Se o Governo liderado por Pedro Passos Coelho sonhava atrair investimento criando os vistos gold, este programa, com que António Costa pondera acabar, deixa para trás anos de polémica – entre suspeitas de que fosse usado para lavagem de dinheiro ou permitir a entrada de indivíduos de má fama na Europa, além de acusações de que contribuiu para a especulação imobiliária – e empresários insatisfeitos. É que para, desfrutar dos benefícios prometidos por um visto gold, continuava a ser necessário enfrentar a máquina burocrática do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Que é recorrentemente alvo de críticas pelas suas filas gigantescas, linhas telefónicas entupidas e demora no atendimento.
A sensação era de se estar preso numa interminável troca de papelada, para a frente, para trás, descreve uma executiva sediada nos Emirados Árabes Unidos, responsável por gerir fundos de investimento num valor equivalente a dezenas de milhões de euros ao longo dos últimos anos. À conversa com o Nascer do SOL, pediu anonimato por ainda estar à espera para perceber se conseguirá renovar a sua autorização de residência ou não. No entanto, assegura desde já que a experiência não lhe deixou grande vontade de aconselhar aos seus clientes que invistam em Portugal.
A epopeia desta executiva já se arrasta desde 2017. A troco do seu investimento, desfrutou de menos de dois anos de despreocupação, na posse de um visto de residência português válido, e o resto a debater-se com os serviços do SEF. Agora, o seu processo é um dos 19 mil pedidos pendentes de renovação de Autorizações de Residência para Atividade de Investimento (ARI), como são conhecidos os chamados vistos gold. Na prática, são mais de metade do total.
«Se isto – cumprindo todos os requisitos legais, sem seguir por atalhos – me está a acontecer a mim, pessoalmente, como é que alguma vez posso concordar em investir aqui mais dinheiro em nome de todas pessoas que represento?», aponta, claramente ressentida. «De momento sou executiva de uma empresa de gestão de capital privado no Médio Oriente, com uma carteira de 2,5 mil milhões de dólares. Acha que um único desses dólares vai para Portugal? Nem pensar», garante. «Parece-me que o Governo não é sério quanto a atrair investidores para cá, porque não os estão a respeitar».
Trabalhos de Sísifo
Já fora o cabo dos trabalhos para esta milionária conseguir o seu visto de residência, demorando quase dois anos, apesar do esquema dos vistos gold prometer não tardar mais do que três a seis meses. E, como tal, começou logo a tratar do processo de renovação – «já sei como é com o SEF», suspira – faltavam mais de seis meses para o seu cartão caducar. Falou com os seus advogados, visitou gabinetes do SEF por todo o país, contratou gente para ligar para todos os números disponíveis, conta. E nem assim conseguiu uma marcação.
Lá deu com uma nota do SEF – em português, sem grande aviso, viu-a por acaso – a explicar que iam prorrogar a validade dos vistos até dezembro de 2022, devido à falta de capacidade de resposta. Na prática, quando esta investidora tentou entrar noutros países europeus, deu com portas fechadas, sem que nenhum agente fronteiriço estivesse informado da extensão da validade dos vistos. Ainda conseguiu voltar a Portugal, passando-se o mesmo em território nacional e até num hospital.
«O meu visto de residência não tem sido reconhecido em lado nenhum na Europa, por isso tenho outra vez de solicitar vistos», queixa-se a executiva. «Não sou considerada uma residente cá para quaisquer efeitos, não consigo aceder a cuidados de saúde de emergência, não consigo entrar no país com este cartão expirado. É um documento inútil, que me custou 420 mil euros».
«É ridículo. Porque raio investi centenas de milhares de euros em Portugal? Devia ter ido a Montenegro ou a Malta», lamenta a executiva. «O sistema não funciona. Prometeram muito e cumpriram muito pouco», remata. «Consigo mais facilmente que governos do Médio Oriente ou de África cumpram com as suas próprias leis do que em Portugal».
Já o SEF, questionado pelo Nascer do SOL, garante que «os direitos dos cidadãos estrangeiros estão acautelados através do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual». O que, acrescenta, «assegura a validade dos documentos e vistos relativos à permanência em território nacional até 31 de dezembro de 2022, e que os mesmos continuam a ser aceites, nos mesmos termos, após 31 de dezembro de 2022, desde que o seu titular faça prova de que já procedeu ao agendamento da respetiva renovação».
Face a tantos casos similares ao da milionária sediada nos Emirados Árabes Unidos – sem falar no que sucede a emigrantes mais pobres e com muito menos recursos jurídicos – não é surpresa que o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, tenha anunciado a reestruturação do SEF já no próximo ano. O objetivo é «separar as funções policiais de controlo e de gestão de fronteiras e as funções administrativas de acolhimento, de integração de imigrantes e de asilo», explicou o ministro.