Sérgio Sousa Pinto. Provavelmente o político que melhor desenha no mundo

Aos 50 anos, o deputado rebelde do PS lança hoje o seu primeiro livro de desenhos, uma espécie de diário, como diz.

É um dos políticos mais antigos da Assembleia da_República, tendo feito pelo meio dois mandatos como eurodeputado, e é desse período que data a maior parte dos desenhos que hoje são lançados em livro – Fui Tão Feliz com a Minha Thompson, da Avenida da Liberdade Editores, no_Corte Inglés, às 18h30. Sérgio Sousa Pinto teve uma “educação formal” no Institut Saint-Luc, na École des Arts Visuels de La Cambre, na SNBA e na ESBAL, estes em Portugal, e o resultado, lê-se na cinta do livro, é “provavelmente o político que melhor desenha no mundo”, de acordo com João Catarino, o professor que tanto ensinou Sérgio. A entrevista foi feita na AR, com algumas provocações à mistura para tentar enquadrar os desenhos nos momentos que vivemos.

 

Quando começou a sentir esta veia artística para o desenho?

Desde sempre. Logo na escola primária. Os professores de desenho, no Pestalozzi, foram falar com os meus pais e recomendaram-me uma metodóloga, achavam que devia seguir desenho. Acabei por ir parar ao atelier da Cecília Menano, aqui na rua D. Carlos.

Não foi depois para a António Arroio…

Não, eu sempre desenhei, na escola desenhava, mas era uma das minhas ocupações fora da escola.

Tem desenhos dessa altura ainda?

Tenho. Tenho desenhos do tempo da primária, da altura do PREC, com mísseis. Normalmente eram sempre mísseis a bombardear Nova Iorque ou coisas desse género. Além de tanques com cravos.

E foi evoluindo para outras coisas?

Fui evoluindo tanto no desenho como na política.

Nunca teve apetência para ir para a António Arroio ou para fazer Belas Artes?

Tive que tomar uma decisão, que era ir para humanísticas ou ir para arquitetura. Decidi ir para humanísticas mas continuei sempre a desenhar pela vida fora.

Seguia o exemplo do D. Fernando II que andava sempre com um caderno no bolso para desenhar?

Estes desenhos foram quase todos – se não todos – feitos num caderno de bolso, sim.

Nas viagens?

Não todos. Alguns desenhos são de um curso que fiz. Já estava aqui, quando voltei do Parlamento Europeu fiz um curso na ESBAL e outro na Sociedade Nacional de Belas Artes de urban sketching, mas a maior parte dos desenhos são do tempo do Parlamento Europeu, porque foi uma altura em que passava muito tempo sozinho e muito tempo em viagens.

Nas aulas que teve, havia modelo?

Havia, muitas. Dizia-se ‘modèle vivant’, que é o desenho do corpo humano. Nunca fui muito bom nisso.

Nunca foi?

Não. Os professores embirravam com os contornos, com os traços, todo o meu desenho é sempre no traço.

Hoje em dia ainda há esses modelos ou já são considerados objetos?

[Risos] Ainda existem, ainda não foram substituídos por modelos de gesso.

Acha que ainda vamos chegar lá por causa da objetificação da mulher?

Não porque também existiam modelos masculinos.

Hitler foi rejeitado na escola de Belas Artes de Viena e deu no que deu. Teve a sorte de não ser rejeitado?

Até fui admitido numa escola bastante prestigiada, La Cambre, em Bruxelas. Mas a escola de que gostei mais foi o instituto Saint-Luc, que era a escola onde o Hergé dava aulas de banda desenhada. E eu frequentava um curso que começava às 18h30 e chamava-se Cours de Promotion Social, para trabalhadores estudantes. Eu saía do Parlamento e ia para lá.

Na La Cambre, havia muita gente que fugia para aí porque não gostava das escolas onde a arte conceptual reinava.

Em La Cambre a arte conceptual também reinava mas, apesar de tudo, era um ensino um bocadinho mais estruturado do que nas atuais escolas de arte, sobretudo em França. Muitos dos meus colegas – aliás não tinha nenhum colega belga – eram japoneses, checos, tailandeses… E os franceses iam à procura de um ensino um pouco mais estruturado.

O que acha do ensino de que eles fugiam?

Não sei como é que hoje as coisas se passam mas naquela altura o ensino era muito assente em desenvolver um projeto que era aprovado no princípio do ano e depois os estudantes ficavam entregues a si próprios no desenvolvimento de um projeto artístico que era a concretização do tal projeto. Toda a atividade criativa estava subordinada a uma conceptualização prévia. E os estudantes eram abandonados. Geralmente havia um dia da semana em que toda a gente visitava os trabalhos que cada um ia fazendo, discutia-se o trabalho e o resto do tempo era cada um entregue a si próprio a fazer o que lhe dava na real gana. Muitos estudantes não se adaptavam a esse estilo de ensino.

