“Belém sempre gostou de tirar selfies com os portugueses”…

João Pereira Coutinho só vê uma hipótese para o Presidente poder utilizar a ‘bomba atómica’ e dissolver o Parlamento: António Costa trocar São Bento por um cargo internacional. E confessa que o segundo mandato de Marcelo tem sido, para si, um ‘mistério’.

Fale-me um pouco deste seu novo livro – Diário da República. O que o levou a compilar esta coletânea?

A realidade. O livro começa em 2015 e termina em meados de 2022. Isso significa que começa no reino da fantasia, quando se ‘virou a página da austeridade’, e depois vai descendo, como uma avioneta sem combustível, até aterrar aos solavancos na pandemia e na guerra da Ucrânia. A guerra marca um outro capítulo na nossa história comum e por isso entendi terminar o livro agora. O que vier a seguir será diferente e, suspeito, pior.

Portugal é um país onde a política dá pano para mangas para escrever… qual foi o critério para escolher as histórias que entraram neste livro?

O livro reproduz os textos que escrevi para o CM e para a Sábado pela ordem em que foram escritos. Escrevo todos os dias, no meu diário, e é dali que saem os artigos que publico em Portugal e no Brasil. Mantendo essa linha cronológica, foi possível revisitar este período através dos textos que mais gostei de escrever e reler. Aliás, de todos os livros que publiquei, este é aquele de que mais gosto.  

Contacta diariamente com os futuros líderes e decision-makers do país. Acha que esta geração é uma geração sem garra, desmotivada?

É uma geração mais apática e assustada. E tem razões para isso. O século XXI tem sido bastante amargo para os jovens. Uma crise financeira brutal, depois a pandemia, agora a guerra da Ucrânia. Eles nunca conheceram a douceur de la vie de quem nasceu na década de 70, chegou à idade adulta com a queda do Muro de Berlim e depois viveu tranquilamente o ‘fim da história’ da década de 90, sem grandes angústias de trabalho.

A questão política fundamental é saber em que se irá traduzir esse medo e essa apatia. Recentemente, os politólogos Roberto Foa e Yascha Mounk revelavam que as novas gerações têm uma visão muito mais desencantada da democracia liberal do que os seus pais ou avós. Daí a abstenção, a fraca militância partidária e a desconfiança nas instituições. São maus sinais. 

Escreve durante e sobre o período da ‘geringonça’ de esquerda. Pode haver, no futuro próximo, uma reedição à esquerda protagonizada por Pedro Nuno Santos? E à direita?

A geringonça de esquerda foi uma espécie de jangada para três náufragos: Costa, que perdeu as eleições; e Jerónimo e Catarina, que viram no arranjo uma forma de influenciarem a governação e mostrarem a sua utilidade aos respetivos fiéis. Pode voltar a acontecer – mas vejo essa geringonça mais facilmente à direita do que à esquerda, até porque Pedro Nuno Santos pode ter relevância no aparelho e nos media, mas dificilmente ganharia o país.

Não há contradição num PS que está sempre a alertar para os perigos dos acordos da direita com o Chega, quando foi o próprio que integrou no Governo partidos da esquerda radical?

Existem duas contradições. A primeira é essa. A segunda é que o PS é o principal interessado no crescimento do Chega, precisamente para inviabilizar um governo de direita ‘moderada’. François Mitterrand fez o mesmo em França com a sua desastrosa reforma eleitoral: para esmagar a direita tradicional, deu maior voz aos extremos. A família Le Pen agradeceu. Ventura também agradece. 

Considera que este Governo, que em apenas seis meses já conta uma longa lista de polémicas, tem condições para chegar ao fim da legislatura?

Depende do Presidente. No discurso do 5 de Outubro, Marcelo lá se viu obrigado a lembrar a António Costa, pela segunda vez, que tem a prerrogativa de dissolver a Assembleia da República. Acho que Marcelo já percebeu uma coisa mais ou menos óbvia: o entusiasmo de Costa pela governação é nulo, ou quase nulo, e as mil polémicas que se amontoaram são o resultado disso. 

