Por Joana Mourão Carvalho e João Campos Rodrigues
Este não será um Campeonato do Mundo como os outros, como se nota por toda a polémica em torno da ida de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Augusto Santos Silva ao Qatar. Apesar de se tratar de uma monarquia absoluta, conhecida pelos abusos contra os trabalhadores migrantes, mulheres ou pessoas LGBT+, o primeiro-ministro de Portugal veio a público explicar que pretendia “apoiar a seleção, não a violação de direitos humanos”, em linha com o que defendera o Presidente. “O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal…”, admitira Marcelo, em declarações que se tornaram virais. “Mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa”, rematou.
Contudo, lá no fundo, além de toda esta conversa sobre apoiar a seleção, também estão em jogo considerações geopolíticas. “O mundial é um evento desportivo. Mas tem também uma enorme importância económica e a nível de política externa”, salienta Bruno Cardoso Reis, investigador Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL) do ISCTE, coordenador do doutoramento em História e Defesa, ao i.
É que “a política externa também passa pela promoção do país. Os países investem muito nos mundiais porque querem ter visibilidade, boa imagem, aumentar o seu prestígio”, explica o investigador. “Há sempre aqui uma dimensão política. Portanto dizer que vamos só falar do desporto não corresponde à realidade”.
“A questão aqui é qual é o nível de representação” de Portugal, continua. “Isso tem de ser uma decisão em função das seleções, do contributo que estas dão para promover o prestígio de um país. Mas é preciso sobretudo fazer um equilíbrio entre os interesses do país e os seus valores. Um chefe de Estado ou de Governo, por natureza, está a fazer uma viagem de Estado”.
“O fundamental é que não se diga que temos de ir sempre que é para apoiar a seleção”, reforça Cardoso Reis. “Tem de ser a seleção ao serviço do país, não o país ao serviço da seleção”
Com vários partidos a pedirem ao Presidente da República que marcasse uma posição contra o regime do Qatar recusando deslocar-se até lá, o PS, PSD e PCP viabilizaram a viagem para assistir ao jogo de estreia da seleção portuguesa no Mundial, com a abstenção do Chega. IL e BE votaram contra, sendo que os deputados únicos do PAN e do Livre, que também se tinham mostrado contra a deslocação, não têm assento na comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros, que foi marcada para apreciar o pedido de ausência do território nacional feito por Marcelo.
O voto dos comunistas, que se colocaram ao lado das duas maiores bancadas e longe dos bloquistas, sobressaiu, com a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, a argumentar que o partido condena as condições dos trabalhadores que estiveram envolvidos na construção de infraestruturas no Qatar, mas que “a defesa dos direitos pode assumir outras dimensões que não têm de passar por boicotes”, acrescentando que a Assembleia da República tem a competência de autorizar a ausência, mas não pode ditar a agenda do Presidente da República.
A votação terá ainda de ser confirmada nesta terça-feira em plenário. O chefe de Estado pediu autorização para viajar para o Qatar entre quarta e sexta-feira, para assistir na quinta-feira ao jogo Portugal-Gana. Já o presidente da Assembleia da República irá deslocar-se ao Qatar no dia 28 de novembro, para acompanhar o segundo jogo da equipa portuguesa, e no dia 2 de dezembro será a vez do primeiro-ministro.
Negócios do gás Talvez fosse mais esclarecedor perguntarmo-nos se o chamado Ocidente está numa posição que permita alienar os xeiques do Qatar, ou não. Falamos num reino que não só tem as terceiras maiores reservas de gás natural, como elas se tornaram ainda mais decisivas com a invasão da Ucrânia (ver página 10) e a perda de acesso aos vastos recursos energéticos da Rússia pela Europa.
“Hostilizar excessivamente o Qatar neste momento não seria avisado do ponto de vista dos interesses europeus”, lembra o investigador do CEI-IUL. “Agora, o Qatar também precisa de vender, tem interesse nisso. E tipicamente os países europeus até são dos que pagam mais. Aí há margem para pragmatismo”.
Parece ser um pouco esse o jogo do Ocidente. Ou seja, não se mostrando excessivamente entusiasmado com este Campeonato do Mundo mas procurando não ofender Doha demais.
Os EUA – que, apesar de não terem grande tradição futobolística, têm tentado cortejar monarquias do Golfo de maneira a que aumentem a produção petrolífera, para abastecer os aliados europeus – enviarão para Doha o secretário de Estado Anthony Blinken. Já a UE, talvez por contar com a diplomacia americana, não terá presente nenhuma alta figura, avançou o EUObserver.
Quanto às decisões dos países europeus, são uma manta de retalhos, em que muito dependerá da prestação das respetivas seleções. Na Holanda, nem o primeiro-ministro Mark Rutte, nem o Rei Willem-Alexander mostram interesse em ir ao Qatar. Emmanuel Macron declarou que vai se França chegar pelo menos às meias-finais da prova, mas ali ao lado o novo primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak, não faz tenções de ir. Enquanto Filipe IV de Espanha se destaca como o único monarca europeu que irá à fase de grupos da Copa do Mundo. Isto seis meses após o emir qatari, Tamim bin Hamad al-Thani, ser recebido com toda a pompa em Espanha, que procurava deixar de depender tanto de gás natural vindo da Argélia, avançou na altura o jornal espanhol Público.
É que Espanha, à semelhança de Portugal, quando sonha criar um gasoduto além dos Pirenéus que aproveite os seus terminais para gás natural liquefeito (LNG, na sigla inglesa), conta com abastecimento qatari. “Não me parece que o Qatar vá retaliar, pôr em causa os seus interesses económicos porque um país ou outro não se fez representar no mundial”, avalia Cardoso Reis.
No que respeita a investimentos do Estado do Qatar em Portugal, a Autoridade de Investimento do Qatar detém mais de 2% da EDP – Energias de Portugal. Em declarações à Lusa, em outubro, o embaixador do Qatar em Portugal afirmou também que o setor privado qatari “está presente em Portugal nas áreas imobiliária e turística, com destaque para um grande investimento recente numa unidade hoteleira na região do Algarve”.
Segundo os últimos dados do Gabinete de Estudos e Estratégia do Ministério da Economia e do Mar, divulgados no passado mês de outubro, o peso daquele país no comércio internacional de Portugal representava em 2021 apenas 0,10% das importações portuguesas e 0,06% das exportações. Já a quota de Portugal nas importações do Qatar cifrava-se em 0,19%.
Contudo, no que toca a Espanha e França, concentram enormes investimentos do fundo soberano do Qatar. Esta entidade surgiu com receitas da indústria petrolífera, estando avaliada em 445 mil milhões de euros e procurando diversificar os ativos do reino, mas também obter influência externa. Aliás, durante a recente visita do emir qatari a Madrid foi anunciado um investimento adicional de cinco mil milhões de euros na economia espanhola.
Na prática, tanto a crescente influência internacional do Qatar, como este dispendioso Campeonato do Mundo – custando cerca de 220 mil milhões de euros, o mais caro de sempre – ou os edifícios em cuja construção foram explorados trabalhadores foram em boa parte financiados pelo consumo energético do Ocidente.
“Infelizmente não podemos seguir uma política externa apenas ditada pela questão dos valores”, aponta Cardoso Reis.
“Não podemos só comprar gás natural a países democráticos e pluralistas. A Noruega e os EUA, que são basicamente os únicos exemplos, não têm volume suficiente para fornecer a Europa”, recorda. “Podemos optar por diversificar, reforçar parcerias com países que dão mais garantias, mas não se pode deixar de comprar recursos estratégicos a países com regimes altamente problemáticos”.