Chegou a dizer-me que uma vez perguntou a um professor que tintas podia usar para reproduzir melhor a pele.

Sim, eu não sei pintar. Mas um dia perguntei a um professor quais eram as cores clássicas para desenhar o tom da pele e ele disse-me que achava que aquela questão não interessava nada. E depois, meio em segredo, deu-me uma cábula com os tons, que em princípio são aqueles que permitem reproduzir a cor da pele.

Tendo essa veia artística, o que acha de um cocozinho dentro de uma lata de sardinhas ou um bidé partido serem vistos como obras de arte?

Não faço julgamentos sobre arte conceptual.

Tem medo de ser considerado reacionário?

Não. Acho que ela tem tanto o direito como esta forma de expressão artística. Não vou impugnar a arte contemporânea até porque há coisas que eu gosto. Agora quer dizer, esta linhagem criada pelo Marcel Duchamp e que hoje em dia é dominante na cena artística internacional, dizia pouco a alguém que, sobretudo, gostava de fazer bonecos num caderno pequenino preto – muito parecido, aliás, com o livro – em aeroportos, salas de espera, na cama antes de adormecer…

Desenhou na cama?

Sim, desenhei na cama.

Proust só escrevia deitado na cama.

O Proust escrevia deitado num quarto insonorizado todo revestido a cortiça porque o barulho da rua o incomodava. Mas eu desenhava na cama, nos cafés, nas salas de espera… o barulho e a confusão faziam parte do meu ambiente de trabalho.

Mas contou também que um rapaz no curso esteve não sei quanto tempo a pintar uma parede preta…

Exato. Lá desenvolveu um conceito qualquer que foi aprovado no início do ano e depois passou enigmaticamente o ano letivo a pintar de preto o atelier.

Não acha que estamos próximos da loucura?

Não. Quem sou eu para estar a julgar?

Qualquer pintor de casas…

Aquilo não era bem uma pintura de casa. Podia ser, materialmente, a mesma coisa. Mas aquela ação estava subordinada a uma finalidade qualquer previamente conceptualizada. Aquilo pertencia aos novos cânones da arte contemporânea. Não sei o que será feito desse tipo, não sei se ainda continua a pintar paredes. Também havia um que estava a fazer uma casa de banho. O projeto dele era fazer uma casa de banho. Dentro do atelier havia um enorme caixote que era uma casa de banho. Tudo isto no curso de desenho, entenda-se.

Já percebi que tem medo de ser considerado reacionário.

Não.

Não desenhou personagens reais?

Desenhei. Nem sempre com grande êxito. Os únicos personagens reais que aparecem aí são os meus filhos. Não fui eu que escolhi os desenhos, foi o João Catarino.

Quantos desenhos deu para escolherem?

Dei uma carrada de cadernos que encontrei desses tempos. Como quase tudo está nuns caderninhos pretos de que eu gostava.

Como chegaram a um consenso?

Tivemos uma negociação sobre quais eu achava que deviam figurar e quais não deviam figurar, mas o que prevaleceu foi o critério do João Catarino. Que eu conheci como meu professor na ESBAL e é um dos desenhadores que eu mais considero e admiro no país.

O que o inspirou? No livro tem um lado muito malandreco, umas mulheres muito sugestivas. Dizia há pouco que fazer um livro de desenhos é entrar no cérebro do autor. Porque aceitou que entrem no seu cérebro? Diz que é mais íntimo do que a escrita.

Mas os aspetos mais íntimos não são os desenhos de mulheres. É tudo. Desenhos de árvores, de florestas, de pessoas, os desenhos de pessoas distraídas que não sabem que estão a ser desenhadas. Tudo isso supõe uma escolha, uma intimidade.

Mas por que diz que entra no cérebro?

Acho que o desenho é mais íntimo que a escrita.

Nenhuma destas pessoas que desenhou sabe que a desenhou?

Há imensa gente que estava comigo em comboios, aeroportos, aviões… mas a maior parte dos desenhos nem sequer são a partir de modelos humanos, são desenhos de imaginação. E há muitos desenhos feitos a partir de imagens de filmes. Gostava de parar filmes, sobretudo a preto e branco, e desenhar aproveitando a iluminação para utilizar o preto e branco.

A Thompson que aparece no título do livro é a caneta?

