O coração é um órgão bastante licencioso, e, pelo que dele se vai ouvindo dizer, nessa destilação da porteira que gosta de ler romances, interpretando o melhor que pode os fragmentos da vida e até os urros que se misturam no hall do prédio, este tem “mais quartos que uma casa de putas”. E, no entanto, no que toca ao desejo, e às diferenças entre os sexos, há muito que tudo vem sendo baralhado e envolvido numa retórica culposa, de tal maneira que ser homem e sentir esse impulso chega, nos nossos dias, a ser indício bastante para que este, sendo por natureza excessivo, um comando à acção, o empurre para algum perfil de ordem criminal. Há muito que as diferenças sexuais vêm sendo o alvo de uma retórica que parece não ter outro intuito senão o de amesquinhar a “condição masculina” perante o desejo e o prazer, a ponto de se ter tornado um lugar comum literário a afirmação de que “o prazer feminino jaz ao lado do masculino como um poema épico ao lado de um epigrama” (Karl Kraus).
E Simone Beauvoir, em O Segundo Sexo, vincou até que um homem nunca se meteria a escrever um livro sobre a situação particular de pertencer ao género masculino, como se tal fosse completamente desnecessário, como se este pudesse ser apreendido e inteiramente explorado nos limites de um patriarcado conservador e conformista. Na verdade, tem vindo a tornar-se clara a forma como se construiu toda uma dinâmica acusatória que leva a que a diferença masculina seja uma condição que, num nível mais íntimo e incerto, se cobriu de um enorme pudor, ficando arredada das discussões que têm dominado a cultura contemporânea ocidental. E isto de tal modo que, na actual relação de forças e debate sobre as identidades culturais, “parece que a gramática irregular do desejo e as suas extravagâncias merecem interesse e compreensão só na medida em que não provenham de um sentir heterossexual e masculino” (Vania Baldi).
É neste contexto que nos aparece um livro extraordinário, “aberto como uma ferida”, uma investida arriscada num território absurdamente hostil, vindo de um antropólogo italiano que se coloca o desafio de enfrentar o desejo masculino como uma matéria que requer mais que nunca “uma abordagem de espanto”, a ousadia e a vulnerabilidade que sente como o seu coração ficou escondido no escuro e endureceu de modo a resistir debaixo do ambiente de suspeita permanente que recai sobre ele.
Começando por reconhecer que “os caminhos do desejo são um bocado ilícitos”, e que “precisam de rir dos conformismos e dos convencionalismos”, Franco La Cecla entende que cumprimos hoje o desejo mais como um ritual supliciante, quando parecem esvaídas as melhores hipóteses do desejo, de tal modo que este parece confundir-se cada vez mais com um logro dos sentidos, estando todos nós cada vez mais longe daquele pleno gozo erótico da nossa condição, daquele “arrebatamento no candor de uma pele”, e daquela cultura e sociedade que aspirava a realizar os seus impulsos no limite da agressão erótica, os gregos que, no seu ensejo de explorar os êxtases dionisíacos, criaram uma sociedade onde o desejo era cultivado, não sendo o mais importante que este chegasse a uma conclusão ou fosse saciado, “mas que fosse preparado, atiçado numa alegria geral de viver e de embriaguez”.
Hoje, por outro lado, estamos mais perto de um regime de vida em que se nos impõe a tristeza de nos relacionarmos com o desejo num plano desolador, como algo que simplesmente nos frustra, suportando a tristeza e bebendo até ao fim a taça da amargura, numa época que parece subscrever aquela “ideia gnóstica e maniqueísta do mundo como embuste perene dos nossos sentidos”. Cada vez nos aparentamos mais com espectros, destituídos da convicção com que se articulam em nós os impulsos mais fortes e íntimos, chegando separados de nós mesmos e dessa imemorial semelhança com os que se sentiram verdadeiros descobridores num continente sempre elusivo. Sentimo-nos actores demasiado inibidos tentando disfarçar a ausência de um verdadeiro ímpeto e entrega, à medida que cedemos a essa “reencarnação de uma história de amor violenta feita de repentes e de regressos”. Este fracasso diante de si mesmo dificilmente terá sido expresso de forma mais eloquente do que o fez Paul Celan num dos aforismo de Contraluz: “Tantas vezes o cântaro partido vai à fonte até que esta seca.”
