A miséria será sempre o tema crucial neste país. E quanto mais nos esquivamos a confrontar essa condição por meio das nossas práticas de representação mais dilacerantes tanto mais estéril se revelará a produção artística de uma dada época ou geração. E isto é evidente naquilo que desfila hoje diante de nós como produção ao nível do pensamento ou até desses dramas dos quais se espera que emerjam personagens ou figuras que alcancem uma tal irradiação que, idealmente, e a partir de um certo ponto, escapem até ao controlo do seu criador, podendo converter-se, por mediação sua, em instrumentos de um espírito colectivo ou até universal. Isto seguindo a lição do poeta francês Paul Valery, que admite que estas presenças possam tornar-se reais desse modo, indo mais longe do que alguma vez sonhara o autor ao congeminar o alcance da sua obra, consagrando-se para sempre à expressão de extremos do humano e do inumano, ficando, por conseguinte, desvinculados de qualquer aventura particular. Ora, em sentido muito diverso, a nossa tem sido uma literatura anémica, que não sabe nem pressente como furtar-se ao retrato imbecil e sufocante de uma pátria que insiste em fazer-se representar, como diz Garrett, em “esmeros de ambição, pomposa, inchada, monumentos de glória imaginária”.
A nossa cultura impõe-se mesmo como uma garantia de neutralização de qualquer proposta estética mais audaciosa, cercando-a dessa relação de interesses que sempre se estratifica e se salda numa avidez de títulos, posições ou encargos, activando grupos e subgrupos num esquema mortificador em que qualquer noção mais profunda acaba destituída pelo regime de concorrência a certos favores que se obtêm das instituições, em troca dessa baba reverencial e esgotante, que nos afunda mais ainda neste aturdimento secular que nos é característico. E isto com proveito apenas para um sentimento de privilégio desses que estão sempre mais empenhados em defenderem as suas imposturas e “conseguirem mil anos ainda de sonolência”. Agustina lembrava que, se é costume dizer-se que um povo forte é mais dificilmente atacado do que um povo débil, a maior prova que se pode encontrar da nossa debilidade está no modo como nos deixamos dirigir por um pensamento infantil e desactualizado. “Isto foi o que politicamente nos foi sucedendo através duma época de pouquíssimo investimento na alma e no conhecimento colectivo. Sem reflectir na alma comum de um povo, não há verdadeiro conhecimento. Podemos seguir máximas sensatas, comprovar provérbios antigos, medir cautelosamente a repetição das situações históricas. Mas se falta o discernimento que em todos habita comummente, mesmo sem estar esclarecido e ser chamado a justificar-se, uma nação inteira está cativa de qualquer imaginação pueril e vulgar. As outras nações percebem essa fraqueza e cobrem-na de vergonha. Não é o seu vulto em divisas o que se impõe; é a sua capacidade de descoberta que a ilumina.”
Ora, chegados ao centenário de Agustina, depois de alguns anos da sua morte, e de mais de uma década desde que se retirou do nosso convívio, com aquela sua espantosa habilidade para a sedução pérfida, capaz de nos fazer as confidências mais arrasadoras no tom que usamos para discutir questões de etiqueta ou até falar do tempo, a tendência será agora para cobri-la de honras sem tocar em nada que ameace causar algum tipo de alarme ou provocar a menor crise para o nosso frágil temperamento. Mas é evidente que o mais importante seria ferir de algum modo o protocolo das celebrações, trazer algum veneno nem que fosse para o misturar nesta receita caseira de hidromel, o qual, em vez de espantar ou apavorar os espíritos, o que mais consegue é adormentar-nos. De resto, ao ser convocada para proferir o discurso nas comemorações oficiais do Dia de Portugal, em Junho de 1981, a Sibila notava que, se é costume, “num dia como o de hoje, lembrar Camões e compor-lhe mais um epitáfio”, exigia-lhe um sentido mais comprometido de reverência que, ao invés de pactuar com essas solenidades que apenas enterram mais fundo e esquecem aqueles que melhor nos retratam, tentasse “chamar-lhe os versos como aves que andem soltas e encontrar neles o tom alado e certo que corresponde à experiência de muitos”.