Não, é a metralhadora dos gangsters, aquela que tem aquele tambor à frente.

Desenhava com quê?

Tinta da china. A maior parte das vezes com pincel e às vezes com caneta.

Depois do Cunhal, que se saiba, é o único político que desenha. Conhece um político que desenhe? Na história tivemos os reis, D. Fernando II, D. Carlos, D. Amélia, Álvaro Cunhal…

Acho que o Fernando II desenhava porque isso fazia parte dos hábitos de uma pessoa culta no seu tempo. O D. Carlos era, realmente, um grande artista. Os óleos de D. Carlos são uma maravilha, as aguarelas são uma maravilha. Do desenho conheço menos mas é impossível pintar bem sem ter noções de desenho.

Em relação a Cunhal…

Acho que desenhava maravilhosamente. Tenho lido apreciações depreciativas sobre os desenhos do Cunhal e eu acho os desenhos do Cunhal extraordinários.

Não há nada no livro que sinta que possa ser atacado por causa do seu olhar nesta nova filosofia em que tudo é objeto?

Nem sequer me ocorreu tal coisa mas a hipótese não é absurda.

Teve esta ideia para o livro ou foi desafiado?

Fui desafiado pelo Alexandre Vasconcelos e Sá e pelo José Araújo para publicar este livro que me pareceu um projeto um pouco delirante, uma vez que acho que não há público especialmente interessado neste tipo de exercícios pessoais e íntimos. Isto é quase como um diário só que em vez de ser escrito é registado graficamente.

E o que diz esse diário?

Diz qualquer coisa como ‘nós não somos pessoas unidimensionais, ninguém é e eu também não sou, somos todos um pouco poliédricos’. Isto é outra face da minha vida.

Ofereceu os direitos do livro?

Sim, não tenho direitos de autor mas isso não interessa nada.

Interessa, acho que é um pormenor engraçado.

Um livro de desenhos é um livro caríssimo. E achei o projeto deles uma aventura, muito aventuroso. E cedi logo os direitos de autor.

Tem uma imagem de político rebelde. Acha que fica ainda mais com essa imagem?

Nem pensei nisso, isto não tem nada a ver com política. As pessoas tendem a pensar que uma pessoa que está na política, tudo o que faz é em função da política. Não sou assim, nunca fui. Este livro não tem rigorosamente nada a ver com a política.

E admite um dia fazer desenhos sobre a política?

Não, isso é um tema que não me inspira nada em matéria de desenhos [risos]. Mas por acaso descobri um caderno, já depois de ter dado o que encontrei aos editores, com imensos desenhos das estátuas do plenário.

Feitos quando já era deputado?

Sim, claro. Era numa época mais livre. Se fosse hoje com certeza que iam dizer ‘olha o tipo que está no plenário a pintar as estátuas da justiça, da jurisprudência…’ [risos].

Mas é melhor que se apresse porque já há quem queira retirar alguns quadros que estão na AR.

Eu também retirava vários quadros da Assembleia. A Assembleia está cheia de maus quadros, por falta de qualidade intrínseca, não por questões do politicamente correto. Mas também tem grandes quadros em sítios que não têm dignidade… Precisava de uma volta.

Em relação a hoje, acha que era impossível alguém estar a desenhar…

Não, de certeza que havia logo uma notícia a dizer que fulano tal, em vez de estar a seguir escrupulosamente este debate sobre um tema qualquer de atualidade, está a desenhar a estátua que representa a jurisprudência.

Diz no livro que o desenho devia fazer parte…

Da formação integral do indivíduo, claro.

Desde criança.

Desde criança. O desenho e a música. É das coisas que mais me custa no estado do ensino em Portugal é a forma como é tratado o desenho e a música.

E o que é preciso fazer para que isso mude?

É preciso levar a sério estas disciplinas. Existem excelentes professores de desenho que, com vantagem, substituíam muitos dos atuais professores de educação visual. Entristece-me que certas áreas fundamentais para o desenvolvimento integral de uma pessoa e da sua expressão artística – que é tão importante porque é mais uma oportunidade de felicidade na vida, desenvolver essas competências – seja tão desconsiderada pela escola pública. E isso significa que quem cultiva o desenho, quem cultiva a música, fá-lo por causa de uma tradição familiar ou porque a família era sensível a estas questões. E não porque a escola pública verdadeiramente rasgue estes horizontes a pessoas que vêm de um meio em que estas competências e estas paixões não eram valorizadas. É isto que me custa.

Então a sua apetência é por uma questão familiar?