Há uma fadiga do próprio querer, e que resulta, no entender de La Cecla, de todo esse cerco montado por uma sociedade que entende que este deve ser capturado e adestrado, que o disseca constantemente segundo uma série de categorias e lhe impõe todos esses modelos e resíduos que espelham os “bloqueios emotivos institucionais”. Talvez seja por isso que o desejo, hoje, nos encontra mal preparados, pois o burburinho que se lhe faz à volta impede-nos de ouvir o seu som desafinado, mas coerente.”
Este é um livro que respira, desde o primeiro fôlego, um ânimo de insurreição, ele aparece-nos como uma maldição que, enfim, e através das nossas próprias suspeitas, nos sussurra, convertendo todos esses avisos que contra ele foram feitos nas evidências de que temos estado mergulhados numa qualquer mistura de formol, com a rede dos nossos impulsos adormecida, impedindo que possamos aceder a um teatro mais profundo, a essas “nuances psicológicas mutantes e persistentes”, às aberturas e limitações culturalmente ambivalentes, ao jogo de transformações que abre diante de nós o regime tão intenso e volátil do desejo, essas negociações e conflitos entre mentalidades corpóreas, normas e hábitos culturais. Isto aproveitando a leitura que nos oferece Vania Baldi, professor no Departamento de Sociologia do ISCTE, no magnífico prefácio à edição portuguesa desta obra, que nos chega com o selo da VS. Editor. “O Ponto G do Homem” não abdica do seu elemento provocador, mas a força inebriante da exploração que nos propõe liga-se a não impor meramente um esquema alternativo e que entre num espúrio embate frente ao regime de vigilância moralista, evitando enredar-se num discurso demasiado consistente, rígido e categórico, deixando-se, pelo contrário, seduzir e construir o seu percurso sinalizando afinidades com outros indomesticáveis prevaricadores.
Esta obra vai medindo o seu fôlego contra a chama de uma vela junto ao peito, sem se precipitar num hino celebratório, mas entretecendo esses indícios do “carácter divinatório do próprio desejo”. La Cecla entende que “nós, contemporâneos, somos afectados por um desfasamento nunca antes vivido entre desejo e acto”, vai mostrando o processo de “ofuscamento” a que aquele tem sido sujeito, e nota como cada vez parece ser mais difícil aos homens e mulheres encontrarem-se num desejo em comum.
“Estamos miseravelmente nas mãos da enésima inquisição. Se homens e mulheres se aliassem pelo menos na imoralidade, seria um bom passo em frente”, sugere o antropólogo. Num sagaz ajuste de contas com o ambiente de perseguição desaustinada que se tornou característico da purga de movimentos como o #MeToo, o autor explica porque “homens e mulheres não são amigos no desejo”, e recusa essa versão de um Éden infantilizado, preferindo-lhe a ideia de que entre os sexos há uma tensão que pode ser descrita como “uma mistura de guerra e de armistício”, para que o desejo possa fazer ouvir-se como essa Esfinge que fala dentro de nós. Entendendo como os gregos, que o desejo é de uma substância diferente da da sua consumação, La Cecla expõe “o equívoco de uma sociedade que pede aos violentos – homens e mulheres – que democratizem a violência, que submetam o desejo às normas da boa educação”.
Reconhecendo os riscos e até o desequilíbrio de forças nesta sua empreitada, o antropólogo convoca a estas páginas os desaforos inspirados de uma série de outros autores empenhados no confronto com os aspectos tão absorventes quanto dolorosos desta exploração da irredutível carga erótica que caracteriza esses impulsos que em nós provocam um estranho balanço e nos atiram de um lado para o outro, ao ponto de nos agarrarmos a estranhos na rua, não para nos segurarmos e, sim, para conseguirmos oferecer algo de concreto a esse ímpeto que nos agita de tal modo que vamos derramando-nos num sentido ou noutro, “como água num copo que se leva à pressa” (Kafka). Sendo o livro um longo ensaio de natureza polimórfica, que se divide em capítulos bastante curtos, La Cecla socorre-se não apenas das descobertas de outros, sejam testemunhos mais pessoais, poemas ou contemplações fulgurantes reflexões, intercala-o ainda de uns fragmentos com descrições de cenas íntimas, como polaroides ou anotações a partir de pormenores reveladores, atingindo nesses pedaços de prosa uma franqueza miraculosa, o que leva ainda mais longe o seu compromisso em registar os seus avanços e indagações à volta do desejo e das experiências que este lhe proporciona.