O mesmo seria de se exigir agora, mas não é algo com que devamos contar nem, portanto, deixar por mãos alheias. Nas tantas evocações que preencherão o calendário nos próximos meses, é de esperar a habitual récita que conta sempre com evocações que, ainda que não escarafunchem as feridas, nem nos perturbem num exame mais profundo, podem alentar-nos o suficiente para que alguns se sintam compelidos a afinar os instrumentos e estar disponíveis para seguirem por mais algumas páginas os lestos movimentos sagazes da condução de Agustina, que sempre nos leva por uma música enervante e que cada vez é mais raro ouvir-se nestes jardins que tão amargamente povoamos, ainda que tudo o que vai para as artes e a cultura se desluza em comemorações e eventos imensamente solenes. Mas mais importante do que tentar variações ao nível da alfaiataria, propondo que se refizesse a cintura ou encurtasse aqui ou ali as medidas, trabalhando em esforços de recombinação antológica da obra de Agustina, como propõe Carlos Mendes de Sousa, numa evocação do seu génio nas páginas do Público, talvez fosse importante tentar extrair dos seus livros os aspectos mais truculentos daquela liturgia estética.
É preciso fazer relevar esse fio que une os tantos momentos de uma exemplar “missão imprecadora”, e a nobreza dos estímulos provocadores que esta autora sempre nos foi estendendo, numa obra radiante que não deixa de estar, também ela, impregnada de contradição, mas que, se não deixou de exercer a sua soberania, de manter-se comprometida com a sua vontade de exclusão, com uma atitude voluptuosa e marginal, ao mesmo tempo que desejava integrar-se e participar, foi sinalizando o que havia de mais nefasto na nossa cultura. Desde logo, essa tendência para representar as coisas distorcendo, celebrando ao mesmo tempo que se condena a uma reconciliação pacífica. Como ela mesma frisou, esta reconciliação “é um filtro onde todas as lutas se rarificam, em que as oposições se jogam mas não se desenvolvem”. Pelo contrário, o artista e o pensador devem assegurar por todos os meios que não serão assimilados, e o preço que pagam é o de se verem forçosamente obrigados a situar-se “na sua frustração, que é a maneira de ser operante”.
Para não se ceder ao enleio dessa forma de ilustração em que os grandes nomes acabam mortificados pela baba de admiradores que não conseguem extrair-lhes nenhum alimento de pavor e alarme, é preciso garantir que uma obra não é sujeita a esse modelo de operações e reconversões do paciente adormecido a éter frente aos cuidados da escola de taxidermia académica. E este foi um perigo que Agustina não se cansou de sinalizar, notando que “em tempos de instabilidade e em que o poder tende a centralizar-se, o artista e o intelectual são submetidos a uma espécie de culto profano e a uma heroicização que desarticule as ambições, conduzindo-as aos puros compromissos burgueses”.
Pode, de resto, parecer estranho a muitos leitores os termos e as reservas assumidas por esta autora, estando ela e outras figuras maiores da mesma gesta, como Eduardo Lourenço, tão conotados com uma certa adesão a essa “pompa exterior” de que se revestem os actos oficiais e as cerimónias que se exercem à imagem dessas figuras eternamente enfatuadas com a sua posição e respeitabilidade, a gente da política, figuras que exercem posições de poder e que não sabem senão estender um regime de fachada na forma como se relacionam com os aspectos culturais na vida pública. E, aqui, Agustina também reconhece como há uma certa tendência nas pessoas para viverem como lápides, “como as inscrições magníficas nos ossários e nas sinagogas”. Não deixando de entender a forma como, nos nossos dias, “o poder é ainda algo que se comete e não algo que se distribui de maneira inofensiva e graciosa”, e que aqueles que o exercem não demoram muito a revelar nos seus comportamentos uma certa irascibilidade de quem sabe que, no fundo, a investidura do poder se faz “sob a caução numinosa do ferro”, Agustina tinha claro que se os tratados se escrevem com pombas, a verdade é que depois se traduzem com falcões.
