase toda a propaganda norte-coreana gira à torno da Guerra da Coreia (1950-1953) – na qual bombardeamentos americanos mataram uns três milhões de coreanos, arrasando três quartos de Pyongyang – e da promessa que o mesmo não voltará a suceder.
“Provavelmente o regime está a pensar em porque é que os americanos não estão a falar deles. Sentem-se solitários”, explica French. “Mas ninguém está a pensar na Coreia do Norte de momento. Aqui no Reino Unido estamos a pensar como é que nos vamos aquecer no inverno, quanto mais na Coreia do Norte”.