Assim, e com o psicanalista e ensaísta Adam Phillips, La Cecla instiga-nos a reconhecer que, havendo embora na nossa sexualidade, peças que encaixam de acordo com o regime cultural em que estamos imersos, há um outro lado que nos obriga a estabelecermos uma relação de confiança enquanto detectives particulares das nossas próprias causas, e aí é necessário “pensar no nosso desejo como uma misteriosa escapatória ou transcendência relativamente à cultura, como a nossa faceta fora-da-lei, onde somos mais abjectos e heroicos”. Está nele um balanço ao qual não nos podemos furtar, e que sustenta e até força a nossa projecção no mundo social, e nessa relação com o mistério que representa o outro, aquele por quem nos vemos, apesar das nossas próprias reservas, a nutrir essas incontroláveis ficções, essas fantasias estupendas que o desejo semeia na nossa intimidade. “Desejamos independentemente de nós mesmos”, lembra La Cecla. “A perversão é radical. É um discurso, uma tendência, um íman que vem das profundezas e me conduz para onde eu sozinho não iria. É um sair fora de si, no sentido em que o desejo nos torna imorais. Não conseguimos enquadrá-lo numa regra. É ele que quer ser respeitado, e não é certo que nos conduza ao nosso bem”. Este antropólogo vinca que não há mestres no desejo, que na verdade cabe-nos a nós aprender com ele: “façamos com que este se exprima e ele contar-nos-á sempre alguma coisa que irá surpreender-nos, pois o desejo coloca-nos perante aquilo que não conseguimos transformar em sujeito em nós”. “O desejo guia-nos, e é a partir disto que o reconhecemos”, conclui o autor.
Por outro lado, e frustrando-se este ímpeto que procura levar-nos a escapar das tramas que controlam a vontade, ao ensaiar uma “fenomenologia do desejo”, La Cecla não esconde os tantos impedimentos e mesmo o perigo pessoal em que se incorre, hoje, quando se tenta instigar alguém a valorizar esse código potencialmente imoral, essa forma de comunicação em que temos de nos iniciar por meio de uma série de tropeços, superando as piores inseguranças, e isto numa época que muito tem contribuído para o nosso analfabetismo afectivo, para essa redução da perspectiva amorosa a compromissos que praticamente excluem o desejo da equação. Como reforçar a importância desse estudo a partir de sentidos que somos levados a desacreditar, esse enredo subtilíssimo que depende tantas vezes de uma audácia que se permita ir além da imaginação, interpretando confiantemente essas emanações, o olhar de soslaio, a insinuação, a alusão, “tudo práticas quase mágicas”? E, por outro lado, numa sociedade tão “céptica acerca da substância ontológica do desejo, uma sociedade em que o desejo é considerado leisure, desporto, tempo livre e imaginação”, o risco é o de sermos abandonados pelo próprio desejo, de tal modo que, ao traí-lo insistentemente, arriscamos ficar na condição de órfãos, incapazes de receber novas orientações.
