Novos prédios agravam inundações em Lisboa

A CUF Tejo, o LX Factory e a sede da EDP são alguns dos exemplos de edifícios que dificultam o escoamento de água. Fenómenos destes vão ocorrer com mais frequência e com mais intensidade e o plano de drenagem feito a pensar nos dias de hoje poderá ficar ultrapassado – a exemplo do que  se…

 

A construção dos novos edifícios na zona ribeirinha de Lisboa agravou o problema de inundações que se assistiu esta semana, dizem vários especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL. O arquiteto Tiago Mota Saraiva explica que «quando se está a discutir os planos de novos projetos, como a CUF Tejo parece que estes problemas não existem. Nos últimos anos e sobretudo 2012 é muito marcante porque já se sabia isto e lembro-me de estar presente nas discussões sobre o PDM e dizerem-me que era um velho do Restelo e que estava contra o progresso, porque o progresso era liberalizar os solos. E liberalizar os solos deu nisto».

Mota Saraiva é perentório: «Não podemos estar continuamente a construir. E o problema agrava-se quando as câmaras obrigam os novos edifícios a terem estacionamentos nas caves. Devia ser considerado crime».

A par da CUF Tejo, o arquiteto dá outros exemplos. É o caso da nova sede da EDP, na Avenida 24 de Julho, que também foi construída recentemente e conta com estacionamento subterrâneo, exemplo que será seguido no novo Plano Pormenor do Aterro da Boavista Poente (PPABP) – que vai ter quatro novas torres à beira-rio, entre Santos e o Cais do Sodré. «São compromissos urbanísticos já encerrados e se a Câmara se não os quiser vai ter de indemnizar os promotores. Todos esses projetos urbanísticos aprovados para a frente rio são um desastre. Por exemplo, o edifício da CUF Tejo estar em paralelo ao rio é um bloqueio das águas que andam ali», salienta.

Já em relação à construção mais antiga, considera que não acarreta tantos problemas de inundações porque não conta com tantas caves. «Está mais precavida. Somos muito marcados a determinada altura pela questão do terramoto e havia esse cuidado, no entanto fomo-nos esquecendo destas coisas. E estamos continuamente a repetir erros».

Lembra ainda que a cidade de Lisboa está sob água – e até a toponímia transparece isso. «Arroios significa ribeira subterrânea. Sete Rios, Entrecampos e Alcântara são termos relacionados com água. Logo tem-se à partida uma condição que diz ‘tenham cuidado com o que está aqui em baixo’ e na verdade nunca tivemos».

Também Carlos Antunes, professor e investigador da Faculdade de Ciências de Lisboa e do Instituto Dom Luiz, apesar de admitir que não se pode associar diretamente a construção às inundações, considera que estes novos edifícios na zona ribeirinha dificultam em princípio o escoamento das águas. «Quanto mais ocupamos a zona ribeirinha mais se torna difícil escoar as águas a montante. Claro que a topografia, mesmo não existindo o edifício, a inundação ocorreria na mesma devido à impermeabilização dos solos, independentemente de estar lá a CUF Tejo ou não ou os novos edifícios, como o Lx Factory. Todos esses edifícios vão tornar mais difícil, em cenários futuros, o escoamento das águas e vão aumentar a contenção das águas ou a retenção do escoamento das águas para o rio».

 Um cenário que só vai piorar, uma vez que já se sabe que estes fenómenos extremos se vão intensificar. «Uma coisa é o período de retorno atual de 100 anos, mas no futuro, no final do século, poderemos ter esses mesmos eventos com um período de retorno mais curto, de 30 em 30 anos ou de 40 em 40 anos, o que significa que os eventos muitos extremos se vão começar a observar com mais frequência e com intensidades maiores».

E face a isso o plano de drenagem – que prevê a construção de dois túneis, cada um deles com cinco metros de diâmetro: um entre Campolide e Santa Apolónia, outro entre Chelas e Beato – cujas obras devem arrancar em março, implicando também obras na rede de esgotos, poderá não ser a solução.

«Hipoteticamente, o próprio sistema que atualmente estamos a desenhar, e que vamos construir nos próximos anos, pode não ser suficiente, nomeadamente por haver mais construção junto à zona ribeirinha e isso dificultar mais a drenagem à superfície. Por outro lado, o nível de mar mais elevado dificulta a drenagem para o sistema que vai ser construído. Vamos ver o que é que este sistema vai fazer em situações futuras», refere Carlos Antunes. E dá como exemplo Veneza. «O sistema em Veneza está condenado no final do século a não servir o propósito de defesa de inundações. O mesmo poderá acontecer com este sistema. Ou seja, foi construído para um cenário de um aumento do nível do mar de meio metro com inundações com período de retorno de 100 anos, quando isso irá ocorrer de 30 em 30 anos ou de 40 em 40 anos».

