Sem pressa alguma, com um assombro infinito, este estranho e discreto autor que almejava ser um decifrador da mística quotidiana, publicou ao longo da sua vida uma série de ensaios breves e fragmentos com um balanço poético, frases incisivas, de um vigor que, nas melhores alturas, combinava o rigor da dicção dos grandes moralistas e a inebriante relação daqueles antigos testemunhos religiosos que pareciam infundidos do deslumbramento diante das forças genesíacas. Nos piores podia, no entanto, resvalar para o registo beato, para umas banalidades emocionadas e de tom pastoso, ficando perigosamente próximo dos enfáticos clichés próprios dessa praga de ostentosos burocratas do reino das espiritualidades. Mas Christian Bobin foi, de qualquer modo, o cultor de uma obra singularíssima, um autor praticamente desconhecido em Portugal, apesar de dele terem sido publicados um punhado de livros por selos de natureza muito diferente, os três últimos por duas editoras independentes, a Barco Bêbado (Um vestido curto de festa e A Inesperada) e a Livraria Flâneur (Auto-retrato com radiador). Antes tinham saído Um deus à flor da terra (Difel, 1994), Ressuscitar (Edições Tenacitas, 2006) e Francisco e o pequenino (Apostolado da Oração, 2014).
Tendo publicado mais de 70 livros, alguns deles meros folhetos, a sua obra foi distinguida por quatro prémios, um dos quais da Academia francesa em 2016. Outro deles foi o Grande Prémio Católico de Literatura, em 1993. Nessa década, um dos seus livros, dedicado ao exemplo de São Francisco de Assis, transformou-o num fenómeno de vendas, com largas centenas de milhares de exemplares a encontrarem leitores em França, o que o colocou na mira de alguns literatos, tornando-o o alvo do seu desprezo e de uma sucessão de ataques por parte da crítica, que se empenhou em provar que se tratava de um desses fenómenos de popularidade que fazem fronteira com o regime das espiritualidades, aquela peçonha dos bons sentimentos expressos numa linguagem delicodoce, regurgitando frases feitas, gémeas do timbre motivacional de tantos livros de auto-ajuda. Mas havia, apesar de tudo, sempre um ideal de resistência na sua obra, e embora reconhecesse que há um desejo insaciável em nós de manter estreitas relações com o mundo, também insistia que é preciso não se tornar prisioneiro dele, uma vez que “entre o coração e o mundo há uma luta de morte”. “É por isso que o coração é a coisa mais dura do mundo, ao contrário da opinião corrente que defende que o coração é suave. Eu penso que é preciso ter o coração bem cerrado para que o mundo não entre lá, porque caso entre, é o fim.”
Se havia esse lado um tanto beato em tantos dos seus escritos, se muitos resvalavam da oração e desse tumulto secreto que se surpreende numa vasta intimidade com as coisas para um tom bastante meloso, o que distingue o seu ofício é o relevo de tantas das frases, a intensidade que ressuma das contemplações a que se entregava – “O que em nós está ferido pede asilo às mais pequenas coisas do chão, e recebe” – de tal modo que nos demoramos sobre as suas inscrições como sobre notícias que não envelhecem, atravessando toda a experiência dos homens, como gravuras rupestres que nos ligam entre eras diferentes, e isso leva a que algumas das suas páginas contenham um fulgor exaltante que sobrevive como tantos fragmentos anónimos apropriados por gerações em reconhecimento do seu encanto iluminador.
No livro La traversée des images dizia-nos: “Um escritor é alguém que se bate com o anjo da sua solidão e da sua verdade. Uma luta confusa, sem conhecer a sua conclusão. Um combate de rua, uma mistura de bandidos, de penas voando em todas as direcções e, por vezes, como em todo o combate, um momento de tréguas.” Mais à frente continua: “Não é a tinta que faz a escrita, é a voz, a verdade solitária da voz, a hemorragia da verdade no ventre da voz.”