Estamos a ir pelo caminho mais longo para evitar a frivolidade de outro epitáfio, por mais exaltante que este pudesse ser, mas também porque, se, como nos diz Carlos Mendes de Sousa, “um dos grandes fascínios que Agustina suscita prende-se com a possibilidade que a todo o momento nos é oferecida de operarmos cortes na teia ficcional da sua vasta obra e, com esses cortes, recompormos quadros”, é certo que esses novos quadros têm sido quase sempre bastante inofensivos. Quase sempre se assinala na obra desta autora a sua estonteante competência para nos enredar, mesmo quando ela própria parecia descuidar alguns aspectos da narrativa, enaltecendo-se como Agustina foi “labiríntica, divagante, prodigiosa”… E ainda “desassombrada, independente, insubmissa”. Inclassificável também, e como “foi inexcedível o seu trabalho sobre a língua: nas arrojadas invenções verbais, nos magnificentes ritmos da prosa”. Diz-se isto tudo, exprime-se por meio de adjectivos que parecem ter fermentado longamente uma desajustada afeição por uma autora que, se manifestamente nos deu sinais do quanto desejava ser cortejada e celebrada, não terá passado uma vida inteira a arrancar as pétalas do seu tão denso perfume para as traduzir num “imenso território” em que se sucedem as intrigas, mas nada se revela de muito profundo. É evidente que o que mais lhe importa é estabelecer esse quadro paralelo que permite articular num brilho radiante e fluente “os reflexos dos factos”.
Mendes de Sousa exalta-a pela sua capacidade de traduzir o inexprimível, descobrir “os abismos, as coisas obscuras”, mas fica-se por aí, não abandona o exame mais abstracto, não faz qualquer palpação, nem expõe concretamente nenhum elemento mais doloroso destes abismos que Agustina sondou. E seria crucial que isto fosse feito de maneira a desmontar uma certa imagem que há muito se tem veiculado de Agustina como uma autora que se deixou comprometer com o regime de privilégios de uma sociedade que, até aos nossos dias, garantiu sempre que os que a cantam são todos eunucos, não propriamente poetas, mas esses seres que rastejam e se retorcem por qualquer côdea que os poderes lhes estendam. Para Agustina, os melhores espíritos são sempre esses que viveram coisas de cativeiro e liberdade e se mostraram capazes de responder “à nossa desesperação com seus remédios e mudanças”. Na célebre resposta que deu a um inquérito do jornal Libération (“Porque escreve?”), não insistia apenas na ideia de que se escrevia era com o fito de “incomodar o maior número possível de pessoas, com o máximo de inteligência” (e “por narcisismo”, pois claro, mas ressalvando como este chega a ser “um facto civilizador”), mas admitia, como então tão poucos o faziam, todos os suspostos vícios da vaidade e do orgulho, assumindo que, sim, o fazia para “ganhar a vida e figurar no Larrouse”.
E aqui está a desfaçatez que permitiu a tantos encará-la como mais outra personagem entretida com modos de provocação com o simples propósito de atrair sobre si a fatuidade dos sentimentos que cercam os ídolos mais vulgares de uma cultura vápida. O problema é que a sua tradição era outra, e era ela quem dominava uma estratégia com um alcance inesperado, pois as suas manifestações admitiam sempre outras leituras, um desdobramento tão aliciante quanto fatal.
“A fama de uma pessoa confunde o juízo, como o amor fabuloso e o erotismo pedante.” Uma frase assim é muito longa para caber num só momento de reflexão, e obriga a um regime de análise que divida a equação em partes, estudando cada uma, desconstruindo-a e resistindo ao seu sonante efeito, que parece atordoar-nos e levar-nos a supor que não passa disso mesmo, uma frase subjugada meramente a esse efeito. Mas o que ela contém é uma chave para se perceber como está na nuance toda a diferença que importa e que escapa ao espírito fátuo e que apenas se investe nessa voluptuosidade do que anima um certo estupor depois de satisfazer apetites vulgares. “Erotismo pedante” não é uma justaposição flagrante apenas para gerar uma momentânea excitação, mas classifica esse desejo incessante de se consumir, de tal modo que o espírito se degrada ao nível de uma compulsão quase sexual, como se os homens hoje só fossem capazes de reproduzir intelectualmente os estados que a própria natureza neles infunde, deixando de fora essas puras criações do intelecto, essas diversões extravagantes que apontam para uma contradição fundamental com o que estava antes. Daí que Agustina contraponha a esse “erotismo pedante” porque se ficam os seres mediocremente excitados com “o amor fabuloso” que exige toda a disciplina do ser. Porque a escrita (ou a arte) não pode, finalmente, reconvir num simples “exercício memorial, com flores e paisagens, algo autodidacta, como faziam as damas suecas do século XIX”, nem deveria contentar-se em redundar, como para a avozinha Mosés, numa “síntese de boa educação, forma de apagar a personalidade e deixar boa impressão aos netos”. Mas claramente foi a isto que voltámos.