Também Tiago Mota Saraiva, apesar de reconhecer que essa obra tem de ser feita e que anda a ser anunciada nos últimos anos pelos dois autarcas da cidade (Medina e Moedas), defende que tem de ser acompanhada pela redução do número de água a entubar. «Se continuamos em progressão geométrica a produzir mais água, ou seja, a deixar que menos água se infiltre nos solos e ter de a entubar vamos ter de continuar a construir canos, atrás de canos. Já temos 1500 quilómetros de canos de coletores pela cidade toda. É uma coisa absurda, ou seja, temos a cidade muito afunilada», disse ao jornal i.

Enquanto essa estratégia não mudar, «é natural que se assista a episódios destes ciclicamente», lembrando ainda que «mesmo em 2025 se estiver pronta a tal rede que Carlos Moedas tem estado a anunciar como se tivesse sido aprovada agora, tenho ideia que se não houver uma inversão da lógica da construção vamos continuar com isto».

 

Elétricos os mais afetados

Os carros elétricos são os mais afetados pelas inundações. Uma condutora contou ao Nascer do SOL_que evita conduzir o seu automóvel em situações destas, com receio de que as infiltrações atinjam a bateria. «Neste momento o carro está sob vigilância e parado para não correr riscos. Está estacionado em Benfica, uma das zonas que foi mais afetada pelo mau tempo, apesar da bateria de fora estar protegida».

No entanto, o presidente da Associação UVE – Utilizadores de Veículos Elétricos, Henrique Sánchez desvaloriza este risco. «Um carro com motor de combustão interna, seja a gasolina ou a gasóleo, a partir do momento em que a água chega ao motor, ele simplesmente pára. Curioso que, neste momento, falamos do único carro elétrico que ficou parado no Campo Grande, mas vi sempre dezenas de carros com motor a combustão parados e nenhum foi notícia. Num carro com motor a combustão interna, se a água chegar ao nível do motor, ele pura e simplesmente pára, não anda mais. O carro elétrico consegue andar com o motor totalmente dentro de água. O que aconteceu naquele caso foi que o carro ficou submerso e as rodas perderam o contacto com o piso», refere ao nosso jornal.

O responsável diz ainda que todo o sistema de alta voltagem do carro é completamente blindado. «Os carros elétricos andam bem dentro de água. Nestas inundações em que a água chega a meio da porta, mantêm-se em funcionamento. E não são arrastados pela corrente como os tradicionais: são muito mais pesados, a bateria pesa centenas de quilos – varia entre os 300 e 500 quilos – e só é arrastado se a enxurrada for muito grande», afirma.

 

Levantamento para ajudas

Os municípios da Área Metropolitana de Lisboa (AML) mais afetados pelas chuvas têm até 15 de janeiro para fazer um levantamento dos danos registados. A data foi revelada pela ministra da Presidência depois do encontro realizado com os autarcas com vista a avaliar o impacto dos estragos causados pelo mau tempo e definir os apoios do Governo.

O levantamento servirá para identificar danos que digam respeito a «infraestruturas e equipamentos municipais que têm de ser recuperados», abrangendo também comércio e serviços afetados, assim como «danos particulares». De acordo com Marina Vieira da Silva, o «Governo estará disponível para tomar as medidas necessárias», referindo que o apoio será atribuído em função dos danos que forem comunicados pelas autarquias, não adiantando, no entanto, detalhes sobre o valor monetário da ajuda que será disponibilizada.

Este esclarecimento surge depois de Marcelo Rebelo de Sousa ter dito que seria necessário fazer um levantamento dos danos provocados pelo mau tempo e desenhar um esquema para ajudar as pessoas a recuperar os seus bens. «Hoje as pessoas acabam por esperar da parte dos poderes públicos o que se chama responsabilidade objetiva, ou seja, mesmo que não tenham responsabilidade específica por aquilo que acontece, haver apoios que sirvam para mitigar, reduzir, aligeirar os danos sofridos», disse o Presidente da República.

Recorde-se que Oeiras foi um dos concelhos mais fustigados e Isaltino Morais afirmou que a autarquia poderá apoiar financeiramente os comerciantes. Já a Câmara de Loures vai pedir ao Governo para declarar o estado de calamidade no município. «Temos as equipas e os técnicos sociais da câmara a percorrer as zonas mais afetadas do concelho, que, em termos de habitação, foram Frielas e Santo António dos Cavaleiros», disse o presidente da Câmara, Ricardo Leão.

As perdas ainda não foram contabilizadas mas, pelo menos, os comerciantes falam em prejuízos de milhares de euros. Já em relação aos particulares, os danos foram sobretudo nos automóveis.

