por João Sena
Em Doha, Augusto Santos Silva garantiu não haver qualquer problema nas relações entre Portugal e o Qatar. «Os dois países têm um relacionamento diplomático intenso. O Qatar é um dos estados do Golfo em que temos um embaixador residente e é uma região estratégica para nós», afirmou a segunda figura do Estado português. E referiu ainda que há vários pontos que «não devem ser esquecidos» de forma a manter um bom relacionamento bilateral. Invocando a experiência como ministro dos Negócios Estrangeiros, lembrou dois factos: «O primeiro é que, infelizmente, o anterior embaixador de Portugal no Qatar, Ricardo Pracana, morreu no posto e foi inexcedível o apoio que as autoridades qataris prestaram. (…) O segundo facto [foi] quando tivemos de retirar dezenas de pessoas do Afeganistão – designadamente afegãos que tinham colaborado com as forças armadas portuguesas – numa operação muito difícil. Fizemo-lo porque contámos com o apoio do Paquistão na rota terrestre e com o apoio do Qatar na rota aérea». O alinhamento de Santos Silva com as autoridades qataris vai mais longe, ao elogiar a «posição muito clara que o Qatar tem tido na Assembleia Geral das Nações Unidas na condenação da guerra contra a Ucrânia, e a importância do ponto de vista geopolítico e geoeconómico que esta região tem hoje no mundo».
Discurso moderado agrada
Nas declarações de Santos Silva percebe-se, claramente, maior cordialidade por comparação com os discursos de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa (as tais ‘hostis’), e seguindo uma narrativa sobre direitos humanos que incomodaram o Governo do Qatar ao ponto de, como noticiou o Nascer do SOL na sua última edição, admitir colocar o país na lista negra logo que termine o Campeonato do Mundo de futebol, o mesmo acontecendo com a Alemanha, Dinamarca e França, que seguiram o mesmo tipo de discurso.
O esforço diplomático de Santos Silva conseguiu, aparentemente, controlar os danos provocado pelas declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, que, numa conferência em Doha, voltou a bater na tecla da violação dos direitos humanos, já depois de saber que as declarações anteriores tinham sido consideradas «hostis» pelo Governo qatari. O corpo diplomático entrou imediatamente em ação no Palácio das Necessidades e em Doha, no sentido de evitar o escalar da situação. Foi enviada uma delegação portuguesa ao Qatar para garantir que a viagem de Santos Silva não iria trazer mais problemas a Portugal, e que o ajuste de contas diplomático não teria consequências.
Além da presença no estádio para assistir ao jogo de Portugal, o Presidente da Assembleia da Républica esteve reunido com as autoridades qataris, onde foram abordados «todos os assuntos que são de interesse quer para Portugal quer para o Qatar». O trabalho de casa foi bem feito, e Santos Silva foi recebido com honras de Estado. Foi recebido no aeroporto pelo vice-primeiro-ministro, Mohammed bin Abdulrahman Al-Thani, e ficou no hotel reservado exclusivamente a chefes de Estado (em vez de ficar no hotel Banyan Tree, reservado aos vice-presidentes e presidentes de parlamentos. Um tratamento bem diferente daquele que foi dado ao Presidente da Républica aquando da sua visita ao Qatar, já que foi recebido pela filha do Sheikh do emirado – tendo este estado no estádio no seu camarote privado sem ter recebido o chefe de Estado português. Decididamente, as autoridades qataris parecem poder perdoar, mas não esquecem.
Hipocrisia ocidental
Sobre o tema dos direitos humanos no Qatar, Ângelo Correia, antigo ministro da Administração Interna (de Cavaco Silva), considera que é «uma hipocrisia e um complexo de superioridade do Ocidente». Em declarações ao Nascer do SOL, o também analista e comentador político acrescentou que o Ocidente «está a penalizar-se a si próprio pelos erros do passado relativamente à colonização bárbara de alguns países dessa região, ao mesmo tempo que assume a superioridade do presente, como se nada tivesse acontecido no passado. Há uma contradição na Europa entre o ter pecado por excesso nesta matéria e mostrar uma supremacia sobre aqueles que ainda não estão no seu trilho. É uma atitude equívoca, patética e contraditória». Mas a classe política também tem responsabilidade: «A posição portuguesa sobre o Qatar deixou a desejar em algumas circunstâncias e houve algum oportunismo de certas pessoas e de alguns partidos. Hoje em dia há duas questões que escapam à realidade democrática portuguesa, que são a ausência de memória e depois uma grande agitação do politicamente correto».
As relações entre Portugal e o Qatar entraram numa fase menos tensa, e a presença de Ana Catarina Mendes, ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, em substituição do primeiro-ministro – que cancelou a viagem por motivos de saúde –, no jogo de ontem em que Portugal perdeu frente à Coreia do Sul (1-2) são disso o exemplo. «É dia de estarmos todos unidos com as cores de Portugal, as cores de uma sociedade aberta, moderna e inclusiva, que me orgulho de representar», afirmou à agência Lusa.
Está prevista a deslocação de António Costa ao jogo dos oitavos de final na terça-feira e, caso a seleção nacional continue em prova, de Santos Silva aos quartos de final e de Marcelo Rebelo de Sousa à meia-final, depois… logo se vê. Mas uma coisa é certa, é imperioso haver um alinhamento do discurso oficial para evitar deixar o país cair na lista negra do emirado.