Para Agustina, evidentemente, a escrita foi precisamente o contrário. E, sim, isso passou por “desiludir com mérito, que é a maneira de se fazer lembrar com virtude”, mas, dizer isto, ainda é dizer muito pouco. Soa ainda a uma forma puramente retórica e um tanto balofa de se enobrecer. Na verdade, o mais importante é quando a escrita parece assumir um empenho maior de servir, em que este desejo de desiludir passa, não por educar, mas por atacar as conveniências a partir das quais tudo se vê representado em fórmulas que garantem que a coisa acaba desactualizada face a si mesma.
Há um propósito mais fundo, uma espécie de prestação social, em que a escrita passa pela investigação desses processos que permitem, não apenas derrotar um erotismo primário e pedante que se estabelece com os elementos de uma cultura, mas activá-la, o que só pode ser feito levando as pessoas a comoverem-se. Ora, a relação que se estabelece com a poesia é dessa ordem, quando, antes ainda de se tornar claro o sentido de uma frase, esta já estabeleceu connosco um vínculo, já nos flanqueou e começou a produzir o seu encantamento, de tal modo que, mesmo que venhamos a considerá-la, depois, uma revelação inconveniente, já não nos será tão fácil simplesmente negá-la, tentarmos sacudir o seu efeito, ou esperar que a embriaguez nos passe. E isto porque, se voltarmos a pensar nela, de novo sentiremos o seu estímulo a actuar nas nossas ideias, ao ponto de, algumas vezes, as virar do avesso. Mas esta comoção não se fica por aí, não é um mero exercício para remexer de leve com as bases do nosso sentimento, mas aplica-se em “desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada”.
Aqui começamos a ver como Agustina procura situar-se, e como aponta para os elementos perversos da forma como a cultura hoje é um modelo sistemático para difundir uma ideia de impotência dos indivíduos, de tal modo que estes não possam senão sonhar debilmente com uma hipótese revolucionária. Cabe aqui lembrar uma citação que fez Mendes de Sousa, certamente com o intuito de aligeirar o ambiente de denúncia da atitude de compromisso de Agustina com os valores e os princípios de uma certa classe que nunca fez outra coisa senão proteger os seus privilégios. São palavras que Agustina dirige a Eduardo Lourenço a 31 de Dezembro de 1975: “Para mim, pessoalmente, a revolução foi um benefício. Portugal era completamente um caso de sonambulismo; tudo o que acontecia era em sonhos. A revolução aconteceu. Se as pessoas soubessem até que ponto aconteceu caíam em pânico porque, em geral, somos incapazes duma informação moral atípica.”
O problema, parece indicar Agustina, é o quanto a consciência geral e comum resiste tantas vezes à noção dos próprios efeitos daquilo que foi conseguido contra um movimento constante que nos pretende arrastar de volta ao passado, essas forças reaccionárias que impedem que nos desvinculemos das amarras da História.
Numa outra intervenção, Agustina pergunta-se: “Quando será o tempo duma nova cultura?” E ela mesma ensaia uma resposta: “Quando for o tempo duma não-História, quando não se apascentar a memória como uma repetição de zelos fúteis e perversos.” E, nisto, cabe ao escritor um papel decisivo, o de proteger os homens dessa cultura do medo
A questão é saber como se prossegue esse ideal. Ora, as pistas que Agustina nos serve a este respeito são cruciais. Ela começa por dizer que o escritor só terá essa força libertadora se for capaz de entregar-se a um regime de “audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração”. Trata-se de produzir um exemplo não espontâneo mas absolutamente premeditado, servir aquele acto humano que não corresponde totalmente à sua evidência, que chega mesmo a ser, não o executor de uma tradição, mas aquele que se serve dos seus poderes e da sua eficácia para levar a cabo uma traição “fabulosa”, por amor à condição comum dos homens.
E aqui é preciso introduzir uma importante nuance, a qual se prende com o conceito de piedade. Agustina explica que a piedade do poeta não é da mesma ordem que aquela que aparece como um valor social comummente apregoado, não nasce, pois, daquela comiseração que deixa ainda lugar à culpabilidade. A piedade tal como a sente o poeta “é uma espécie de desarticulação da tragédia”. Assim, Agustina elege o exemplo de Sócrates para ilustrar a ideia do que faz o homem piedoso, aquele que é “incapaz de acentuar os acontecimentos ao ponto de lhes atribuir uma função irrecuperável” e que, por isso, se mostra, em suma, um homem antidramático. Não são os constrangimentos particulares de uma época que o perturbam, pois está empenhado em actuar como um “criador de comunhão”.