Jorge Sampaio dissolveu o Governo de Santana Lopes – de maioria absoluta – após quatro meses. Marcelo Rebelo de Sousa pode repetir a ‘bomba atómica’?

Só num cenário: se o primeiro-ministro aceitar um ‘desafio’ internacional qualquer antes da legislatura terminar, como foi dito por Marcelo na tomada de posse do governo. De resto, e a menos que exista o colapso completo do Executivo, seria um erro repetir o gesto altamente abusivo de Jorge Sampaio. Um Presidente não pode acabar com um Governo simplesmente porque não gosta dele. 

No seu discurso no 5 de Outubro, Marcelo Rebelo de Sousa atirou farpas ao Governo de António Costa. Acabou a amizade entre S. Bento e Belém?

Prefiro responder-lhe de outra forma: talvez tenha acabado a amizade entre os portugueses e S. Bento, como se vê pelas sondagens. E Belém sempre gostou de tirar selfies com os portugueses… 

O Presidente da República parece estar a fazer um esforço por afastar-se das polémicas nacionais… a fazer lançamentos dos San Francisco Giants, ou a visitar o Brasil… que leitura faz do atual mandato do PR?

Entendi a lógica do primeiro mandato: era conseguir um segundo. Mas este tem sido um mistério para mim, sempre a oscilar entre a ausência e a crítica velada, como se viu no 5 de Outubro. Veremos qual dos registos vai predominar. Uma coisa é certa: o otimismo do primeiro-ministro sobre a economia e a inflação começa a soar estranha aos ouvidos do Presidente. Mais vale tarde…

Há, em Portugal, falta de líderes políticos fortes, como no passado Sá Carneiro, Mário Soares, até Álvaro Cunhal… esses ‘mitos’ políticos já desapareceram?

Há sempre a tentação de olhar para trás e dizer: antigamente havia líderes, hoje é esta desgraça! Mas é uma ilusão: todos os nomes que refere eram, no seu tempo, abominados por uma parte do país. O mesmo acontecia com figuras hoje míticas como Churchill ou De Gaulle. O juízo da história é diferente do juízo da opinião publicada, acabando por revalorizar certos nomes. Ou, em alternativa, rebaixando-os: quando Warren Harding deixou a Casa Branca (na horizontal, porque morreu no cargo), era tido como um dos melhores Presidentes americanos. Hoje, é consensualmente tido como um dos piores. 

Meloni em Itália, a coligação de direita na Suécia, a Frente Nacional a crescer em França… a Europa está a guinar à direita?

Não vou tão longe. Tem avançado em Itália ou na Suécia, não tem tido sucesso na Alemanha ou na Noruega. Seja como for, aqueles que achavam que a pandemia seria a sepultura do populismo, porque revelara a incompetência dos líderes populistas em momentos decisivos, enganaram-se. Aliás, é possível afirmar o contrário: os efeitos económicos e sociais da pandemia são terreno fértil para o populismo. Mas não só: os partidos populistas crescem porque os partidos tradicionais deixaram de responder às preocupações de pessoas reais, que depois votam nos extremos por convicção ou desespero. 

Há uma discrepância entre a verdadeira intenção de voto e a ideia que muitas vezes é passada pela comunicação social e pela internet? Por exemplo, no Brasil, estimava-se uma grande vitória para Lula logo na primeira volta e, afinal, os brasileiros vão a uma segunda volta.

O que é válido para os partidos tradicionais, é válido para a bolha mediática, que é hoje responsável pela pergunta das 7 da manhã. Sabe o que é isso? É aquele momento em que as pessoas se levantam, ligam a televisão ou a rádio, e ficam espantadas com certos resultados eleitorais. Esse espanto só é possível porque foram alimentadas por uma narrativa mediática feita de desejos, não de realidades. Foi assim com Trump, o Brexit, agora as eleições brasileiras. Não admira que muitos jornais vivam permanentemente de mão estendida para o Estado. Como escrevo no meu livro sobre este fenómeno, viver constantemente na Lua custa os olhos da cara.