Ao Nascer do SOL, Susana Correia, jurista da Deco, lembra que, no caso de particulares, a indemnização em relação ao carro pressupõe um seguro que tenha um seguro com cobertura de danos ou fenómenos naturais. «São seguros facultativos e essas coberturas ficam de fora daquilo que é o seguro de responsabilidade civil obrigatória, ou seja, pressupõe por da parte do consumidor um investimento, isto é, a contratação de uma cobertura que é mais cara. E como tem de despender mais dinheiro sabemos que isso é um obstáculo para as famílias e muitas não contratam por isso mesmo».

Já em relação ao seguro com cobertura de danos próprios ou contra todos riscos, a responsável garante que é necessário verificar se esta cobertura que cobre os danos nos veículos e que inclui tempestades, inundações e até aluimentos de terras está incluída.

A jurista admite ainda que é mais fácil fazer essa ativação do seguro, no caso do carro ser ‘apanhado’ no meio das inundações. «Quando são situações esporádicas, as seguradores geralmente pedem uma prova junto do IPMA que tem de passar uma declaração a dizer que naquele determinado dia se verificou uma quantidade de chuva fora do normal e que entra nos padrões para ser indemnizado. Neste caso, as situações foram tão noticiadas que geralmente as seguradoras dispensam a prova de que houve uma queda de precipitação anormal. Ainda assim, os peritos podem fazer a vistoria aos carros para avaliar se os danos reclamados estão de acordo com aquilo que aconteceu».

Uma situação diferente será para quem circulou na estrada e horas mais tarde poderá ter sido confrontado com a avaria do carro. «Neste caso, o condutor quando faz a ativação da cobertura, o perito da seguradora vai verificar quais são os danos que o veículo tem e de onde é que resultam: cheias e inundações. Coisa diferente seria resultado de um ato de negligencia, em que as estradas estavam cortadas e o condutor insistiu na passagem. Aí poderá ser considerado negligência e a responsabilidade é do consumidor».

Para os comerciantes, a dor de cabeça poderá ser maior. Apesar das coberturas existirem, ao que o nosso jornal apurou, nem sempre são subscritas devido ao preço elevado e mesmo quando existem o valor da indemnização poderá não estar atualizado porque também isso tem implicações no preço a pagar. E em zonas mais suscetíveis de inundações, como Alcântara ou Algés, o prémio será ainda mais alto.

 

Alta tensão

O IPMA tem estado debaixo de fogo por não ter emitido um aviso laranja ou vermelho mais cedo relativamente à situação meteorológica de quarta-feira à noite passada. O presidente do instituto já veio admitir que os modelos atualmente em uso podem não ser claros para situações de precipitação tão intensa. Críticas essas que levaram o Governo a garantir articulação permanente entre a Autoridade Nacional e o IPMA e que «os alertas são ajustados ao timing em que é possível fazer a previsão destes fenómenos que, de facto, se desenvolvem com muita rapidez», disse a secretária de Estado da Administração Interna.

Patrícia Gaspar lembrou ainda que «estes fenómenos são imprevisíveis» e que «assim que o IPMA percebeu a intensidade da precipitação emitiu avisos vermelhos e passou o alerta para laranja».

Esta polémica levou José Luís Carneiro a pedir responsabilidades e face a uma eventual ação tardia do IPMA, o ministro da Administração Interna disse apenas que «todas as forças e serviços foram acionados assim que houve conhecimento da gravidade da intempérie que se abateu sobre a área metropolitana de Lisboa». E remeteu para o IPMA a justificação técnica.

Também Marcelo Rebelo de Sousa preferiu não comentar este possível desentendimento. «Não queria entrar nesses pormenores, até porque não conheço com rigor o que se passou, e há de haver quem vá fazer a análise do que se passou».

É certo que os números falam por si. Na madrugada de quarta-feira foram registadas 849 ocorrências a nível nacional, em que mais de 70% ocorreram no distrito de Lisboa e a maioria está relacionada com problemas de inundação. Num período de cerca de três horas choveu em Lisboa um décimo da precipitação anual na cidade e em 24 horas 63% dos valores de todo o mês de dezembro.

Há a registar ainda uma vítima mortal, uma mulher de 55 anos que morava numa cave que ficou submersa em Algés, no concelho de Oeiras. As autoridades contam, no concelho da Amadora, com «100 deslocados e afetação de dois barracões», na sequência de um deslizamento de terras. Já «na Costa da Caparica 47 pessoas foram resgatadas de veículos e seis deslocados», e, em Almada, no Feijó, há 10 desalojados.

A madrugada de quinta-feira, apesar de estar sob aviso laranja foi bem mais tranquila. A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) registou 100 ocorrências relacionadas com o mau tempo, a maioria das quais na cidade de Lisboa.

 * Com Maria Moreira Rato