E voltando à resposta ao tal inquérito acima referido, Agustina acaba por concluir que “escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida”. Mas para que esta correcção ou traição seja levada a cabo, é preciso antes de tudo que o escritor faça aquilo que pode sempre correr-lhe pior, ou seja, situar-se no seu tempo e lugar, para ser capaz de ir ao encontro daqueles que o lêem, tomando uma posição. E, então, Agustina fala de nós, dos portugueses, e do fardo que carregam e tanto os limita nas suas vidas como na arte. “Representamos um povo muito velho e que não toma o dinamismo profissional como cultura”, diz Agustina, antes de introduzir uma inflexão decisiva, ao afirmar que, ao contrário do que possa parecer, “a pobreza não nos obriga a ser obtusos, nem obedientes aos padrões da sensibilidade pueril”. É assim que, numa mensagem que parece dirigida para um leitor que está lá fora, Agustina consegue, na verdade, ser bem mais incisiva e clara nos termos em que se dirige àqueles que são primeiramente os seus leitores: nós.
Mas antes de irmos mais longe no seu exame da nossa ineficácia literária e, portanto, na definição de uma estratégia de comunhão espiritual que levasse a um esforço de emancipação de um país sujeito há tanto tempo à sua infantilização, é importante explicar que, se a inteligência de Agustina, reputada acima do normal, foi sempre motivo de admiração, não deixou essa reverência, no entanto, de se ver sempre acompanhada de um certo ressentimento desgostoso, desde os primeiros sinais das grandes figuras que procuraram desprezar ou ignorar os seus livros, ignorando-a, talvez porque fosse demasiado difícil acatar o brilho chocante que fez dela um certo ídolo de insubordinação aos preceitos da arte portuguesa.
Houve sempre um respeito misturado a uma boa dose de suspeita face esta autora muito mais conhecida do que lida, e que ninguém podia propriamente contrariar directamente, mas em relação à qual se foi tecendo uma “certa execração delicada e insidiosa”. Isto não se liga só à nossa debilidade, mas também a uma espécie de temor face a esses processos que, se por um lado nos enredam e produzem algum fascínio, por outro também nos aviltam secretamente. Por isso, porque estava condenada a ser reconhecida sem ser lida, Agustina colaborou até certo ponto com aqueles que pretendiam fazer dela a personagem de um efeito de exclusão sempre vigiada, e cabia-lhe, nas suas declarações públicas, no modo como não se deixava enxovalhar e remeter a um papel de mera dona de casa de uma obra extraordinária, mas da qual tão poucos aceitavam os convites para jantar, tecer, à margem dos livros, um ensaio sumptuoso por meio de uma série de intervenções públicas que são uma das sátiras mais reveladoras sobre o ambiente de covardia e de tolerância obtusa que se respira no nosso campo cultural. Agustina encarnou, deste modo, e da forma mais vigorosa, um talento subtilíssimo para desenvolver em público a sua peça de tantos actos e que foi sempre no sentido de escarnecer de tudo. Em comparação com ela, todos os outros foram meros aprendizes.
Com o seu ar de senhora muito composta e respeitável, Agustina foi um tremendo bufão, e riu-se de tudo, de todos, sem nunca abandonar o rigor da personagem, para que o teatro, toda a audiência e a própria casa não lhe caíssem em cima. Basta rever as suas tantas declarações públicas e entrevistas, e como há sempre uma superioridade exercida no regime de quem troça e mofa, sem alguma vez ter cedido à injúria ou à blasfémia, que certamente produziria escândalo num momento, para, no seguinte, ajudar à causa daqueles que pretendem ver os artistas classificados como um bando de inimputáveis.
A forma como dominou esse regime de vaga celebridade de que gozava é, em si mesma, uma ilustração no regime dos salões do mesmo exercício a que se entregou na escrita do romance. E a todos causava espanto o talento algo obscuro pelo qual, numa relação que deixava entrever a força dos seus dotes intuitivos, podia andar entre lá e cá com uma liberdade assombrosa, valendo-se de uma tradução do mundo irregularíssima através desses reflexos tão precários e cintilantes que são as palavras, servindo-se como mais ninguém da escrita para despertar “as coisas do silêncio em que foram criadas”.