Ao invés de “desenraizar-se da transcendência” (Lucáks), foi precisamente esse o sentido que organizou o seu testemunho, o de um homem que entendia que “o génio da arte é apenas uma réstia da vida amorosa, que é a única vida”, e escolheu passar a maior parte da sua vida em Le Creusot, uma pequena cidade mineira do interior, na região da Borgonha, onde nasceu em 1951 e viria a morrer 71 anos depois, na passada quinta-feira. Os seus livros tornaram-se testemunhos preciosos para os leitores que o seguiam num leve culto cerimonioso, livros como La présence pure (Gallimard, 2008) em que relata a experiência com a doença de Alzheimer que se abateu sobre o seu pai, fazendo dele “um náufrago na sua mente”. Bobin insistia que “é por cada um de nós se esforçar para que a vida doa o menos possível que esta se transforma num inferno”. Ora, isto era, em seu entender, precisamente aquilo que fragilizava e condenava a espiritualidade ocidental, e mostrava-se muito crítico da forma como as pessoas, hoje, buscam uma religião que se encaixe nas suas preferências, em vez de uma religião que lhes dê os ensinamentos necessários para se empenharem na difícil busca da verdade. “Nasci num mundo que começava a virar costas a qualquer conversa sobre a morte: e este mundo seguiu o seu caminho, sem perceber que assim se impedia de ouvir qualquer conversa sobre a graça”.
Ele buscava o enlevo, a revelação espiritual, o esplendor das coisas, tentando captar o riso da realidade. E rejubilava pelo facto de, apesar de todos os obstáculos, de todas as distracções e de tudo quanto fazemos para nos tornar inalcançáveis, esse sentido gracioso da existência ainda conseguir ferir-nos e deixar em nós o sentido da falta, o desejo de buscar algo que está para além dessa vida útil que tanto nos soterra. “O que é estranho é que – graças a uma espera, um olhar ou uma risada – às vezes temos acesso a esse oitavo dia da semana, que não nasce nem morre no contexto do tempo.”
Numa prosa que esbate as fronteiras dos géneros, que balança entre a narração e um impulso meditativo, tantas vezes Bobin reflectia sobre os equívocos da nossa época, e, embora fosse um homem deste mundo, o apelo do outro nunca deixou de ser sentido nas coisas que escrevia. Tendo levado uma vida como eremita, reconhecia essa dimensão estranha do nosso tempo, o seu desejo de desertar daqui, de abandonar o mundo àqueles que se afadigam na relação mais vulgar com a existência. “A vida em sociedade é quando todos obedecem ao que ninguém quer. A escrita é uma escapatória a esta miséria, uma variação da solidão assim como amar ou brincar – um princípio de insubmissão, uma virtude de infância”, regista no texto “Um chá sem chá”.
Noutro momento do mesmo livro, lembra que “a verdadeira vulgaridade deste mundo está no tempo, na incapacidade de o despender de forma diferente do dinheiro”. Por outro lado, sempre houve nele e nos autores com quem se manteve em diálogo o receio do próprio desaparecimento do mundo, e Vincent Lamkin, autor que lhe era próximo, notou que, em certo sentido, a caverna de Platão talvez fosse menos uma metáfora do que uma premonição: a forma como uma humanidade que se constituiu através dos laços entre os homens se desagrega e some. À medida que esta se deslumbra com o “metaverso, e olha para si mesma através do superficial reflexo das redes sociais, apenas se demora na luz artificial dos ecrãs”. No meio desta desordem que envenena as próprias aspirações, as palavras podem soar muito alto, mas estando os homens ocos, a sua vibração atravessa-os sem provocar neles o menor sobressalto. “E o homem lívido é o homem social, o homem útil, convencido da sua utilidade. É o homem com a mais fraca identidade, preso à manutenção das coisas como estão, à mentira eterna de viver a vida em sociedade. E, depois, há um outro tipo de homem. Inútil, esse. Maravilhosamente inútil. (…) Ele não acrescenta nem retira nada do mundo: ele abandona-o.”
Lamkin diz-nos que as palavras de Bobin eram como lâmpadas acesas em pleno dia, mas a sua luz, ao invés de consumir energia, conservava-a, e que, muitos que o conheceram ou leram, terão tido a impressão de que também ele poderia ter dito como Diógenes: “Estou à procura de um Homem.