Familiar porque os meus pais achavam que desenhar era muito importante e valorizavam e respeitavam e apreciavam e compravam os meios necessários para eu desenvolver esta minha inclinação pessoal.

O que teve de fazer no exame de admissão em La Cambre?

No meu exame de admissão, no último dia, tivemos que desenhar três quadros de que gostássemos muito. Como é evidente, não é fácil transpor para o desenho um quadro.

Quais escolheu?

Salvo erro, a Carga da Cavalaria Vermelha do Malevich, o Monsieur Bertin, do Ingres, e Saturno Devorando um dos seus Filhos, a gravura do Goya.

Safou-se bem?

Safei, entrei.

Não estão no livro?

Não.

Não os deu para escolherem?

Devo ter dado. Este livro obedeceu ao critério soberano do professor João Catarino.

Como faz uma coisa que tem o seu nome e não tem uma palavra a dizer?

Tenho. Fartei-me de discutir com ele. E ele no fim ganhou. Já vi que muita gente gosta de desenhos que são aqueles de que eu gosto menos. Gosto de alguns desenhos a que as pessoas são indiferentes. Portanto, se calhar, quem tem razão é o Catarino.

Teve a sensação de que quem está de fora é capaz de escolher melhor?

Tenho um enorme respeito e admiração pelo João Catarino, gosto muito do que ele faz. Ainda por cima ele também trabalha com o pincel. E eu gosto de desenho com pincel. E subordinei-me ao critério dele. E com total confiança. Sou muito tímido em relação aos meus desenhos. Mário Soares queria que eu fizesse uma exposição na Fundação Mário Soares e eu nunca aceitei.

Mas agora vai aceitar…

Os desenhos são uma coisa muito…

Mas está a publicar um livro.

Nunca desenhei para fazer uma obra. Nunca desenhei para os desenhos serem expostos, nunca desenhei com essa finalidade. E o que me interessa e o que valorizo é a ideia das pessoas poderem todas desenhar pelo prazer que desenhar proporciona e não pelo reconhecimento, pela publicidade. Acho que há demasiada gente que faz aquilo que o mercado pede e há muito pouca gente que faz aquilo que verdadeiramente gosta e quer.

E faz isso?

Faço o que me apetece.

Mas como cedeu, pode ser que algum dia alguém o consiga convencer a fazer uma exposição.

Se acharem que os meus bonecos têm interesse…

Os originais são seus. Admite um dia vendê-los se tiver sucesso?

Eu arruíno o mercado porque passo a vida a oferecer os meus desenhos. As pessoas pedem desenhos e eu faço e ofereço.

Em sua casa tem muitos desenhos seus?

Tenho, mas são coisas muito antigas, bandas desenhadas de quando tinha 18 anos e coisas assim.

Fazia banda desenhada?

Fazia. Tentei adaptar O Estrangeiro, do Camus, fiz para aí uma página. Não foi grande coisa, mas eu gosto.

Que mais coisas fez?

Geralmente eram adaptações de contos. Eram contos pequenos que se adaptavam facilmente a uma narrativa gráfica. Mas, olhe, fiquei muito lisonjeado quando publiquei um desenho no Expresso para ilustrar um artigo sobre os famosos incêndios de 2017, a convite do Pedro Santos Guerreiro.

Não acha que tem uma falsa modéstia quando acha que o livro não vai ser um sucesso? É um político, com programas de televisão…

Não, falo dos desenhos como falo de política, com verdade. Digo exatamente aquilo que penso. Não estou a ser falso modesto.

Então é um sofredor?

Não, digo o que penso. Este livro alcançaria os seus objetivos se pessoas que seguiram as vidas mais diversas suspeitassem que desenhar é mais uma oportunidade de realização e felicidade que ajuda no resto. Gosto do desenho como uma oportunidade de liberdade, de felicidade, de criação. Não é só o desenho. A música é outra oportunidade de criação. A jardinagem é outra oportunidade de criação. As pessoas que têm na vida uma dimensão criativa, a vida é um bocadinho mais interessante para elas.

Os seus hobbies são desenhar, música… Toca?

Não. Aprendi a tocar piano, mas não tenho talento.

Mas para o desenho sente que tem.

Tenho talento para o desenho, mas isso é outra armadilha porque as pessoas têm a mania que o desenho é uma espécie de talento inato. É verdade que, assim como para outros, a matemática é um talento inato, também o desenho é um talento inato. Só que assim como a matemática pode ser aprendida por quem não tem especial inclinação para a matemática, o desenho também pode ser aprendido. O desenho aprende-se. A única coisa que é importante é a paixão pelo desenho.