No fundo, Agustina provou a sua fenomenal mordacidade através de um processo que guarda ainda um certo apelo místico, incompreensível e até censurável para a maioria, pela mágica capacidade de capturar num retrato um evento ou uma pessoa. Mas, na mesma medida em que isso produz encantamento, não deixa de haver quem se ressinta de não poder compreendê-lo ou esquivar-se-lhe, nem assumir um papel qualquer, que não aquele que lhe é confiado, como acontece no sentimento de devoção e horror que nutrem as personagens face ao autor.
Num certo sentido, Agustina desautoriza a vontade dos circunstantes, e a sua interpretação dos acontecimentos expõe com uma firmeza insuportável um sentido mais profundo e drástico, mais claro e, tantas vezes, perverso ou inquietante, mas também mais consequente ou produtivo. Há da sua parte o domínio daquela sentimentalidade a que Goethe se refere em carta a Schiller, datada de 16 de Agosto de 1797, ao falar da experiência da alma que a torna matéria vibrátil de sons alheios, em que os sentidos e o entendimento se povoam de relações entre coisas de aparência estrangeira umas às outras, ligando o familiar e o estranho, movimento simbólico por excelência.
Numa das crónicas que leu aos ouvintes da RDP, Agustina lembrava que “até aos nossos dias, os símbolos actuavam nas pessoas como ideia de um espírito colectivo. Pode parecer surpreendente que o teatro grego, por exemplo, na aparência destinado a um público de nível intelectual muito elevado, tivesse uma audiência que chegava a grandes multidões; o inconsciente colectivo não comunicava, porém, através da linguagem heroica ou poética, era o símbolo que o tornava activo e produzia o excitante que permite às massas reconhecerem uma identidade comum. E também na Idade Média, essa que foi tão caluniada e muitas vezes reduzida a uma caricatura infamante, aí encontramos o símbolo como agente catalisador. Só assim se explica que a grande erudição eclesiástica e o aparato da sabedoria catedrática não repugnasse às pessoas. O símbolo predominava como entidade tangível e não decepcionava nem a inteligência da participação. Porém, o espaço habitual do símbolo, hoje, está vazio. Por isso, a possibilidade de coexistência ordenada e múltipla parece ter-se esgotado. Distinguem-se as funções, as qualidades, os graus de uma instituição, mas (…) estamos limitados à sua representação imediata, e só a isso. A lógica do conjunto escapa-nos. O símbolo tornava inteligível a lógica do conjunto, mas o símbolo perdeu os seus efeitos, definitivamente. Mas existe, e há-de existir sempre, uma co-determinação, e, portanto, um projecto de linguagem que escapa até às garantias da razão. O homem transcende o símbolo porque o símbolo era só um meio de pensar o mundo efectivo. Na actualidade, assistimos ao arrasar de todos os símbolos. O símbolo da família, da moral, da pátria, e do Deus do santuário. Esse fim do mundo, em que perseveram pequenas recuperações de índole conservadora, é também o princípio do mundo. Estamos mais desamparados de convicções e de certezas. Em relação às coisas já pensadas, nós sabemos que elas já não nos representam inteiramente. A imaginação radical, como factor de criação, agora mais uma vez se levanta do horizonte impossível.”
Se temos aqui o sinalizar de alguns princípios nos quais se barricou toda a moral conservadora, e se Agustina não lhes recusa ainda uma força actuante, noutros momentos ela incita-nos a “encontrar a singularidade do tempo histórico dentro da aparência dos factos”, adiantando também que esperamos sempre a orientação “daqueles homens que não se submetem à ideia do passado, que criam o passado mas não se situam nele”.
À distância de algumas décadas, Agustina traçava já um retrato inescapável desta época, notando como parecemos sentir-nos desfeitos pela incapacidade de nos encontrarmos e alcançarmos um sentido de comunhão à volta de uma ideia: “não é fácil hoje em dia associar as pessoas numa ideia, porque as ideias estão gastas pelo peso dos acontecimentos e das descobertas novas. Todos os dias somos transferidos para terrenos diferentes, onde nos convidam a aceitar outros costumes, a vestir outra pele, a comparecer noutras sociedades que não aquelas em que nos criámos e a que por herança pertencemos. (…) Já ninguém vive cinquenta anos na sua aldeia esquecida, preso ao afecto da sua pequena história familiar.” E é neste ponto que Agustina coloca ênfase na ideia de que não chega aos homens hoje essa ridícula obstinação de competir no ambiente sórdido de jogo que desfaz destinos prometendo melhores condições de vida, uma vez que “não é só porque procura uma vida melhor que um homem sai da sua casa, depois sai da sua terra, e atravessa os mares; é porque precisa de renovar a face da sua própria história”.