“A vida corre depressa da morte e precisamos que seja a morte a lembrar-nos que o que é necessário é aprender a viajar na quietude das coisas”, vinca Lamkin. E no último dos livros de Bobin publicado entre nós, A Inesperada, ele registava: “É o mal do mundo e é dele que sofre a louca investida das imagens: o de não conseguir captar uma réstia de vulnerabilidade da dor, de desconhecer as leis elementares da hospitalidade que mandam que se dê de beber a quem vem de longe. (…) A inteligência é a força solitária de extrair do caos da própria vida uma mão cheia de luz, capaz de iluminar um pouco mais além de nós próprios – na direcção do outro, também, tal como nós, perdido no escuro.”
Bobin reconhecia “por todo o lado esta languidez do exílio e esta fome de verdadeira morada, aos olhos do outro”. A religiosidade nos seus textos não se rebaixa a um regime de sujeição a alguma disciplina hipócrita, como essa ortodoxia funesta que liga tantos daqueles que, entre nós, tratam de desvitalizar o sentido original de insurreição dos cristãos que se bateram para se libertarem dessas formas de servidão que reduzem a vida a um cansaço permanente, incapaz de se corresponder com qualquer sentido mais profundo da existência. Ao invés de deturpar os exemplos, ao dedicar-se ao estudo da vida de São Francisco de Assis, em Le très-bas (Gallimard, 1992), o que interessava a Bobin era resgatar esse signo da pobreza, do sacrifício e da abnegação que deve nortear a vida daqueles que se empenham em constituir um apoio para os outros. “Colocámos algumas das suas palavras num livro delgado, um livro bastante pobre. Palavras sem beleza, frases sem graça, usadas como camisa de pobre lavada vezes demais, excessivamente remendada. Acrescentando-lhe passagens tomadas de empréstimo da Bíblia. Aqui um trecho de um pedaço de um salmo, aqui outro mais outro, isto irá suster-se bem assim, e irá bem com o que pretendemos fazer: orar, falar ao vazio para que este limpe as nossas palavras.”
Lamkin reforça a ressonância da força e clareza dos grandes moralistas que havia na escrita de Bobin, dizendo-nos que ele parecia um século com outra chama desbravando o seu caminho no meio do nosso. A sua arte consistia no apuro desse género de fascínio que sustenta certas máximas, lembrando que aprender a viver não se trata de um luxo, uma vez que é uma oportunidade ao alcance de todos, lembra ainda que é importante manter a sobriedade, sem, no entanto, se ficar esmagado pela nossa condição humilde perante a imensidade. De resto, ele vê aí uma lição fundamental, sendo essencial deixar transparecer a “leveza do pássaro que, para cantar, não precisa de possuir a floresta, nem uma única árvore sequer”. Mas é nos momentos em que a sua escrita é atravessada de certos laivos da ira espantosa de Cristo que estes se tornam mais radiantes e exemplares, como no primeiro parágrafo de Pierre, onde se lança contra essa espécie de pequeno mercado dos vendilhões do pechisbeque lírico à porta dos templos que vão restando a esta era. “Estou-me nas tintas para a pintura. Estou-me nas tintas para a música. Estou-me nas tintas para a poesia. Estou-me nas tintas para tudo o que pertence a um género e lentamente se estiola nessa pertença. Foram precisos mais de sessenta anos para saber o que procurava ao escrever, ao ler, ao apaixonar-me; ao parar diante de uma trepadeira, uma pedra ou um pôr-do-sol. Eu procuro o surgimento de uma presença, o excesso do real que destrói todas as definições. Bach é mais do que um músico. Soulages é mais do que um pintor. Rimbaud não é um poeta, senão de forma secundária, como as cinzas que, à semelhança das borboletas, caem de um vulcão – os poemas. Eu reconheço nestes insensatos o que aprende com pavor o recém-nascido, cada vez que o rosto da mãe volta a aparecer, temendo a tela de ar como o leão teme o círculo de fogo; há uma realidade infinitamente maior que toda a realidade, que amassa, mói e inflama todas as aparências. Há uma presença que atravessou todos os infernos antes de nos atingir para nos preencher, liquidando-nos o ego.”