Este é um livro corajoso e a aposta nele sinaliza também o que deve exigir-se da verdadeira edição literária, aquela que não se limita a compor as estantes, dar-nos uma perspectiva menos aborrecida do que possa ser uma biblioteca, esse percurso particular, tão mais cativante e instigador a partir do momento em que não nos forneça meramente uma formação a respeito dessas moralidades e chaves de interpretação com que cada época subalterniza o passado de modo a neutralizar ou corrigir esses aspectos que incomodam a harmonia hipócrita à qual pretende forçar-se a orquestra do futuro. Um editor literário não pode simplesmente conformar-se ao registo do panegírico do génio que foi culturalizado, nem pode apenas limitar-se a ordenar e fazer escoar o trânsito, mas deve ser capaz de congeminar alguns desses acidentes esplendorosos que causam interrupções bem no eixo da vida quotidiana, levando quem passa a deliciar-se ou perder-se no pavor de uma dessas cenas que põem em causa as estruturas adquiridas e, aparentemente, inabaláveis da normalidade. Um livro destes segue alegremente em contramão com o intuito de produzir um tremendo choque em cadeia. E corresponde inteiramente aquele desejo formulado por Kraus num dos seus aforismos (recolhidos e publicados, entre nós, pela mesma editora): “Quero que todos os ruídos da temporalidade fiquem cativados no meu estilo e que isso o torne um dissabor para os meus contemporâneos. Mas os posteriores poderão encosta-lo à orelha como uma concha, na qual um oceano de lodo faz música.”
Assim, La Cecla questiona se “é possível hoje, após tantos tormentos da psique contemporânea, após torturas infligidas pelos desiludidos do desejo aos consumidores do desejo a bom preço, é possível, após a guerra entre os sexos e o seu malfadado fim, após um armistício de aborrecimento e uma paz separada, após a queda do muro entre os géneros e do assalto de baioneta do queer, é possível continuar a pensar que o desejo é alegre?” O retrato que este antropólogo nos serve é demasiado frio para ser lido como uma sátira, entrando mais na categoria de um exame pericial, que consegue fazer-nos rir por um instante, quando o cadáver sujeito a autópsia solta um gás, mas logo que o cheiro toma conta da sala, e além de penetrar as narinas ainda se enterra na pele, começamos a sentir um horror desta época, que ergue diante das nossas caras “um espelho em que o indivíduo se perde miseravelmente”.
Damo-nos conta de que, no regime higiénico para o qual temos sido adestrados e em que acabamos por nos sentir restringidos, como numa camisa-de-forças, amortalhados ainda em vida, nada do que se transmite no desejo de um pelo outro é recíproco, ficando tudo reduzido a “um jogo de espelhos onde ambos os concorrentes, no fim, dão por si castrados, desprovidos do motivo que os impeliu com violência à busca pelo objecto do desejo!”. La Cecla adianta ainda que o mundo contemporâneo, não obstante a generosidade dos cartazes da Calvin Klein, os seis imaturos e extravasantes das adolescentes da Sisley e da Etam, o ‘pacote’ exibido dos boys da Dolce & Gabbana, é um mundo profundamente pessimista acerca das possibilidades do desejo”.
E frente à retórica moralista e acusatória que tem dominado nos nossos dias, e essas disciplinas congeminadas na academia com vista a impor uma abordagem ideologicamente normativa e administrativa das disciplinas e das identidades culturais, La Cecla não tem dúvidas de que estas são próprias de novos inquisidores que, “armados de uma atitude justiceira fiscalizam, como funcionários de partido, as heresias de quem vive a própria condição, seja ela masculina, feminina, gay, transgender, agender, cisgender, etc.” (Vania Baldi). Face a isto, este antropólogo admite que o desejo masculino esteja agora em condições de nos contar muitas coisas, tendo sobrevivido a uma opinião que o esmagou a um estatuto incritivável de perversidade. Segundo esta tese, os homens são incapazes de desejar porque no seu desejo está inerente a violência. “E eis que renasce a leitura católico-política do desejo como instrumento”, diz-nos La Cecla.
E, em rejeição desta ideia, confessa desde o início uma paixão que pode servir-nos como antídoto: “a paixão pelas diferenças sexuais como construções culturais, como riquezas dramáticas construídas pelos nossos antepassados e pelos antepassados dos nossos antepassados. Como já disse algures, não acredito que as construções culturais devam ser moralmente julgadas para se agir politicamente sobre elas. Acredito, aliás, que politizar o desejo e a sexualidade tenha produzido uma forma de servidão ainda mais perigosa da subalternidade a uma moral ou a uma religião.”