Por João Sena
Falar do futebol feminino em Portugal é mais do que lembrar golos, vitórias e derrotas. É falar de resistência, de barreiras quebradas e de muita paixão pelo mais belo jogo do mundo. É lembrar preconceitos, amadorismo e, mais recentemente, assédio sexual.
Raquel Sampaio já desempenhou vários papéis na área do futebol. Jogou no Estoril-Praia, foi diretora do futebol feminino do Sporting e agora gere a Teammate Football Management, a primeira empresa em Portugal a dedicar-se exclusivamente ao futebol feminino.
Neste momento, trabalha com 24 jogadoras e dois treinadores dos principais clubes nacionais. “O meu objetivo é acabar com a discriminação e contribuir para que as jogadoras tenham as mesmas condições do futebol masculino”, fez questão de salientar. “Temos um posicionamento premium e apostamos, acima de tudo, na qualidade.
Além da representação e intermediação, oferecemos diversos serviços, caso da análise de rendimento, psicologia do desporto, assessoria de comunicação e jurídica, consultoria linguística, nutrição e Personal Trainer. "Não somos concorrentes de ninguém, somos um complemento ao trabalho dos clubes”, sublinhou.
Além disso, a empresa dá suporte às atletas em final de carreira. “Não fazia sentido representar uma jogadora durante vários anos, e depois deixar de a apoiar só porque abandona o futebol. Muitas delas têm um curso superior e podem seguir outra via, mas quem quiser continuar no futebol pode contar com o nosso apoio”.
Profissionalizar O nível competitivo aumentou nos últimos cinco anos, neste momento há quatro clubes profissionais: Benfica, Sporting, Braga e Famalicão, mas ainda há um longo caminho a percorrer. “É fundamental profissionalizar o futebol feminino. Foi isso que sucedeu em outros países e vai ter de acontecer em Portugal para não ficarmos para trás” alertou Raquel Sampaio.
Ter as mesmas condições de trabalho é a principal prioridade. “As jogadoras têm de falar e ser mais participativas. Não devem ter medo de exigir aos clubes condições de trabalho idênticas às que tem a equipa sénior masculina”.
Há uma enorme diferença de tratamento para o futebol masculino, e aquilo que pretendem é tão simples como “treinar no mesmo local onde treinam os homens, jogar em campos relvados, ter um balneário próprio, disputar os jogos mais importantes no estádio onde joga a equipa masculina, ter uma equipa técnica com o número de pessoas suficientes em vez de ter elementos a acumular funções e ter o mesmo equipamento”.
Na fase seguinte, a luta será por melhores condições financeiras, “infelizmente, ainda estamos longe de poder falar em igualdade salarial. Há uma grande disparidade entre os ordenados do futebol masculino e futebol feminino dentro do mesmo clube, mas, neste momento, faz mais sentido lutar por outras coisas”.
Só com uma liga profissional se consegue o desejado equilíbrio nas competições nacionais. Neste momento, o Benfica, com um orçamento de dois milhões e meio de euros, e o Sporting, com um milhão de euros, são de outro campeonato, sendo que a aposta do clube da Luz passa igualmente por ter uma boa presença na Liga dos Campeões Europeus feminina.
A fundadora da Teammate Football Management defende um maior investimento na modalidade e explica os motivos: “O futebol feminino está a ganhar adeptos e maior visibilidade. Muitas jogadoras são figuras públicas, são influenciadoras, e já criaram a sua marca. As empresas deviam, por isso, investir mais, quem apostar agora vai ter uma vantagem competitiva face a quem entrar mais tarde”.
Mas há outros aspetos que importa melhorar. “Os dirigentes têm que evoluir. Também nesta área deve haver profissionalismo. As pessoas devem entrar para o futebol feminino com o objetivo de desenvolver a modalidade e não apenas com a intenção de passar para o futebol masculino”, alertou a fundadora da primeira empresa de agenciamento do futebol feminino.
Preconceitos e assédio Futebol é o gosto de jogar, de dar espetáculo e de fazer parte de uma equipa, mas não é um mundo perfeito. É reconhecido o papel da mulher e os preconceitos têm vindo a cair. “Antes havia mais piropos e os pais tinham receio de pôr as filhas a jogar futebol. Com a entrada dos grandes clubes essa mentalidade mudou um pouco e, hoje em dia, há cada vez mais raparigas no futebol”.
Quanto a expressões do tipo “o futebol não é para meninas”, Raquel Sampaio foi perentória: “Elas estão a demonstrar o contrário. Essa frase não faz qualquer sentido porque o futebol não tem género”.
Nas últimas semanas o futebol feminino português estremeceu quando várias jogadoras da equipa sénior do Rio Ave acusaram o ex-técnico Miguel Afonso, atual técnico do Famalicão, de assédio sexual na temporada 2020-21. Também Samuel Costa, atual diretor desportivo do futebol feminino do Famalicão, foi acusado de assédio sexual.
Os dois encontram-se suspensos, mas as acusações, essas, ficaram. Sobre esse tema, lembrou: “Não é só um problema do futebol, é transversal a outras atividades e à sociedade. A prática de assédio a jogadoras é mais frequente do que se pensa. Já existia ruído no passado, mas só agora foram feitas denúncias. Várias jogadoras passaram por isso, mas não disseram nada porque tinham receio e não sabiam a quem apresentar queixa. Agora, com estas denúncias, as pessoas vão ter mais cuidado na forma de se relacionarem com as jogadoras e esses comportamentos vão ser menos frequentes”.
Para Raquel Sampaio, há vários tipos de assédio que podem indiciar coação e condicionar a vida das atletas, como explica: “Já passei por isso e posso dizer que é uma situação muito desconfortável. Nessa altura questionamos tudo. Se estás a tentar cumprir o teu trabalho e pedes alguma coisa sabes que do outro lado vai haver uma exigência ou, então, não pedes nada e isso pode afetar o teu desempenho profissional”.
Percebeu-se agora que tem havido passividade dos clubes e da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) sobre um tema quente como é o assédio no futebol. “É um assunto delicado, mas que deve ser falado por todos. A Federação tem um site onde as jogadoras podem denunciar casos de assédio, mas foi pouco divulgado e a maioria das atletas não sabia que existia”.
Já nos clubes, ainda se tenta branquear muita coisa, como aconteceu no Famalicão. “Ao saber por vários agentes desportivos o que se estava a passar, o clube nada fez e tentou abafar o caso” e representantes de jogadoras que tentaram desvalorizar a situação – “houve quem questionasse a veracidade das mensagens, mesmo depois de terem sido tornadas públicas pelos órgãos de Comunicação Social. É incrível como se protege algumas pessoas em detrimento de um grupo de trabalho”.
Considera, por isso, que “o Sindicato de Jogadores e a FPF deviam criar mais mecanismos para defender as jogadoras. Elas precisam de saber que estão protegidas”.