É isto o que o nosso tempo não pode oferecer a ninguém, desde logo porque as regras do jogo impedem que se estabeleça um entendimento mais profundo da própria existência, uma relação que não se baste com essas tabelas de sucesso ordinário, as quais, invariavelmente, se cifram num regime de potência em termos de dinheiro e fama que vulgarizam inteiramente o projecto humano. E é neste ponto que o testemunho de Agustina se mostra tão imperioso, pois tendo crescido e adquirido a clareza e a força previdente de uma tradição que estava ainda profundamente ligada a esse vínculo de um homem ao mundo tão particular que o cercava e que lhe servia todos os elementos para a construção da sua narrativa, ela entendia que,” depois de uma grande convulsão política e social, é como se o solo comum desaparecesse e as pessoas precisassem de algum tempo para o encontrar outra vez debaixo dos pés, reunindo-se na disponibilidade para um conceito novo da existência”.
Ora, é precisamente esse o tempo que nunca mais se recuperou, na medida em que o regime que se nos impôs vive da própria sensação constante de perda, de uma forma de condicionamento em que as sucessivas crises se articulam para mobilizar de forma perpétua os homens para um esforço extraordinário que nunca mais cessa. A nossa é uma época caracterizada por um “estado de excepção” que passou a ser a regra. Mas este assenta nesse pressuposto de que todos estamos devotados à superação individual desse terror de sermos destituídos da nossa cultura de bem-estar.
É neste aspecto que Agustina é mais radical do que qualquer outro autor da nossa contemporaneidade, lembrando que é a miséria que, tendo sido tantas vezes tratada romanticamente, nunca o foi “como uma coisa pouco prática para ser entendida como matéria-prima”. Pois é precisamente aquilo que mais tememos o que exige agora, mais do que nunca, concentrar os nossos melhores esforços, para que esta possa ser encarada e reivindicada, tratada com “audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração”.
Agustina diz-nos que o escritor, durante tempo de mais, se limitou a observar a miséria apenas como o fracasso duma ascenção que os grupos dominantes impediram. Por isso mesmo, as chamadas forças de oposição desbaratam qualquer prestígio que um movimento de resistência possa ter, restrigindo a sua acção a protestos que exigem apenas uma melhoria pouco significativa das mesmas condições de falência para a qual fomos arrastados nas últimas décadas, sinalizando assim a própria incapacidade de conceber um outro horizonte, algo que nos visite vindo do outro lado da fronteira do impossível.
Como escreve Annie Ernaux, em “Os Anos”: “Com o seu ar paternalista, os dirigentes do Partido Comunista e dos sindicatos continuavam a determinar quais eram as necessidades e os desejos. Apressavam-se a negociar com o Governo – que, no entanto, parecia já não reagir – como se não houvesse nada de melhor para reivindicar a não ser o aumento do poder de compra e a diminuição da idade da reforma.”
Tudo isto não passa de um conflito ao nível de questões de pormenor numa inequívoca capitulação. Mas Agustina instiga-nos a procurar dentro da própria miséria que tanto nos assusta um outro horizonte: “Quando pensamos numa humanidade florescente, sempre a temos que ver rica, poderosa e influente; nunca a imaginamos pobre e feliz dentro duma liberdade que não seja total. Todavia, o mundo do futuro será pobre. Não abandonado e ignorante, vencido ou vencedor – mas pobre. Para quase todos os que vivem hoje, isso parece insuportável e constitui uma espécie de afronta, de tal maneira aliamos à pobreza um labéu antiquíssimo, uma maldição esmagadora. Tanto a visão moral como imoral dos factos, em profundidade priva-os do seu sentido. Quando, no estrangeiro, chamam a Portugal “a casa dos pobres da Europa”, utilizam essa expressão com alguma insídia e situando-nos num grau inferior do merecimento humano. Mas nós sabemos todos, se não ao nível de uma filosofia, pelo menos ao nível do pressentimento, que alguma coisa na solidariedade indivisível das pessoas tende para a pobreza. E que ela será no futuro a única forma de distinção civilizada a que a vontade humana pode dar crédito.”